DOS PROBLEMAS AOS CONCEITOS: CONSERVAÇÃO, RESTAURO E RENOVAÇÃO DE REVESTIMENTOS EXTERIORES, EM CENTROS HISTÓRICOS



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Transcrição:

DOS PROBLEMAS AOS CONCEITOS: CONSERVAÇÃO, RESTAURO E RENOVAÇÃO DE REVESTIMENTOS EXTERIORES, EM CENTROS HISTÓRICOS José Aguiar * Correio electrónico: jaguiar@lnec.pt Resumo Os revestimentos exteriores de paredes são camadas sacrificiais e de expressão estética com grande relevância no comportamento físico e para a percepção visual da arquitectura. Do desaparecimento da cultura artesanal que lhes deu origem e da sua substituição por uma cultura industrial que impõe o consumo quase exclusivo de materiais e técnicas modernas, resultaram efeitos devastadores que afectaram a qualidade estético-histórica e a imagem do nosso património urbano, produto de preconceitos culturais (avidez pelo novo) e da ignorância teórica e construtiva de muitos protagonistas dos processos ditos de reabilitação. O problema parece simples mas na realidade é substancialmente complexo apresentando matizes teóricas ainda não totalmente resolvidas (no já tradicional conflito entre a conservação estrita, restauro e renovação); impactos sócio-culturais, económicos e políticos óbvios (pela grande visualidade do tema); importantes carências de conhecimento e de investigação; e ainda claras necessidades de reformulação nas metodologias de projecto e da construção, perante a incoerências dos conceitos de apresentação e a não compatibilidade dos materiais e técnicas que hoje mobilizamos. Nesta conferência procura-se reflectir sobre alguns dos aspectos enunciados, apresentando-se alguns exemplos de situações tipo ou limite, procurando descortinar os principais problemas existentes e alguns dos novos caminhos que ainda temos de trilhar. Conclui-se apresentando alguns princípios essenciais que importa nunca esquecer quando pretendemos operar dentro de uma verdadeira praxis do restauro e/ou da conservação. Palavras-chave: Conservação, Revestimentos, Patologia, Património Urbano * Investigador Auxiliar do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Departamento de Edifícios; Professor Auxiliar da CEUL. 1

1 Introdução Os revestimentos exteriores são soluções de protecção, de expressão e comunicação arquitectural de primeira importância quando discutimos a conservação de um edifício ou de um centro histórico. O enfoque do estruturalismo construtivista moderno prejudicou durante muito tempo a nossa clara percepção dessa importância. No último século muitas vezes aspiramos a um belo sonho que por vezes resultou em drama: o de alcançar uma arquitectura em que a estrutura e a forma resultavam do mesmo material numa procura de total coerência entre possibilidades construtivas e expressivas nos materiais constitutivos. Primeiro encantamo-nos com as possibilidades do ferro (entre Paxton e Fuller), depois com a extraordinária plasticidade do betão (de Saarinen a Tange), mais tarde encantamo-nos com as virtudes dos plásticos (empregues nos protótipos de casas tipo Homem-Michelin, de Dyoden, nos desvarios de Coop Himmelbau e nas tendas em policarbonato de Munique); mais recentemente tentamos as estruturas integrais em vidro. Entre o High e o Low Tech o sonho da procura da verdade na expressão dos materiais tornou-se por vezes um pesadelo; outras vezes estivemos muito próximos. Na realidade o material mágico capaz de ser, ao mesmo tempo, estrutura e forma, recheio e superfície, parece ainda não se descortinar nitidamente no horizonte. Nos antigos edifícios as relações entre a pele e o interior das paredes eram bem mais complexas. Os revestimentos (rebocos, guarnecimentos e pinturas) constituíam multi-camadas sacrificiais ciclicamente renováveis, destinadas à protecção das alvenarias e, ao mesmo tempo, simulando materiais nobres, não só por óbvias necessidades de fingimento mas também por razões filológicas ligadas à necessidade de expressar a escrita do sistema das ordens na arquitectura, proveniente do classicismo ou da tradição vernacular. A longa continuidade dos saberes (que continuaram presentes entre nós até finais da década de 60) e o baixo custo da mão de obra necessária à manutenção, reparação e/ou renovação destes revestimentos, assegurava a sua perenidade, gradualmente permitindo também o surgimento de variações nos gostos, harmonizadas de forma natural pelos limites nas capacidades expressivas das técnicas tradicionais e pelo seu profundo enraizamento na cultura dos lugares (os materiais de cor e de revestimento provinham do próprio solo local, pelo que as possibilidades de diversidade eram naturalmente restritas). Esta harmonia, como todos sabemos, acabou. Hoje, não valendo a pena chorar sobre o leite derramado, temos a tarefa árdua de construir uma nova indústria capaz de lidar cultural, científica e tecnicamente com os problemas de conservar construções cuja lógica e cultura já não são as nossas mas que 2

constituem um recurso de primeira importância, não só em termos identitários como também em termos económicos. No tempo que os optimistas designam por era do lazer não são as Cataratas do Niagara ou as Brasílias que não temos os atractivos Europeus para os desejados visitantes japoneses ou das américas. O que traz estes estrangeiros são as nossas cidades históricas e o que os seduz é a cultura urbana de um continente, a Europa, onde essa máxima expressão civilizacional atingiu o seu apogeu. Mas o nosso património urbano não se destina essencialmente aos outros e as suas vocações são hoje, para nós, essenciais, no tempo em que pouco nos reproduzimos, o que torna ainda mais lógica a reutilização de um parque disponível, e perante o descalabro identitário e descontextualizado da especulação urbana que fez iguais as periferias das nossas cidades, de Norte a Sul, e pelo menos de duas das Ilhas. 2. Que revestimentos e quais os seus valores estéticos e históricos Pensamos durante muito tempo que a qualidade da expressão arquitectónica dos revestimentos e superfícies mais usuais em Portugal (provenientes das técnicas da cal), com as evidentes excepções dos azulejos e da ornamentação em pedra, era relativamente pobre ou de muito baixo nível artístico, reduzindo-se em grande medida ao usual branco da cal aérea rematado pelos cores amarelas ou azuis do costume. A sucessão, ainda recente, de uma série de estudos sobre a conservação de revestimentos e sobre alguns monumentos classificados (como os Palácios Nacionais de Sintra e de Queluz) ou sobre a imagem urbana de alguns centros históricos (como em Lisboa e Évora) e da sua arquitectura doméstica, alterou de forma radical esta visão [1]. Sabemos hoje que também em Portugal existiram (mas cada vez menos existem) expressando-se por vezes com elevado nível artístico, técnicas ornamentais de grande valor estético e típicas do mundo mediterrânico. Coimbra teve (e já desapareceram devido à destruição da Alta) e Évora ainda tem esgrafitos que nada ficam a dever aos esgrafitos que nos levam a Segóvia ou a Barcelona, ou até a Florença. A simulação de materiais nobres como a pedra, através de argamassas cuja coloração se obtinha pela selecção dos agregados e pelo controlo das texturas ou por técnicas de pintura de fingidos, era muito corrente nas nossas cidades históricas e ainda hoje muito extensiva no Centro e Sul do país. Os guarnecimentos de pasta de cal e pó de pedra, carregados com cor (ou não) abundavam nas nossas cidades, existindo exemplos, como em Sintra, 3

onde simulavam os aparelhos de tijolo à vista, a madeira (como no semidestruído Challet da Condessa d Edla) ou a pedra, por vezes preenchendo também com cor as paredes de palacetes românticos espalhados pela serra. Os ornamentos exteriores em técnicas de stucco, com ornatos simulando cantaria e relevos em pedra, por vezes intimamente articulados a pinturas murais (a seco ou a fresco) eram extremamente comuns do Norte ao Sul do País (visite-se a esquecida Campo Maior, para se perceber o extraordinário nível artístico que atingiram entre nós estas artes decorativas). Temos até vestígios de simulações, por pintura, de azulejos e de outros materiais geralmente fabricados no litoral e portanto caros no seu transporte para o interior, pelo que nessas zonas eram fingidos recorrendo a pinturas com estampilhas (dos quais persistem hoje muito poucos exemplos em terras do interior como em Évora, Reguengos, Castelo Mendo, Crato, etc.). Na maior parte dos casos estas diferentes técnicas articulavam-se, misturando-se numa combinatória de grande qualidade expressiva. O aumento de sondagens estratigráficas prova também que em muitas pequenas vilas históricas (como por exemplo na alva Monsaraz) a cor era muito frequente e que a exclusividade do branco é um mito demasiado recente, ligado a interpretações estilisticamente selectivas e hiper-nacionalistas da história (a vontade de fazer o Sul de um branco moçárabe e o Norte granítico, tectónico e Românico), ou proveniente de higienismos mais ou menos recentes (dos finais do século XIX ao Moderno). Até ao explodir da revolução industrial os revestimentos e as cores expressavam o forte enraizamento no contexto geográfico e geológico das nossas arquitecturas urbanas. Os materiais de cor, provindo do próprio lugar, das suas terras, pedras e madeiras, diferenciavam com matizes específicos as suas arquitecturas (um ocre de Moura nunca é cromáticamente igual ao ocre de Évora). Assim, os revestimentos e as cores enunciavam também uma estreita ligação entre imagem urbana e o desejo de uma diferenciação identitária, quando essa identidade se afirmava pelo desejo da diferença (Beja não queria ser igual a Évora, tal como Chaves não queria ser igual a Vila Real) e não pela actual imposição de uma extremamente pobre igualdade morfológica e expressiva: escandalosamente visível nas edificações iguais, das periferias iguais, que tornam iguais, do Norte ao Sul do País, as cidades suburbanas que continuamos a teimar fazer. Os revestimentos eram (e são) fundamentais para a fruição da apresentação visual dos monumentos e antigos edifícios, no sentido em que esta é determinante para a reconstrução e interpretação crítica da linguagem arquitectónica, restituindo a possibilidade de leitura do texto original, ou dos textos acrescentados pelo tempo. Os revestimentos estratificam a história sedimentada destas apresentações visuais da arquitectura ao longo da história, constituindo provas materiais de 4

primeira importância sobre as modificações nas formas de comunicação arquitectural. As distintas argamassas, na análise dos seus constituintes e da sua técnica de execução e de aplicação, tornam-se também um importantes testemunho da história tecnológica e cultural a quem deram rosto, ao relatarem (como já explicitaram Pilar de Luxán e F. Borrego) o nível tecnológico de um povo, ao mesmo tempo que nos informam sobre o comportamento e durabilidade da construção perante o micro-ambiente específico a que pertencem e ao qual têm de resistir construções que pretendemos conservar, dado precioso para a própria definição de critérios de intervenção [2]. 3. Da patologia à terapia: alguns problemas 3.1 Problemas téoricos (conservação vs restauro vs renovação) Cesare Brandi definiu como objectivo essencial do restauro: «mantenere in efficienza, facilitare la lettura e trasmettere integralmente al futuro [os valores essenciais da obra de arte]» [3]. Assim, os principais problemas conceptuais que nos ocorrem quando confrontados com vestígios arqueológicos e com provas materiais concretas de cores, superfícies e revestimentos históricos como depois esclareceu Paul Philippot [4] - consiste em determinar até que ponto a sua função estética, na reconstrução da leitura de uma dada arquitectura e imagem urbana, e da sua funcionalidade construtiva enquanto sistema de protecção das alvenarias das paredes - podem ainda ser restabelecidas, ou não. Importa aqui, isto se nos movimentamos no domínio da conservação do património, assegurar o estrito respeito por um outro princípio básico, repetidamente afirmado por Brandi (depois vertido para a Carta de Veneza), de que o restauro termina onde a hipótese começa, reforçado pelo sublinhado de Philippot quando este recomendou interditar toda a hipótese. A imagem de um conjunto urbano está em gradual e perpétua transformação. No entanto a análise e o estudo histórico dos processos de evolução dessa imagem informam-nos que sempre se verificam permanências, traduzidas no respeito por compromissos e a manutenção de tradições (pelo recurso a uma cultura material cujas expressões cromáticas eram limitadas e contextualizadas ao serem dependentes das possibilidades dos lugares). Esses compromissos restringiram, durante séculos, as possibilidades práticas do recurso à cor, submetendo-a a regras com possibilidades combinatórias finitas, o que hoje nos permite a restituição da lógica da evolução dos diversos fácies históricos da cidade ao longo do tempo. E é esta, sem a menor dúvida, a base 5

da gramática de referência que deve guiar as possibilidades de intervenção contemporânea. Num tecido histórico as opções para uma fachada em particular dependem tanto quanto afectam todo o ambiente edificado (e não edificado) envolvente. As decisões de substituição ou do restabelecimento de uma cromia, ou da policromia de um edifício, num dado património urbano, dependem de dimensões formais e espaciais (as relações travadas entre a arquitectura e a cidade) tanto quanto de dimensões histórico-culturais (as relações possíveis entre as cromias originais e as acrescentadas pela história, na evolução de uma policromia do conjunto que estabelece novas e mais amplas unidades), isto para além, evidentemente, das dimensões tecnológicas, dos materiais disponíveis e do grau e tipo de degradação [5]. Atendendo à dimensão do objecto (a cidade histórica), este processo não é, nem pode ser, obviamente estanque. Optar por cromias e superfícies originais num dado edifício pode sacrificar o conjunto urbano a valores excessivamente individuais. A lógica oposta, ou seja, impor um valor colectivo ou tipológico a cada elemento individual, pode anular os valores da autenticidade patrimonial, impondo uma imagem urbana profundamente artificial, que pode nunca ter existido nessa cidade e nesse estágio de completamento. O problema é teoricamente complexo mas, como esclareceram Philippot e Piero Sanpoelesi [6], não é na sua essência substancialmente diferente da problemática crítica inerente a qualquer outra intervenção de conservação e restauro. A resolução do paradoxo implica sempre, como em qualquer outra operação de restauro, uma cuidadosa análise crítica, através da qual, a cidade histórica, como qualquer obra de arte colectiva, deve ser lida e interpretada em toda a sua complexidade e globalidade. Torna-se, assim, imprescindível uma capacidade de síntese crítica que integre a cuidadosa ponderação dos valores em presença (a estudar com métodos da própria história), da autenticidade do momento criativo original às suas relações com a passagem do tempo, que não se podem obliterar, isto tanto ao nível da obra individual (o edifício), como do conjunto onde esta se insere (a cidade histórica). Importa ainda não esquecer que uma intervenção de restauro será sempre, também, uma intervenção de transformação, implicando a consciência do legado histórico a salvaguardar, tanto quanto a perfeita consciência da contemporaneidade da própria intervenção (e da sua historicidade). As maiores dificuldades disciplinares residem hoje exactamente aqui, ou seja, em determinar soluções que ultrapassem o fortuito, a moda momentânea, assim como a tentação da reescrita filológica em novo registo, ou da reposição de um historicismo mais ou menos mimético, mais ou menos kitsch. Outros problemas teóricos, ainda hoje não completamente pacificados prendem-se com o grau de intervenção e de alteração admitidas, ou seja, determinar até que ponto podemos e devemos conservar os materiais originais 6

recorrendo a uma panóplia, cada dia mais ampla, de técnicas e de produtos químicos mais ou menos milagrosos (como os adesivos e os consolidantes) ou devemos proceder à sua reposição com técnicas e materiais o mais similares possíveis. Esses conflitos reenviam-nos constantemente para a constante (eterna?) dialéctica entre conservação e restauro, a qual infelizmente em Portugal ainda tende mais para a estabelecer-se entre a esfera do restauro vs renovação. Ou seja: até quando e como podemos, ou devemos, preservar os originais e a partir de quando e como devemos aceitar a sua substituição por soluções materialmente o mais similares possíveis, mas claramente distinguíveis nos modos e no tempo da sua execução. A essência deste debate ficou marcada pela tentativa infrutífera, em 1987, de substituir a celebérrima (para o mundo da conservação) Carta Italiana do Restauro de 1972 [7], por uma nova Carta da Conservação e Restauro de Objectos de Arte e Cultura [8]. Os questionamentos da Carta de 1972 (ainda em vigor) surgiram intimamente associados aos princípios da Teoria del Restauro de Brandi, assentando essencialmente na constatação crítica de que esta Carta estendia para a arquitectura e para o património urbano, princípios de conservação desenvolvidos sobretudo para aplicação em obras de arte móvel (pintura de cavalete, estatutária, ou obras essencialmente artísticas como por exemplo a pintura mural), nas quais sempre se privilegiam os aspectos visuais sobre os aspectos construtivos, estruturais ou funcionais, aspectos essenciais para as disciplinas da arquitectura e do urbanismo. Começou assim um questionamento da primazia da «instância estética» defendida por Brandi, ou seja o entendimento da arquitectura como acontecimento eminentemente visual, preferindo-lhe a sua assunção como resultado de um processo (encomenda, programa, projecto, obra, etc.) que resulta de uma multiplicidade de actuações, com grande pluralidade de protagonistas (e portanto, também de autores ). Marconi, o principal inspirador desta reacção às ideias de Brandi, considera as contradições apontadas como uma incompreensão de fundo da própria essência da arquitectura, que afectaria uma das suas mais íntimas constantes: a importância da relação entre forma e construção. Sustenta assim uma crítica mordaz ao absoluto respeito pela imagem e pelas pátinas superficiais, que considerou excessivo face à relativa permissividade com que sempre se acolheu a consolidação material dos elementos tectónicos, que alteram dramaticamente a construção e estruturas não visíveis mas não menos essenciais para o valor de uma arquitectura, enquanto tal [9]. É de facto verdade que a arquitectura está submetida a uma amplitude de agressões de diversíssima origem, abrangendo desde a sua situação em ambiente mais agressivo (a exposição exterior aos elementos da natureza), até ao mau uso e abusos dos utilizadores, aos riscos acrescidos de segurança 7

(sismos, fogo, intrusão, ao uso, etc.), aspectos que se tornam impossíveis de controlar com métodos de abordagem similares aos aplicados à arte móvel. Acrescem a estes os problemas da manutenção corrente, sobretudo no caso de conjuntos urbanísticos extensos, por exemplo - se aceitarmos o conceito dos acabamentos como «camadas sacrificiais», as quais têm de ser ciclicamente renovadas para preservar a qualidade estrutural e construtiva dos imóveis -, o que frequentemente nos obriga a medidas de renovação «estética» que se revelam, na prática, fora do espírito e âmbito da Carta de 1972. Os revestimentos, ao serem ao mesmo tempo soluções de expressão - e portanto do maior interesse para a fruição visual da arquitectura e soluções de protecção ao garantirem adequadas condições de funcionamento das paredes -, resolvendo estes objectivos em forma auto-sacrificial quer dizer, degradando-se para que o interior das paredes não se degrade sempre exigiram a capacidade de um saber fazer que permitisse a sua renovação, ainda que parcial. Estamos assim, sempre na fronteira entre a conservação e o restauro, que aqui sempre significa resolver lacunas cada vez mais amplas, as quais sejamos claros em demasiados casos e muitas das vezes se aproximam demasiado de uma renovação extensiva. Na evolução deste debate, ainda sem final anunciado, resulta que hoje se tornou particularmente importante não só aceder e dominar as técnicas de conservação estrita, quer dizer, aquelas que nos permitam conservar e manter os elementos originais de uma construção, como também dominar as técnicas e saberes que nos permitam refazer e renovar em forma estética e funcionalmente compatíveis - elementos cuja continuidade não possa ser já garantida pelas técnicas e meios disponíveis (também pela economia) mas que são imprescindíveis para a própria conservação das arquitecturas. 3.2 Problemas de projecto Neste domínio importa cada uma das nossas disciplinas não alijar as suas responsabilidades específicas. Assim e entre nós, penso que a arquitectura, enquanto disciplina do conhecimento humano, tem investido demasiado pouco - ao nível da investigação, da produção, e sobretudo da transmissão e do intercâmbio de conhecimento - no aprofundamento das suas vocações e capacidades próprias no domínio da conservação e do restauro. São conhecidas as dificuldades existentes na necessária e gradual alteração da sua praxis projectual concreta, até hoje eminentemente concentrada sobre o projecto do novo, atendendo às prementes necessidades que a reciclagem e reutilização do existente colocam [10]. Digo isto aceitando o argumento de que as capacidades de projecto não são distintas entre estes dois domínios de actividade, mas reafirmando a importância do conhecimento e da necessidade da sua integração nas 8

decisões de síntese projectual neste domínio; não esquecendo todas as dificuldades colocadas no lado da construção, perante a baixíssima qualidade dos operadores genéricos (i.e. sem alvará) quando se aproximam deste sector específico de actividade. Nas últimas três décadas ou seja no período de meias tintas em que ainda estamos, entre o fim da cultura da construção dita tradicional e o início de uma cultura industrial avançada, disponibilizando agentes informados e tecnicamente capacitados para operar em reabilitação e restauro, que ainda estamos longe de ter - o problema de conservar e/ou restaurar cores, superfícies e revestimentos históricos na arquitectura e património urbano pura e simplesmente não se colocava: o que todos fizemos durante demasiado tempo foi recomendar picar até ao osso, renovando rebocos e pinturas. Foram muito poucos os cuidadosos, ou mais sabedores, que recomendaram e conseguiram a (re) utilização de argamassas e pinturas com cal aérea, sendo que a imensa maioria acabou por pintar com as novas tintas de areia e ou de água. Coincidente com este difícil período que ainda vivemos foi o desaparecimento do património intangível dos saberes, ou seja o generalizado abandono das tecnologias artesanais (artes da cal) a que acresceu a longa demora na disponibilidade (ainda por resolver) de novos tipo de técnicos, os Restauradores (e também arquitectos e engenheiros restauradores, ou seja com adequada especialização em conservação e restauro), que possam projectar, dirigir e fiscalizar os trabalhos de maior responsabilidade. E friso bem Restauradores pois não me estou a aqui referir aos apressados detentores de cursos secundários que usam e abusam desse almejado título, que já tem adequada regulação profissional no quadro de uma corporação digna desse nome. 3.3 Problemas técnicos e científicos ainda por resolver De forma excessivamente simplista poderíamos dizer que os principais problemas dos antigos revestimentos e suas superfícies derivam das seguintes e principais somas de razões: causas humanas (dos erros de projecto e de execução, ao mau uso e escrita vandálica); a degradação provocada pela exposição aos agentes naturais e, sobretudo da presença da água (nas suas diversas fases); o ataque biológico (biodeterioração). As mais graves anomalias surgem da substituição pura e simples dos revestimentos, resultando em perda de coerência nas formas de apresentação da arquitectura por perda de camadas de cor, texturas e materiais originais, a que se somam as diferentes formas de agressão ou intervenção física directa (incluindo a escrita vandálica), a fendilhação e fissuração, a perda de aderência aos suportes e entre camadas, a perda de coesão interna e desagregação das argamassas [11]. 9

Desde há já algumas décadas que a forma de lidar com este tipo de problemas mudou de forma radical: da sistemática renovação evoluiu-se para a conservação e restauro, procurando manter in situ o maior número de partes e elementos originais, e refazendo as lacunas com técnicas o mais similares possíveis às preexistentes. Uma das razões dessa evolução (não a única), prende-se com o amplo desaparecimento dos revestimentos antigos, que tornam as fachadas ainda revestidas com técnicas de cal e mantendo ainda a sua ornamentação e superfícies originais, exemplos cada vez mais raros e portanto adquirindo um novo e maior valor em termos patrimoniais. A salvaguarda e manutenção dos rebocos, guarnecimentos e pinturas antigos obriga à sua cuidadosa limpeza e tratamento, o qual em geral consiste na sua consolidação seguida da colmatação e reintegração das lacunas existentes, por vezes terminando por aplicar um sistema de protecção (camadas sacrificiais) recorrendo a velaturas ou novas pinturas com técnicas e materiais compatíveis. Para proceder a estas operações, altamente especializadas, tem-se procurado simplificar algumas técnicas derivadas da conservação e restauro da pintura mural, ou do tratamento e consolidação das pedras porosas, adaptação que apenas na duas últimas décadas foi iniciada e que está muito longe de estar concluída [12 e 13]. Tem-se também articulado o desenvolvimento dessas técnicas específicas de consolidação com a retoma do emprego de materiais e tecnologias ancestrais, utilizadas cada vez mais extensamente na execução das novas partes a refazer, pois estas têm sido julgadas e defendidas por muitos como as mais compatíveis tanto em termos estéticos, como mecânicos e químicos, ao que acresce o importante factor de que minimizam os problemas decorrentes do processo de envelhecimento diferencial entre antigas e novas partes. Torna-se evidente também que, nestes processos de translação para a industria dos métodos desenvolvidos para operações de conservação estrita, se torna fundamental hoje conseguir simplificar e tornar mais seguras (sobretudo para os executantes) algumas destas técnicas, colocando-as ao alcance de aplicadores pouco especializados e permitindo atingir os rendimentos em obra que garantam a sua viabilidade económica. Quanto à retoma das soluções e dos materiais tradicionais, existem hoje demasiados hiatos em conhecimento que importaria muito resolver. Ainda que o LNEC [14] e outros centros de excelência como o IST e a Universidade Nova já tenham iniciado algumas vias de investigação e experimentação nesta área, importaria, por exemplo, continuar a aprofundar o estudo e a testar mais amplamente diferentes formulações de caiações (aditivadas ou não), nomeadamente procedendo à avaliação do seu desempenho quando aplicadas: (i) sobre suportes executados com argamassas de cal, de cal e pozolanas naturais, ou de cal e caulino; (ii) sobre argamassas bastardas executadas com baixas percentagens de cimento e de cais hidráulicas com baixo teor de sais 10

solúveis; (iii) sobre argamassas de cal executadas com cais impuras do tipo vulgarmente designado por cal de obra, cal parda ou, ainda, cal preta, ligantes que apresentam propriedades naturais ligeiramente hidráulicas e que em algumas zonas do país, como no Alentejo, eram muito mais frequentes em rebocos antigos do que a mais conhecida cal branca, a qual geralmente se reservava para os acabamentos. Sabendo-se da importância dos pigmentos portugueses - Portugal, desde a antiguidade clássica e até aos anos 50, foi um dos maiores produtores mundiais de pigmentos vermelhos e de ocres obtidos com terras naturais -, importa sublinhar que, até hoje, continuamos a não dispor de estudos caracterizadores das principais fontes nacionais desses pigmentos, o que nos permitiria registar as suas principais características cromáticas (para além das físicas, químicas e mineralógicas). Tal estudo é muito importante para podermos propor a reintrodução de colorações próximas dos valores cromáticos da história, facilitando em muito a definição de atlas cromáticos de referência que possibilitem a reprodução in loco ou até o fabrico pela indústria de novas tintas com melhor compatibilidade cromática (e de aspecto, por exemplo de textura) para com as antigas arquitecturas e revestimentos, para além de funcionalmente compatíveis [14]. Importaria aqui, e ainda, realçar a importância de: estudar e desenvolver técnicas e produtos de limpeza que permitissem uma mais fácil e mais barata manutenção das fachadas (hoje praticamente inexistente e constituindo um aspecto fundamental para manter fachadas com técnicas da cal); conhecer melhor outros tipos de pinturas minerais, como as tintas de silicatos de potássio, actualmente em fase de grande expansão no mercado da reabilitação urbana (ainda que este tipo de estudos já tenham sido também iniciados no LNEC [15]), nomeadamente utilizando pigmentos mais adequados e mais próximos das colorações históricas, pois na aplicação recente deste tipo de tintas tem-se verificado que as cores hoje disponíveis em catálogo são profundamente estranhas à nossa realidade (aspecto parcialmente resolvido em outros países como a Alemanha e a Itália, onde os fabricantes desenvolveram meios de obter tonalidades que satisfazem necessidades específicas, chegando até a produzir atlas cromáticos locais específicos, como sucedeu por exemplo em Turim). 4. Por fim: alguns princípios e conceitos a não esquecer 4.1 «Autenticidade» A autenticidade é um valor patrimonial não totalmente esclarecido ou pacificado, porque sempre dependente da diferente realidade das diferentes culturas - o que é genuíno e autêntico para uma cultura, pode não o ser para 11

uma outra -, abrangendo uma pluralidade de facetas como a autenticidade estética, a autenticidade histórica, a autenticidade documental, etc.. Esta somas de questões estão em geral ligadas ao problema fundamental da procura e do alcance da verdade (estética e científica) em todo o processo de conservação, da fase de análise e processo de projecto à intervenção concreta nos objectos patrimoniais, documentando o caminho tomado, com verdade e rigor. Ao nível dos revestimentos este princípio implica que se desenvolvam esforços no sentido de manter ao máximo os materiais, as técnicas e suas expressões estéticas originais, assim como a mais-valias deixadas pela passagem do tempo, ao mesmo tempo em que nos obriga a identificar, no pormenor, as alterações, acrescentos e novos materiais introduzidos. 4.2 «Inteiro Conhecimento (do objecto)» As decisões respeitantes à conservação devem ser fundamentadas num conhecimento completo e rigoroso do objecto patrimonial sobre o qual incidem. Isto implica estudar profundamente o contexto físico e cultural do bem patrimonial, aceitando toda a sua história (e não seleccionar apenas parte desta), considerando os edifícios antigos como «documentos» onde se regista a passagem do tempo, pelo que não é legítimo remover (-lhes) sedimentos dessa história. Implica também perceber as modificações introduzidas no tempo e avaliar a sua importância relativa na afectação do(s) valor(es) do objecto. 4.3 «Intervenções Mínimas» Implica desenvolver esforços no sentido de manter o mais possível os materiais e partes originais, evitando a sua substituição através de acções de renovação extensivas, ou excessivamente substitutivas. Ao nível dos revestimentos, a aplicação deste princípio implica evitar ao máximo a remoção, alteração e/ou substituição das preexistências, optando por intervenções que minimizem os impactos sobre o existente. Implica também estabelecer uma noção de graduação no processo de tomada de decisões, isto é: antes manter que reparar; antes reparar que restaurar; antes restaurar que renovar. Este processo de decisão tem também óbvias dimensões técnicas, relacionadas com a degradação do existente [5]. 4.4 «Compatibilidade» As tecnologias e os materiais a mobilizar para a conservação, restauro ou renovação de revestimentos, devem possuir características químicas, físicas, e termomecânicas compatíveis com os materiais utilizados nas partes antigas. 12

Os novos elementos a introduzir não deverão possuir comportamentos diferenciais relativamente às partes antigas, apresentando um desempenho e uma capacidade de envelhecimento similar aos dos materiais originais. Idealmente, conforme progride o processo natural de degradação, os novos materiais deveriam poder degradar-se primeiramente, sem provocar consequências indesejáveis nos materiais mais antigos. A aplicação do princípio da compatibilidade à conservação de revestimentos é, no entanto e na prática, muito controversa. Por exemplo, a maior parte dos materiais hoje disponíveis para proceder à consolidação de rebocos e de pinturas murais são de origem orgânica, portanto muito diferentes em termos de constituição química dos compostos inorgânicos. Para Giorgio Torraca, o princípio da compatibilidade requer que, e cita-se: «(...) the composite formed by ancient and modern should behave in a favourable way in the expected environmental conditions. In the ideal case, when deterioration of the treated object starts anew, as must inevitably happen sooner or later, the modern material should decay first without undesirable consequences for the ancient one (fail-safe design) (...) Mechanical compatibility should insure that mechanical properties are properly matched and that it is unlikely for original parts to become over-stressed because of differential thermal expansion, or the movements imposed by the environment; Physical compatibility involves the matching of such properties as porosity and water vapor permeability and the future behavior of the composite when exposed to water. Chemical compability should provide insurance against the risk that by-products formed in setting reactions (e.g. soluble salts) or decomposition products (e.g. sulphur-containing gases) of the material used in conservation might cause damage to the object we intend to preserve. Total compability is obviously a very difficult goal, but the task may be made easier by reducing the stresses caused by environmental conditions (e. g. by reducing light exposure, temperature and humidity fluctuations, and contact with moisture» [16]. Sobre este tema dos conceitos e sobre a «compatibilidade» consulte-se ainda o sintético e pioneiro texto de Fernando Henriques «A Conservação do património histórico edificado», assim como os resultados do Projecto de Investigação Old Renders, co-financiado pela Agência de Inovação onde se procurou identificar as características envolvidas na compatibilidade de argamassas para rebocos e quantificar os parâmetros que a devem definir, ambos os documentos editados pelo LNEC [17 e 14]. Comment [JA1]: foto de budapeste com ebvelhecimento diferencial 4.5 Reversibilidade Este conceito, muito popular, pressentiu-se no articulado da Carta de Veneza, mas na realidade apenas mais tarde foi teorizado pelo Art. 8º da Carta Italiana del Restauro de 1972, onde se afirma que todas as intervenções de restauro: «(...) 13

devem realizar-se de tal forma e com tais técnicas e materiais que possam dar a segurança de que no futuro sejam possíveis novas intervenções de salvaguarda ou restauro». Com esse objectivo, importa garantir que um dado material ou solução construtiva possam ser removidos no termo da sua vida útil, isto sem causar danos aos restantes materiais que com eles contactem, sem afectar de forma decisiva a autenticidade da obra e sem implicar excessivos custos na sua remoção. Na realidade, e mais uma vez, o princípio da reversibilidade é controverso e de difícil, por vezes impossível, aplicação aos revestimentos e acabamentos arquitectónicos correntes (ou seja, aqueles que não possuam um valor artístico excepcional, como é o caso de algumas pinturas murais). Giorgio Torraca define o mesmo conceito da seguinte forma: «The principle of reversibility states that it should be possible to undo what is done for conservation purposes without undue risks for the original material or excessive cost. The empirical basis of this principle is obviously the difficoulty met by modern conservators in removing deteriorated materials used with the best of intentions by previous generations» (Cf., G. Torraca, ob. cit., p. 2; sobre o mesmo tema, consulte-se Fernando Henriques, ob. cit., p. 4.) [16 e 17]. Dória Rodrigues da Costa, já apontou também o paradoxo que existe entre o desejo de reversibilidade e a garantia de estabilidade, e cito: «O carácter reversível implica desequilíbrio, instabilidade, de forma a ser possível voltar ao ponto de partida, contudo e no caso de ser adequado, um tratamento de conservação que apresente estas características não será estável no tempo e perderá a sua eficácia rapidamente» [18]. As tecnologias disponíveis de consolidação, fixação, ou de reintegração são quase sempre, na prática, irreversíveis. Depois de aplicar a maior parte dos produtos de tratamento depois e em geral é muito pouco económico retirá-los, pelo que cada vez mais se põe o acento tónico na possibilidade da repetição futura dos tratamentos agora desenvolvidos, sem afectar as propriedades básicas dos materiais históricos. 4.6 «Manter», depois de restaurar A ausência de uma manutenção continuada, provoca sempre a necessidade de proceder ao restauro, sempre mais caro. As exigências e implicações futuras da manutenção devem ser consideradas com o maior cuidado nas actuais intervenções. Assim, de pouco serve aplicar agora uma técnica ou produto que, passados alguns anos (como já sucedeu com alguns produtos ditos milagroso ) deixe de existir no mercado, ou que obrigue à sua remoção, da qual resulta a danificação ou a necessidade de refazer os revestimentos que originalmente se pretendia preservar. 4.7 Da Reversibilidade para a «Repetibilidade, Reaplicabilidade e/ou Reparabilidade» Devido à questão central da manutenção, já focada no ponto anterior, nos últimos anos e nos encontros de especialistas em restauro e conservação, cada vez mais se fala em algo que poderíamos recolher num novo conceito, ainda não suficientemente teorizado ou balizado por cartas internacionais, trata-se do que 14

poderíamos chamar de repetibilidade, ou reparabilidade, ou ainda de reaplicabilidade nos processos e materiais de intervenção, ou seja: a capacidade de repetir a aplicação de um determinado tratamento no tempo, sem que dessa repetição resultem danos, incompatibilidades ou alterações substantivas nas propriedades físicas, químicas e de aspecto dos materiais tratados. Essencialmente, deseja-se agora que um tratamento hoje executado ainda que irreversível não prejudique nem inviabilize tratamentos futuros. Alguns produtos, actualmente muito utilizados em consolidação de materiais, como certos compostos inorgânicos porosos, não sendo reversíveis, permitem, em geral, a retratibilidade dos materiais assim tratados pois não alteram significativamente as sua principais características físicas (como o aspecto e a porosidade) e químicas dos revestimentos minerais, podendo converter-se em produtos quimicamente amorfos, ou seja em apenas mais um elemento inerte, no interior dos antigos revestimentos. Outros produtos, como, por exemplo, algumas variantes dos silicones vulgarmente utilizados para hidrofugar materiais porosos, são inicialmente irreversíveis mas ao fim de alguns anos tornam se reversíveis por gradual quebra das ligações químicas com os materias que recobrem. Assim o produto aplicado vai desaparecendo e após alguns anos é possível proceder, de novo, à (re)aplicação desse mesmo produto, sem assim se provocarem alterações substanciais nas propriedades do material original. O principal problema na aplicação mais generalizada deste novo conceito reside em que, para a maioria dos produtos de tratamento que hoje se utilizam em restauro ou em conservação, se desconhece a forma como, a longo prazo, interagem com os constituintes dos materiais originais. Também se desconhece como se irá processar, a longo prazo, o processo de envelhecimento conjunto dos novos compostos agora produzidos. Assim, tem-se conjugado o novo princípio da reaplicabilidade e/ou da reparabilidade com o conceito de fail-safe, ou seja, aceitando a inevitabilidade da deterioração, os materiais modernos aplicados nos restauros devem poder degradar-se primeiro, e sem consequências de maior, para o material original, ou mais antigo. Importa, por fim, destacar ainda os conceitos de «eficácia, nocividade e durabilidade» que se tornam cada vez mais importantes e usuais no processo de avaliação e selecção dos produtos e dos processos de tratamento a empregar na conservação, nomeadamente de revestimentos [18]. 5. Como conclusão O acto de conservar, ou de restaurar, passa a fazer parte integrante da história do objecto sobre o qual incide, pelo que deve ser reconhecível e ficar claramente registado. Exige-se assim ao "conservador" ou ao restaurador a plena consciência da historicidade da sua intervenção, já que esta inevitavelmente influencia e altera a história material do objecto, assim como se lhe exige - cada vez mais - a percepção de que a sua é, apenas, mais uma das muitas intervenções que afectam a evolução de uma vida que se deseja longa. 15

A nós, arquitectos e engenheiros, estas questões obrigam-nos a um grande respeito pela subsistência da materialidade nos edifícios históricos, exigindo uma prática pluri e interdisciplinar, que integre profundos conhecimentos artísticos, científicos e técnicos e, sobretudo, uma extraordinária humildade intelectual e de contenção autoral, particularmente difíceis de manter nesta nossa sociedade do (sobre)culto da imagem e do consumo. Devemos também discutir mais e mais abertamente o conceito aspecto fulcral da disciplina da conservação e que entre nós monosprezamos demais que sempre deve presidir, conduzindo, o desenvolvimento da conservação. Ao nível dos revestimentos e acabamentos, como magistralmente sintetizou Cesare Brandi (na sua célebre Teoria), devemos conseguir restaurar a unidade estética dos edifícios (e também dos pedaços de cidade histórica a que hoje chamamos Centros Históricos) sem proceder a falsificações ou abolições da própria história, o que só se consegue através de uma cuidadosa avaliação crítica dos valores presentes e da minimização dos seus conflitos, garantindo o equilíbrio entre os valores estéticos e os valores históricos a preservar através da definição de um conceito de «apresentação» da obra (dos edifícios), que sempre se deve verter e traduzir em Projecto (que aqui vale a pena sublinhar com um P grande). Termino por agradecer, reconhecido, as sugestões e a revisão científica deste texto efectuada pela Eng.ª Maria do RosárioVeiga, minha colega do Departamento de Edifícios do LNEC. Bibliografia e Notas [1] Aguiar, José - Estudos Cromáticos nas intervenções de conservação em centros históricos. Dissertação de Doutoramento, Universidade de Évora, 1999. [2] Pilar de Luxán, M.; Dorrego, F. - Morteros antiguos y la intervencion en el patrimonio, em Actas do Seminário Intervenção no Património Práticas de Conservação e Reabilitação. Porto, FEUP-DGEMN, 2002. [3] Brandi, C. - Teoria del Restauro. Picola Biblioteca Einaudi, Turim, 1963 (2ª ed. de 1977), pp. 133-154. [4] Philippot, P. - La restauration des façades peintes: du problème critique au problème technique, em Facciate Dipinte, conservazione e restauro, Atti del convegno di studi. Genova, Sagep Editrice, 1982, pp. 105-107. [5] Veiga, M. Rosário; Aguiar, J. - Definição de estratégias de intervenção em revestimentos de edifícios antigos. 1º PATORREB, Porto, FEUP, 2003. [6] Philippot, P., ob. cit., (1982); Sanpaolesi, Piero - Discorso sulla metodologia generale del restauro dei monumenti. Florença, Editrice Edam, 1973. [7] Carta del Restauro de 1972, imposta por força de lei às superintendências e institutos autónomos italianos, por circular nº 117 de 6-4-1972 do Ministero della Pubblica Istruzione. [8] Publicada em italiano em Arte/Documento, Milão, Electa, 1988; tb. Giornale dell Arte, nº 57. Turim, Ed. Allemandi, 1988; em versão inglesa encontra-se em: Richerche di Storia dell Arte. Roma, NIS, 1988; em castelhano e 16

traduzida por Maria Justícia - Antología de textos sobre restauración, Jaén, ed. Universidade de Jaén, 1996, pp. 195-239. [9] Marconi, P. - Il progetto di restauro come disciplina squisitamente appartenente alla cultura architettonica, em Il Progetto di restauro, Atti della Giornata di Studio, S. Michele. Roma, Soprintendenza per I beni ambientali e architettonici di Roma, 1994. [10] Aguiar, J. - Memória, cidade e projecto, Questões e paradoxos na conservação do património arquitectónico e urbano, em I Congresso da Ordem dos Arquitectos Portugueses. Évora, OA, 2000. [11] Magalhães, A. Cristian - Patologia de Rebocos Antigos, em Cadernos Edifícios 2. Lisboa, LNEC, 2002, pp. 69-85. [12] Milene, Casal - Conservação de Pintura Mural, Estudo e consolidação de argamassas de cal aérea e areia com falta de coesão. Lisboa, LNEC, 2002. [13] Aguiar, José, Tavares, M. Lins; Veiga, Rosário Veiga, M. - Consolidação de revestimentos exteriores (rebocos e barramentos) de edifícios antigos. Reflexões para um plano de estudo. Lisboa: LNEC, Setembro de 2001. Relatório 216/01-NA. [14] Veiga, M. Rosário et al. - Methodologies for characterisation and repair of mortars of ancient buildings. International Seminar Historical Constructions 2001, Guimarães, Universidade do Minho, Novembro de 2001. Da mesma autora veja-se ainda: Veiga, M. Rosário et al., Metodologias para Caracterização e Conservação de Argamassas de revestimento de Edifícios Antigos. Relatório final do Projecto OLDRENDERS (co-financiado pela Agência de Inovação). Lisboa: LNEC, Outubro de 2001 e ainda Veiga, M. Rosário & Carvalho, Fernanda Argamassas de reboco para edifícios antigos. Requisitos e características a respeitar. Cadernos de Edifícios, nº 2. Lisboa: LNEC, Outubro de 2002. [15] Tavares, M.; Rosário Veiga; Isabel Eusébio, M. - Uma solução actual para acabamentos de paramentos exteriores de edifícios antigos: As tintas de silicatos. LNEC, Lisboa, 2002. [16] Torraca, G. - The scientist s role in historic preservation with particular reference to stone conservation, em Conservation of Historic Buildings and Monuments. Washington, National Academic Press, 1982, p.4. Sobre o tema veja-se ainda de Torraca, G. - Processes and Materials used in Conservation. Roma, ICCROM, 1980; Torraca, G., - Porous building materials. Roma, ICCROM, 1982 e ainda Torraca, G. - Definizione delle proprietà richiesta per le materie prime (leganti e inerti) e I prodotti finali (malte e intonaci), em Intonaco, colore e coloriture nell edilizia storica, Atti del Convegno di Studi, Roma 15-17 Outubro 1984, em Bolletino d Arte, supl. 35/36, I-II, 1986. [17] Henriques, F. - A Conservação do património histórico edificado, Memória nº. 775. Lisboa, LNEC, 1991. [18] Costa, Dória - Métodos de avaliação laboratorial de tratamentos de conservação aplicados em rochas graníticas. Lisboa, LNEC, 1998, p. 10. 17