As bacias hidrográficas como unidades políticas territoriais no Brasil Sylvio Luiz Andreozzi Universidade Federal de Uberlândia Andreozzi@ufu.br A organização política administrativa estabelecida no Brasil pela constituição promulgada em 5 de outubro de 1988, estabelece três níveis de unidades políticas territoriais: o federal, o das unidades da federação e o dos municípios, hierarquicamente organizados em dependência e complementariedade, definido pela Constituição Cidadã logo em seu Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito... (TÁCITO, 1999). Historicamente desde a primeira constituição após a independência é essa, com pequenas alterações, a base da divisão administrativa do território brasileiro, a Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25 de Março de 1824 coloca em seu Art. 2. diretamente que o território brasileiro é dividido em Provincias na fórma em que actualmente se acha, as quaes poderão ser subdivididas, como pedir o bem do Estado, e indiretamente no Art. 167. menciona a existência das Câmaras Em todas as Cidades, e Villas ora existentes, e nas mais, que para o futuro se crearem haverá (NOGUEIRA, 1999) Mesmo após a proclamação da república,com a aprovação em 24 de fevereiro de 1891, da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil a modificação mais significativa dessa estrutura foi a transformação das províncias em estados constantes do Art 2º, que tratou também da instituição do Distrito Federal, para Capital da União, e também indiretamente apresenta os municípios em seu Art 68 que determinava que
Os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos Municípios... em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse. (BALEEIRO, 1999). A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934, além de ter o menor tempo de vigência, manteve a mesma forma de apresentação da divisão política do território, tratando de forma direta em seu Art 1º em que A Nação brasileira, constituída pela união perpétua e indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios as grandes unidades e indiretamente, na letra f do item XIX de seu Art 5º em que afirma ser de competência privativamente à União legislar sobre matéria eleitoral da União, dos Estados e dos Municípios,... apresentando nesse artigo e em vários outros a terceira categoria territorial administrativa. (POLETTI, 1999). Conhecida como a Polaca, por supostamente ter se baseado na constituição polonesa de 1935, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, vigente durante todo o Estado Novo, também manteve a mesma forma de apresentação da divisão político administrativa do território nacional, explicitando no Art 3º que O Brasil é um Estado federal, constituído pela união indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios., e implicitamente introduzindo os municípios no ítem XXIII do Art 16, que trata da competência privativa da União para legislar sobre matéria eleitoral da União, dos Estados e dos Municípios (COSTA PORTO, 1999). Após a queda de Getúlio Vargas e mesmo propondo-se a não utilização da constituição anterior como base, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, repetiu a forma de apresentação da divisão política administrativa do território nacional, definindo já no 1º do Art 1º que A União compreende, além dos Estados, o Distrito Federal e os Territórios e apresentando o conceito de município primeirto na letra e do item VII do Art 7º e em várias outras passagens posteriores do código constitucional. (BALEEIRO; LIMA SOBRINHO, 1999). Também na Constituição da República Federativa do Brasil que entrou em vigor no dia 15 de março de 1967, durante o regime militar, a forma de apresentação manteve-se,
com a explicitação logo no Art 1º que O Brasil é uma República Federativa, constituída sob o regime representativo, pela união indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios das unidades territoriais político administrativas, e em seu 3º, apresentando de forma implícita a existência dos municípios nessa estrutura. (BALEEIRO; BRITO; CAVALCANTI, 1999). É portanto apenas na Constituição de 1988, que a estrutura territorial político administrativa, hierarquicamente praticada no Brasil desde a independência, é explicitada em um único artigo, dando um formato diferente ao presente nos textos constitucionais anteriores, no entanto, de fato, a existência dos territórios nacional, estaduais (e por analogia distrital) e municipais, sempre foram as unidades políticas territoriais brasileiras. Pode-se dizer que outras unidades, ou outros territórios políticos também coexistiram, geralmente com objetivos definidos e grandemente baseados na divisão municipal, Outros recortes espaciais foram criados também sob a perspectiva de planejamento e gestão territorial, como as superintendências regionais, as regiões administrativas, as meso e microrregiões censitárias do IBGE ou as regionalizações relacionadas a atuação de secretarias ou órgãos estaduais ou mesmo federais, ou ainda a distribuição dos 853 municípios por 17 territórios de desenvolvimento do estado de Minas Gerais definidos por decreto estadual 46774 de 09 de junho de 2015. Diferentemente dessas formas de organização do território, a Lei Federal nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, determinou no item V do Art. 1º que a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (BRASIL, 1997). Duas características no entanto, diferenciam profundamente esse recorte territorial das muitas outras divisões ou subdivisões político administrativas existentes, sua base não é a divisão municipal, território politicamente construído, e sim unidades fisiográficas, que mesmo com os posteriores agrupamentos ou segmentações de caráter político
administrativos, que receberam, mantém por princípio sua demarcação pelas características relacionadas ao escoamento superficial pluvial em direção ao exutório. A idéia de usar as bacias hidrográficas como divisão territorial do Brasil não é nova como reportam Guimarães (1941) e Bezzi (2004) sobre as propostas de Eliseé Reclus, em 1893, que dividia o Brasil em oito unidades baseadas nas bacias hidrográficas, e a de Honório de Carvalho em 1922 que as agrupava em quatro regiões. Além dessas propostas, a Lei das Águas, de 1997, preconiza a unidade fisiográfica em sua síntese pois a: A bacia hidrográfica é um sistema físico que define uma área de captação da água precipitada da atmosfera, demarcada por divisores de água ou cristas topográficas onde toda a água que flui nesta área converge para um único ponto de saída, o exutório. (REBOUÇAS, 2004) Para resolver essa aparente inadequação, de uma unidade fisiográfica em uma unidade política, apresentasse a segunda característica inovadora presente na Lei 9433, a legislação determina que a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades, realizada num dos entes que integram o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, mas não só nele, os Comitês de Bacia Hidrográfica. Dessa forma a unidade fisiográfica que é: um sistema bem caracterizado, identificado pela entrada de material e energia (através da precipitação atmosférica), pela circulação interna deste material (o escoamento superficial, por exemplo) e por sua saída, (que num curso fluvial corresponde à sua foz). Este sistema, individualizado para uma facilitação de análise, pode ser considerado um subsistema, quando inserido em um outro sistema, sendo influenciado e influenciando através dos fluxos que se estabelecem. (ANDREOZZI, 2005)
Transforma-se pela atuação no Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos o comitê de bacias em órgão responsável por coordenar a gestão integrada das águas, arbitrar administrativamente os conflitos relacionados com os recursos hídricos e implementar a Política Nacional de Recursos Hídricos, ou seja ter atuação política sobre a base fisiográfica, transformando a unidade espacial em unidade territorial política administrativa. Portanto, esse é o reconhecimento de que: O lugar onde os seres humanos realizam a sua sobrevivência é a bacia hidrográfica, (mesmo os nômades, deslocam-se de bacia para bacia), sendo, portanto a unidade territorial mais efetiva de intervenção, para a busca da melhoria da qualidade de vida. (ANDREOZZI; VIADANA 2010) Pela Lei, o Comitê de bacia hidrográfica tornou-se uma interessante instância político administrativa, que a partir da gestão dos recursos hídricos pode, pelo uso dos instrumentos de planejamento e gestão sob sua responsabilidade direta, o Plano de Recursos Hídricos, o Enquadramento dos Corpos Hídricos e a Cobrança pelo Uso dos Recursos Hídricos, e indireta como a Outorga de Uso de Recursos Hídricos realizar o ordenamento territorial através da criação e aplicação de regras de uso, permissão, restrição ou proibição de determinadas atividades, tornando-se por seu caráter decisório participativo, uma instância complementar ao planejamento e gestão do território. No entanto, mesmo considerando seu caráter temático relacionado aos recursos hídricos e o fato de na composição de suas plenárias obrigatoriamente possuir representantes dos poderes municipais e estaduais (ou distrital) e federais (quando couber) percebe-se que em decorrência de seu caráter inovador em termos de representação e ação política sobre o território, representantes dos governos municipais e estaduais apresentam dificuldade em dividir o poder político relacionado às atribuições, previstas em lei, que competem aos comitês de bacias hidrográficas.
Pode-se perceber essa dificuldade em aceitar essa nova instancia política, de atuação efetiva sobre o ordenamento territorial, com a lentidão verificada na implementação dos instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, como os Planos de Recursos Hídricos, o enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os usos preponderantes da água a outorga dos direitos de uso de recursos hídricos e principalmente a cobrança pelo uso de recursos hídricos. Utilizando-se a Bacia hidrográfica do rio Paranaíba como exemplo, pode-se aferir que mesmo com a legislação federal sendo sancionada em 1997, o único comitê, que pratica a cobrança e o CBH rio Araguari, em Minas Gerais. Os planos estaduais e o distrital de recursos hídricos, na área da bacia foram aprovados em dezembro de 2006 para o Plano de Gerenciamento Integrado do Distrito Federal o estado de Mato Grosso do Sul aprovou seu Plano de Recursos Hídricos pelo Conselho Estadual de Recursos Hídricos, por meio da Resolução CERH-MS nº 011 de 5 de novembro de 2009, o PRH de Minas Gerais foi aprovado por Deliberação CERH/MG nº 260, de 26 de Novembro de 2010 e o Plano de Recursos Hídricos do estado de Goiás foi publicado em setembro de 2015. Quanto aos comitês estaduais na área do Comitê interestadual do rio Paranaíba, instalado em 10 de junho de 2008, tem-se a instalação do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Araguari pelo Decreto nº 39.912, de 22 de setembro de 1998, o Comitê da Bacia Hidrográfica dos Afluentes Mineiros do Baixo Paranaíba criado pelo Decreto nº 43.797, de 30 de abril de 2004 e o Comitê da Bacia Hidrográfica dos Afluentes Mineiros do Alto Paranaíba criado em 2008 pelo Decreto nº 44.760, já o Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Paranoá foi criado pelo Decreto Nº 27.152, de 31 de agosto de 2006, do Governo do Distrito Federal, o estado de Goiás instalou o CBH do Rio Meia Ponte em 2003 e os CBHs Afluentes Goianos do Baixo Paranaíba, Rio dos Bois e Rio Corumbá Veríssimo e São Marcos em 2015; enquanto o estado de Mato Grosso do Sul por meio da Resolução CERH/MS N 032, de 15 de março de 2016, aprovou a criação e instalação do Comitê da Bacia Hidrográfica dos Rios Santana e Aporé. Comitês Estaduais componentes do CBH Paranaíba
Fonte CBH Paranaíba, 2011 Outro indicador da dificuldade de aplicação do Lei Federal 9433 verificasse que num total de 213 Comitês de Bacias Hidrográficas registrados pela Rede Brasil de Organismos de Bacias, 48 realizavam cobrança (ANA, 2016), demonstrando a lentidão da aplicação de um dos instrumentos de gestão preconizados pela Lei das Águas de 1997. Cobrança pelo Uso de Recursos Hídricos no Brasil
Fonte: ANA, 2016 Ocorrendo desde 1999, o Encontro Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas, inicialmente em Ribeirão Preto, tendo sua décima oitava edição realizada em 2016, em Salvador na Bahia, pode ser considerado também como indicador, pois a presença de governadores de estado ou de secretários de estado, tem-se dado ou nas atividades protocolares de abertura ou encerramento dos eventos, ou em participação de apresentações quando demandados pela organização do evento, Com exceções, o evento que em suas últimas edições tem reunido mais de 1200 participantes, desperta mais o interesse das secretarias de turismo, do que para a discussão de assuntos relacionados aos recursos hídricos, particularmente a participação parlamentar tem sido ínfima. No entanto, mesmo considerando seu caráter temático relacionado aos recursos hídricos e o fato de na composição de suas plenárias obrigatoriamente possuir representantes dos
poderes municipais e estaduais (ou distrital) e federais (quando couber) percebe-se que em decorrência de seu caráter inovador em termos de representação e ação política sobre o território, representantes dos governos municipais e estaduais apresentam dificuldade em dividir o poder político relacionado às atribuições, previstas em lei, que competem aos comitês de bacias hidrográficas. A constatação da dificuldade de implementação dos planos de recursos hídricos, nas bacias e nas unidades da federação, bem com a criação dos próprios comitês de bacia por todo o território nacional, indicam que mesmo depois de anos da sanção da Lei e da publicação dos seus instrumentos complementares, algumas unidades da federação tem dificuldade em implementá-los, apresentando dificuldades operativas tanto relacionadas às medidas legislativas quanto as relacionadas aos órgãos gestores, dificuldade em reconhecimento dos comitês como gestores políticos do território ocorrem mesmo em lugares em que os comitês já estão implementados e em funcionamento, como ocorreu com os Comitês das Bacias Hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí e do rio Paraíba do Sul durante a crise hídrica da região metropolitana de São Paulo, durante o ano de 2015. REFERÊNCIAS ANA Agência Nacional de Águas. Cobrança pelo Uso de Recursos Hídricos. Disponível em: http://www2.ana.gov.br/paginas/servicos/cobrancaearrecadacao/cobrancaearrecadacao.a spx ANDREOZZI, S. L. Planejamento e gestão de bacias hidrográficas: uma abordagem pelos caminhos da sustentabilidade sistêmica / 1997. 151f. Tese (Doutorado em Geografia). Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2005. 151 f.
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