O gênio e o sistema das faculdades na Crítica do Juízo

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Transcrição:

O gênio e o sistema das faculdades na Crítica do Juízo Danilo Citro Mestrado em Estética e Filosofia da Arte pela Universidade Federal de Ouro Preto. Prof. Universidade Estadual de Roraima, UERR, Brasil Resumo: Nas introduções à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant apresenta dois quadros das faculdades humanas. Um quadro constitui as mais altas faculdades do ânimo, o outro constitui as mais altas faculdades cognitivas. Na Crítica da Faculdade do Juízo, Kant relaciona a faculdade do juízo enquanto faculdade cognitiva com a faculdade do sentimento de prazer e desprazer do ânimo. Na analítica à faculdade de juízo estética, Kant analisa todas as formas de juízo estético possível: o belo na natureza e na arte e o sublime n a natureza. Mas na análise do belo da arte, Kant apresenta uma faculdade que poucos possuem, e deixa bem claro que não é uma forma de juízo estético. É o Gênio. Então, nosso trabalho se ocupa em analisar o lugar do gênio no sistema das faculdades de Kant. Palavras-chave: gênio; belo; arte; faculdades; sistema. Abstract: In the Introduction to the Critic f the Power of Judgment, Kant presents two tables to the human faculties. A table constitutes the highest faculties of the mind; the other constitutes the higher cognitive faculties. In the Critic of Power of Judgment, Kant relates the faculties of the mind as cognitive faculty with the faculty of feeling pleasure and displeasure of the mind. In the analytic of the faculty of aesthetic judgment, Kant analysis all forms of aesthetic judgment possible: the beautiful in nature and art and the sublime in nature. But in the analysis of the fine art, Kant presents a faculty that few have, and makes clear that it is not a form of aesthetic judgment. It s the Genius. So our work focuses on analyzing the place of genius in Kant s system of faculties. Key words: genius; beauty; art; faculties; system. Guairacá - Guarapuava, Paraná n.26 p.29-39 2010

Venho neste artigo apresentar o teor de meu trabalho a respeito de um elemento um tanto peculiar na obra Crítica da Faculdade do Juízo de Immanuel Kant. Trata-se do tema-chave que caracteriza o Romantismo alemão. Mas, para minha inicial surpresa, o termo já aparece na obra kantiana. Refiro-me ao gênio, definido por Kant como um talento inato, que dá a regra à arte, fonte de sua originalidade. Gostaria primeiramente de mencionar o momento em que decidi levar adiante uma pesquisa mais aprofundada sobre tal assunto. Recordo-me de certo espanto quando exercitava as primeiras leituras desta obra, acostumado que estava com abordagens sobre teoria do conhecimento e moral na filosofia kantiana. Ainda ligava o termo gênio ao romantismo e nem imaginava encontrar alguma discussão sobre o assunto na obra crítica do filósofo de Konigsberg. Mas uma questão mais imediata veio à tona: um talento inato? Inato significa que a propriedade em questão, o talento, se encontra no interior da natureza do sujeito. Mas certamente não diz respeito somente à estrutura cognitiva encontrada nele, um conjunto de faculdades localizadas em seu interior; ou melhor, suas faculdades subjetivas. Então qual a diferença entre gênio e as demais faculdades? O que fundamenta o gênio? Seu talento faz parte do sistema de faculdades subjetivas em geral? Pois bem, como foi dito, inato implica numa propriedade que está localizada no interior da natureza do sujeito. Gênio é um talento de natureza subjetiva que dá possibilidade à produção da obra de arte bela. Levemos em conta ainda a definição kantiana de arte em geral. É aquela que é feita mediante uma representação a priori. Talvez possamos dizer, então, que esse talento inato fundamenta uma representação a priori que dá possibilidade à produção da arte bela. Mas do mesmo modo, as faculdades subjetivas representam juízos a priori que se referem à determinada função na experiência. E pensado conforme esta descrição, não conseguimos encontrar muita diferença entre as faculdades subjetivas e o talento inato, pois ambos dizem respeito a propriedades localizadas dentro do sujeito que se aplicam a uma determinada função. Podemos, no entanto, primeiramente 30

avançar um pouco mais sobre o sistema que compõe as faculdades subjetivas. Toda faculdade superior, tem uma fonte de representação a priori. A priori é um termo usado para se referir a juízos que possam ser emitidos sem necessidade da comprovação dos fatos. No caso da filosofia kantiana, juízos a priori são aqueles que podem ser emitidos antes de ser corroborados pela experiência, pois se refere a uma propriedade de coisas que podem acontecer a qualquer momento no fenômeno. Mas é importante nos lembrarmos também que Kant enfatiza que tais juízos só produzem conhecimento efetivo após sua aplicação nos objetos reais que aparecem, isto é, pela própria experiência. Isso porque tais juízos são emitidos mediante conceitos a priori, que em si são vazios. Por exemplo, podemos categorizar qualquer objeto como tendo uma substância, por um lado, e propriedades acidentais que determinam sua particularidade por outro lado. Substancia e acidente são conceitos puros a priori. Ou podemos categorizar qualquer objeto como tendo uma causa para sua efetividade. E que o estado em que se encontra é o efeito. Causa e efeito também são conceitos puros a priori. Os conceitos a priori para todos os objetos em geral tem fonte na faculdade denominada entendimento. E tais juízos são a priori porque antes do objeto nos ser dado na experiência podemos tomar tais conhecimentos deles. Mas é claro que o objeto tem que ser dado na experiência. Portanto, sem experiência esses conceitos são vazios, e é através dela que vemos como os conceitos funcionam pelos objetos reais. Talvez possamos nos arriscar em dizer que o a priori só se realiza a posteriori. Mas jogos de palavra à parte, o conceito a priori não tem utilidade nenhuma ao sujeito se não entrar em atividade na experiência. O mesmo ocorre com a ação moral, pois entre as nossas faculdades, temos uma capacidade de escolher livremente como agir. Temos uma estrutura subjetiva que dá possibilidade de determinarmos a priori nossa ação, mesmo que nossos desejos (ou os objetos de nossos desejos) tendem a nos colocar em direção diversa daquela determinada. E é através da idéia abstrata de liberdade é que 31

determinamos nossas ações antes mesmo que a necessidade de tal determinação nos apareça pela experiência. Ou seja, a idéia de liberdade é um conceito a priori. E ela tem fonte na faculdade denominada razão. Guiado por esta idéia, há possibilidade de agir com autodeterminação e autonomia, sem ser determinado por fatores externos a nós. E a superação da inclinação sensível do desejo mediante a idéia de liberdade ocorre somente pela experiência. A idéia de liberdade tem que ser realizada pelo esforço na prática moral. Enfim, para a moral, temos igualmente uma faculdade subjetiva que comporta uma idéia a priori. Assim, enquanto que, para o conhecimento, a efetividade dos conceitos abstratos a priori está na determinação do objeto que aparece; para a ação moral, a efetividade da idéia a priori de liberdade está na autodeterminação da ação. E enquanto temos a faculdade de entendimento para o conhecimento, temos e a faculdade de razão para a moral. No sistema que compõe as faculdades humanas, a faculdade de prazer ou dor também entra em atividade por meio de um processo semelhante ao que descrevemos para o conhecimento e para a moral, fontes de representação a priori que serão aplicados na experiência. Porém, a faculdade de prazer também contém uma característica peculiar que a faz distinguir consideravelmente das outras duas. Pois a faculdade responsável pelo sentimento estético, o gosto, não contém conceitos abstratos, ou uma idéia, a priori. Mas sim, um contém um princípio a priori. Então, sem conceito, o sentimento estético não determina nada na experiência. Kant chama este princípio a priori de conformidade a fins, ou forma da finalidade. Diz respeito à forma com que os objetos particulares naturais unem suas partes numa totalidade. Em termos técnicos, esta faculdade apreende de forma imediata (sem mediação de conceitos) a unidade do múltiplo. Em palavras mais suaves, o gosto apreende a composição do objeto. A natureza especifica seus objetos numa infinidade de formas, cada objeto à sua maneira. Como não somos capazes de dar conta do conhecimento comum de todas as formas particulares da natureza, não determinamos nenhum conceito de finalidade a priori ao objeto. 32

Nos referimos a ele apenas por meio do princípio de conformidade, ou de formação final. Assim, sem a determinação de um conceito, a representação da forma do objeto que nos resta é a de um sentimento. Nós sentimos a conformidade a fins, a composição da forma do objeto, em nossa representação interna. É um prazer especialmente notável porque nesse processo não há nenhuma mediação de conceito para anuviar o sentimento interno. Mas mesmo que seja uma representação puramente subjetiva, sem determinação do objeto, o prazer que temos em sua composição é de alguma forma conectado a ele, e assim dizemos que algo é belo. Pois temos em nossa faculdade estética um princípio a priori que entra em atividade somente quando nos encontramos com o objeto. E ocorre aqui um processo semelhante com as demais faculdades, apesar de sua diferença peculiar. Todas são fontes de representações a priori, que se aplicam a objetos da experiência e encontram nela a sua realidade. Finalmente, a filosofia de Kant deixa bem claro que tais faculdades, a de conhecer, de agir livremente, e de sentir o prazer estético, devem ser exercitadas e educadas. E esse exercício muitas vezes pode parecer ser árduo e até doloroso. Principalmente o exercício moral em que, na medida em que a ação é determinada conforme a razão e contra o desejo, tal determinação causa o que Kant chama de prazer negativo. Prazer somente na medida em que o objetivo é alcançado, mas dor na medida em que o desejo sensível não é satisfeito. Aliás, também o processo de conhecimento teórico pode parecer demais abstrato, trabalhoso e penoso. E mesmo o gosto deve ser educado através de exemplos de objetos belos, fazendo o sujeito ser capaz de sentir cada vez mais o prazer desinteressado. Essa característica da filosofia kantiana, a do exercício das faculdades, deriva de nossa descrição do apriorismo do filósofo, a de que mesmo que uma representação a priori seja independente da experiência, ela só encontra realização nela. Façamos agora um paralelo entre o sistema de faculdades subjetivas e o talento inato do gênio, para que possamos destacar o que lhe é peculiar e em que ele acrescenta ao sistema de faculdades. 33

Aparentemente, quando está em processo de produção artística, ocorre com o gênio o mesmo que ocorre quando o sujeito está em exercício de suas faculdades. Retomando a definição kantiana de arte em geral na Crítica da Faculdade do Juízo, arte designa aquilo que é feito mediante arbítrio humano, ou seja, não é natural. E se é feito mediante arbítrio humano, tem como fundamento uma representação a priori, pois se sabe o que fazer antes de produzir. Portanto, semelhante ao exercício das faculdades, o gênio é um talento subjetivo, pois sendo inato se encontra no interior de sua natureza, contém uma representação a priori, que é efetivado na experiência de produzir a obra. Mas avancemos um pouco mais na definição de gênio, para que possamos verificar a veracidade desta afirmação. Segundo a seção 46 da Crítica da Faculdade do Juízo, gênio é o talento inato sim, mas pelo qual a natureza dá regra à arte. Esta definição pode nos indicar de antemão qual a diferença peculiar entre a faculdade do gênio e as demais faculdades. Este talento parece ser uma propriedade da natureza e não do sujeito, pois é ela que dá regra à arte. Então, será que a arte do gênio contém aquela definição de arte em geral, em que a representação a priori é produzida na arte mediante arbítrio humano? A afirmação de que a natureza fornece a regra à arte parece não concordar inteiramente com esta definição de arte em geral, pois no caso da arte bela, é a natureza que produz e não o ser humano. Vamos um pouco mais a fundo. O gênio como natureza atuante dentro do sujeito origina conseqüências demais singulares quanto ao seu caráter e sua obra. Se é a natureza que fornece regra à arte, e não o próprio sujeito, ele não sabe como as idéias que fundamentam a obra se encontram à sua disposição. Realmente, segundo as descrições kantianas, são idéias difíceis de ser concebidas por qualquer um. Kant denomina essas idéias de idéias estéticas. Resumidamente, elas são representações da imaginação para uma idéia racional. Para compreender a gravidade dessa característica da representação genial para a obra, recordemos brevemente qual a relação entre imaginação e idéia racional para Kant. Imaginação encontra figuração somente para os conceitos abstratos do entendimento que a pouco 34

referimos. Não é possível figurar idéias representadas pela razão, tanto de ordem teórica, como a infinitude, a alma, etc. quanto de ordem moral, como a liberdade, a bem-aventurança, etc. A idéia da razão só encontra correspondência na prática moral. Mas segundo a definição kantiana de idéia estética, o gênio consegue conceber uma forma figurativa (ou uma composição) perfeitamente adequada para uma idéia da razão. Porém ainda há uma diferença entre idéia estética e a própria idéia racional. A idéia estética é uma representação da imaginação que nenhum conceito determina, enquanto que a idéia racional é um conceito que nenhuma intuição é capaz de apreender. Isso caracteriza a idéia estética pela superabundância criativa da imaginação. Mas, mesmo sendo uma representação da imaginação, ainda continua sendo idéia porque leva o público a pensar em objetos que se situam acima dos limites da experiência, justamente idéias que somente a razão é capaz de pensar. Enfim, a forma da composição da imaginação é perfeitamente adequada ao conteúdo da idéia racional. Uma harmonia perfeita entre forma e conteúdo, a primeira sensível, e o segundo racional, configura a idéia estética. De fato, conceber tal ordem de representação na imaginação é por demais incomum dentro do sistema de faculdades que compõe o sistema kantiano. Então, as faculdades que compõem o gênio são as mesmas para qualquer sujeito, com uma diferença. Quando Kant diz que a natureza dá regra à arte, isso quer dizer que ela dotou o sujeito com uma feliz disposição de suas faculdades; de tal maneira, que ele tem uma capacidade de representação com origem na harmonização de duas faculdades antagônicas. São as mesmas faculdades de um sujeito comum, mas que se harmonizam de uma maneira incomum. Por isso, nem mesmo o artista sabe explicar como a idéia lhe ocorreu quando produzia a obra de arte. Sendo assim, a obra de arte bela, obra do gênio, que tem como representação a priori uma idéia estética, idéia a qual é impossível de se dizer qual a sua procedência. E já que não há procedimento estabelecido racionalmente para que se possa aprender e depois acompanhar para produzir uma obra, a obra de arte 35

bela, para ser obra do gênio, não pode ser passível de imitação, tem que ser original. Assim, o gênio seria uma faculdade subjetiva que origina idéias estéticas como representação para produzir uma obra. Mas essa espécie de representação não é semelhante aos conceitos ou às idéias que o entendimento e a razão aplicam na experiência. Ela varia de obra a obra, pois para cada obra uma idéia. Ora, cada faculdade subjetiva é fonte de uma representação válida a qualquer momento na experiência, ou seja, representação a priori, que, aliás, só encontram realização na própria experiência. Então será que o gênio possui ao menos um princípio a priori, semelhante ao juízo estético? Bem, se assim for, se é a natureza que dá regra á arte, poderíamos entender natureza como aquela que é reconhecida sob o ponto de vista da Crítica da Faculdade do Juízo, e mais precisamente sob o ponto de vista do juízo estético. Dissemos que a faculdade do gosto tem como princípio a priori a forma da conformidade a fins. Este princípio que fundamenta o gosto é o princípio de especificação da natureza, de formação de objetos particulares como um fim. Lembremos sempre que esse princípio não é um conceito e por isso julgamos o objeto belo apenas como se fosse designado a ser formada daquela maneira. E se a forma da conformidade a fins é apreendida pelo gosto na natureza bela, será apreendida pelo gosto na arte bela também, pois ambas tem uma propriedade em comum, a beleza. Não é toa que Kant diz que a natureza é bela na medida em que ela parece ser de arte, e que a arte é bela na medida em que, apesar de termos consciência de ser arte, ele parece ser natureza. Em ambas as espécies de objetos, apreendemos pelo gosto a forma da conformidade, ou composição. Dissemos a pouco que esse princípio é atribuído pelo gosto à natureza. Mas podemos atribuir a natureza enquanto especificação ao gênio, já que é a natureza que dá regra à arte? Kant não deixa clara esta relação direta. E fica claro que a relação entre objeto artificial e natural ocorre somente mediante analogia. O que faz o objeto de arte bela parecer natural se explica mais pelo fato de que não há regras para o procedimento da produção. Assim, 36

a obra que não revela seu procedimento assume uma aparência natural. E não podemos dizer diretamente que a natureza enquanto especificação atua no sujeito. Podemos dizer que o gênio especifica sim as idéias da razão numa forma sensível, através de sua feliz disposição entre as faculdades, mas que é sua natureza que dá regra à arte, sua disposição das faculdades. E não a natureza como um todo, pois nem pelo juízo do gosto podemos conceber a natureza como um agente que especifica objetos, pois é apenas uma idéia reguladora, que sem determinar assume a função de mero princípio. Assim, a forma da conformidade a fins é um princípio a priori do gosto para ajuizar inclusive a obra de arte bela. Mas não é um princípio do gênio, mas somente do seu próprio gosto. Se a arte parece ser natureza enquanto especificação é porque não revela regras para produzir, da mesma forma que não há conceitos que determinem juízos de gosto. Estamos falando da aparência da obra, e não de um princípio a priori para o gênio produzir. Para a questão de se o gênio tem um princípio a priori, podemos apenas dizer ele mesmo é o fundamento da obra de arte bela, e quem sabe seu princípio. É de fato um talento que procede de maneira semelhante a todo gênio, pela representação de idéias estéticas numa obra de arte original. Mas não é um princípio a priori para todo sujeito produzir. Semelhante às faculdades subjetivas, em todo gênio há uma forma de representar a priori em comum, que só é realizado na experiência. Mas se Kant não denomina o gênio como princípio a priori para a arte bela, e sim como um talento inato, quer dizer que ele atua sua realização na experiência de forma relativamente diversa das demais faculdades. Primeiro, o próprio gênio não tem consciência de como procede a representação para produzir. Ao contrário, para conhecer e para agir, tem-se consciência dos conceitos a serem aplicados aos objetos e das idéias a serem almejadas para agir. Ainda mais, toma-se consciência do prazer que se sente na composição de um objeto belo na experiência estética. Segundo, o exercício das três faculdades serve para tornar reais as representações contidas nas faculdades subjetivas. 37

O exercício do artista serve, ao contrário, para cortar as asas do gênio, para tornar o gênio, a superabundância da imaginação menos real e mais comunicável. É claro que o gênio só se realiza na produção da obra, mas só mediante o esforço de frear sua abundância criativa. Se o artista quisesse tornar seu gênio real tal como é, não seria possível a comunicação de suas idéias. Então se o gênio usa o princípio de conformidade para produzir, usa para seu gosto, para que possa comunicar as idéias estéticas a um público que se situa numa ordem de faculdades diferente dele, mas não usa o princípio de conformidade para fundamentar sua criatividade. Portanto, as faculdades subjetivas de conhecer, agir e sentir prazer se fundamentam em princípios a priori e se aplicam na experiência. O entendimento se fundamenta em conceitos a priori para conhecer determinados objetos da experiência. A razão se fundamenta numa idéia a priori de liberdade para que o sujeito se determine no mundo. O gosto se fundamenta no princípio da forma de conformidades a fins e apreende a composição do objeto belo na experiência. O Gênio, por sua vez, se fundamenta num talento inato, pelo qual sua natureza, sua disposição, dá regra à arte, e exercita seu talento na experiência de produzir obras de arte bela de forma a ser comunicável a um público. Referências CASSIRER, E. A Filosofia do Iluminismo. Tradução: Álvaro Cabral, Campinas: Unicamp, 1997. CAYGILL, H. Dicionário Kant. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. DELEUZE, G. Para ler Kant. Tradução: Sonia Dantas Pino Guimarães, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. BARBOSA, J. Infinitude Subjetiva e Estética Natureza e arte em Schelling e Schopenhauer. São Paulo: Unesp, 2005. 38

DUARTE, R. (org.) Belo, Sublime e Kant. Belo Horizonte: UFMG, 1998. KANT, I. Crítica da Razão Pura. Tradução: Valério Rhoden e Udo Baldur Moosburger, São Paulo: Nova Editora, 1991, v. I e II.. Crítica da Faculdade do Juízo. Tradução: Valério Rhoden e Antônio Márquez, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.. Primeira Introdução à crítica do Juízo, Tradução: Rubens Rodrigues Torres. In: Teixeira, Ricardo R. (organizador). Duas Introduções à crítica do Juízo. São Paulo: Iluminuras, 1995. RODHEN, V. (org.). 200 anos da Crítica da Faculdade do Juízo de Kant. Porto Alegre: UFRGS/Instituto Goethe/ICBA, 1992. 39