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Transcrição:

6 Conclusão O que pode a multidão? Sendo sua condição imediata a passionalidade, sendo a imaginação a maneira predominante de perceber a si mesma e às coisas, poderíamos supor que a resposta espinosista não difere muito da hobbesiana: à multidão cabe obedecer, e isto já é o bastante, considerando que, abandonada em seu estado espontâneo, a multidão muitas vezes sequer chega a poder ser dita uma só e a mesma. Todavia, nosso esforço foi mostrar que esta espontaneidade é, ao mesmo tempo, a maneira pela qual a multidão institui seus modos de vida, sem que nada que lhe é externo ou transcendente intervenha. A transcendência do poder é, antes de tudo, captura ou apropriação por uma parte do corpo desta multidão de sua potência instituinte. Logo, só é transcendência a partir do momento em que se institui na imaginação uma expropriação equivalente, isto é, quando a multidão sequer chega a se compreender a si e as suas próprias necessidades como produtos da existência comum. A dominação estabelece seus latifúndios diretamente nos corpos e nas mentes dos dominados e indiretamente sobre as coisas. Eis porque ela é sempre causa e efeito de uma condição em que a obediência é o máximo do que se pode. A necessidade da transcendência é afastada por Espinosa desde a ontologia. A ideia de constituição torna clara a atividade dos atributos como simultaneidade expressiva de uma multiplicidade produzindo a si mesma numa só e mesma ação. Aplicada à essência divina, afasta, pois, a possibilidade de pensar o absoluto como composição, ou seja, através das noções de todo e parte, o que demandaria a intervenção de uma finalidade ou sentido externo desta união de partes. A composição de partes só se aplica à existência modal, não porque a substância transcende suas afecções, mas pelo fato de que existência modal não pode ser explicada pela própria constituição ou essência do modo: sendo existência em outra coisa, essa constituição é ao mesmo tempo relação com outra coisa, a partir da qual ela é e é concebida. Sua constituição é individuação; individuação como inscrição num movimento causal infinito de determinações relacionais, pois não pode ser por sua natureza simultaneidade expressiva. Do ponto de vista dos modos finitos, participar é ser causa de efeitos a partir dos

159 encontros, relações de composição-decomposição, com outros modos, o que explica a natureza da duração, não pelo tempo, mas pelo modo como flui das coisas eternas. Neste sentido, a duração explica propriamente os modos. Durar é uma forma individuante da eternidade. O infinito próprio que corresponde aos modos. Os modos compõem-se entre si nos seus atributos em diversos graus, formando indivíduos mais ou menos complexos, ao infinito. A constituição dos indivíduos compostos é tal que a proporção global de movimento e repouso entre as partes pode continuar a se reproduzir nas suas relações com outros corpos. Um indivíduo composto é capaz de sofrer simultaneamente, sem alteração de sua forma, variações determinadas pelas interações de suas partes entre si, pelas interações de cada uma das suas partes com o ambiente ou por suas interações globais enquanto indivíduo com outros corpos. Essa é sua essência atual ou seu conatus, como dirá Espinosa na Parte III da Ética. A força de perseveração, potência para a produção de efeitos capazes de manter os modos na duração efeitos corporais e ideativos - é, antes de tudo, um conatus ou esforço pelo qual o corpo busca, tanto quanto possível, aquilo que coopera na manutenção seu equilíbrio interno e no restabelecimento deste equilíbrio quando rompido por forças externas. E sendo a mente ideia do corpo existente em ato, o mesmo esforço se exprime nela como afirmação daquilo que estimula ou aumenta a potência de agir do seu objeto, aumentando e estimulando simultaneamente a potência de pensar. Estes efeitos são afecções. Vimos que é por meio deles que os corpos e mentes exprimem um estado de sua essência. Não que a essência de um modo finito, tomada em si mesma, seja variável: isto suporia que a essência pode se tornar diferente do que é, negando-se seu caráter de afirmação certa e determinada da substância. A variabilidade do modo finito é existencial: na sua efetuação na existência, a essência do modo finito admite, pois, variações sem um número definido e sem referência a um tempo definido. No caso dos seres humanos, estas variações nada mais são do que configurações do desejo. Na ausência de um objeto predeterminado, o desejo define-se como um desejo essencial de todo ser por si mesmo, ou como esforço de afirmação da sua própria potência cujo sentido não se encontra naquilo que lhe é externo, senão enquanto isto pode corroborar uma tal afirmação. Deste modo, Espinosa define o que é útil ao homem não a partir de uma hierarquia de bens, mas a partir da aptidão à experiência do múltiplo

160 ou da potência para composição de relações com muitos outros corpos. Os modos finitos encontram-se, então, numa situação tal que expressam apenas parcialmente aquilo que podem, produzindo efeitos que não podem ser explicados apenas por sua natureza. Neste sentido, a variação de estados ou de constituição da essência é uma variação entre atividade e passividade, mental e corporal. Esta variabilidade determina o maior ou menor grau em que um corpo pode afetar e ser afetado e, simultaneamente, a maior ou menor potência da mente para compreender os efeitos dos corpos externos em nós e de nosso corpo em outros corpos. A percepção destes efeitos pela imaginação determinará uma estrutura teleológica do desejo: o que antes era consequência necessária do esforço por perseverar em nosso ser afastar a tristeza e alegrar-se é agora deslocado como finalidade, telos em direção do qual nos movemos. E isto produz uma segunda e não menos fundamental inversão, já mencionada anteriormente: o desejo agora passa a ser desejo de alguma coisa, na medida em que julgamos desejar livremente um objeto qualquer, que consideramos como meios para satisfação destes desejos. As transferências afetivas fundadas na imaginação determinam o investimento do desejo humano em determinados objetos, mas também a imitação dos afetos de outrem. Estes dois aspectos da vida afetiva bastam para explicar a experiência em comum de afetos entre os seres humanos, seja pela coincidência de objetos de desejo, seja pela simples imaginação de algo semelhante a nós afetado de alguma maneira. Mas entre dizer que os afetos são experimentados em comum a dizer que são os mesmos afetos, há uma distância muito grande. Embora os afetos só possam ser compreendidos adequadamente pelas suas propriedades comuns, as alegrias e tristezas, amores e ódios, dependem das disposições corporais dos indivíduos singulares, do seu regime imaginativo próprio organizado pelo hábito, pelo qual se forma uma memória, uma dinâmica de encadeamento das imagens entre si e dos afetos que eventualmente lhe correspondem. O encadeamento das imagens e afetos no tempo é, para os indivíduos que a experimentam, reconhecimento de um passado a partir de seus presentes e projeção de seus futuros, expectativas de repetição das alegrias e receio de repetição das tristezas. Com isso, se instaura no seio de seu esforço de perseverança uma instabilidade que só as ideias adequadas, pelas quais compreendemos as coisas como necessárias, poderão minimizar. Instabilidade

161 ligada ao fato de que, uma vez que nossas causas de alegria e tristeza estão associadas a tais imagens das coisas que uma vez nos afetaram e, sendo atualmente afetados por outras imagens que excluem a existência presente das primeiras, nossa recordação envolve insegurança quanto à sua presença ou ausência no futuro. Levados por nossas esperanças e medos, que atuam em conjunto, padeceremos de uma flutuação de ânimo e, tal como na experiência simultânea de amor e ódio, seremos arrastados pelas causas externas. Podemos falar, então, de uma determinação coletiva do desejo pela imaginação, ou o que é o mesmo, um direito natural comum. Os objetos de desejo tornam-se comuns pela imitação dos afetos, na medida em que, de início, os objetos de desejo concernem aos afetos de um indivíduo singular que se esforça por obtê-los. Mas esta situação, se bem que possamos concebê-la a fim de compreender adequadamente o funcionamento do conatus, é abstrata. Pois o esforço de perseverar é sempre um esforço comum, ainda que não em comum: o estado de natureza, tal como definido por Espinosa, é um estado onde predominam as discrepâncias das naturezas humanas entre si e não necessariamente de predominância das paixões tristes, dado que é da natureza dos afetos passivos determinar variações de constituição ou de estados da essência humana. Pelo fato destes afetos não envolverem apenas a nossa própria potência, mas também a potência das causas externas, torna-se impossível precisar de antemão a variabilidade das essências. O que predomina no estado de natureza é a instabilidade e a inconstância das relações humanas, que oscilam, violentamente, entre circuitos de ódio e amor, entre inimizades e amizades, de acordo com o acaso dos encontros não organizados pela razão. O estado de natureza é, portanto, uma flutuação de ânimo comum da multidão, uma impotência comum para moderar os afetos que vivencia. Dividida entre circuitos afetivos que são contrários, a multidão se torna passível de ser arrastada para qualquer direção. A potência da multidão não entra, aqui, em contradição consigo mesma, mas a multidão vive a sua impotência como contradição, como oposição de paixões contrárias que se encadeiam sucessivamente no desenvolvimento de seu conatus. Ela experimenta, portanto, a despossessão de sua própria potência de agir, uma vez que suas partes constituintes são agitadas por diferentes movimentos contrários pelas circunstâncias. A multidão, oscilando espontaneamente entre a cooperação e o conflito pela dinâmica das paixões, vai definindo em comum seus

162 objetos de amor e ódio, de esperança e de medo. O desejo determina-se coletivamente seguindo a mesma regra de afirmação da alegria e afastamento da tristeza que vale para o indivíduo humano singular, definindo os sentidos do movimento instituinte multitudinário. Trata-se de um processo de enfrentamento em comum de forças que podem ameaçar o seu esforço de perseverar no ser. Nas lutas contras tais forças, tanto internas quanto externas, define-se certa aptidão coletiva para afetar e ser afetado. Os seres humanos não escolhem as circunstâncias de suas ações ou do exercício de seu direito natural, pois são uma parte da natureza, cuja potência é limitada e superada, infinitamente, pela potência das causas externas. É nesta experiência mesma que podem chegar a compreender a diferença ética das maneiras de viver, isto é, onde a alternativa entre viver sob a força das paixões ou sob a condução da razão se verifica na prática. A instabilidade da fortuna é a oportunidade de exercício da virtude ou de nossa potência, quando, independente de nossa sorte, fazemos com ânimo firme aquilo apenas que exige nossa própria natureza. Nos movimentos de enfrentamento de potências adversas, a multidão produz instituições. A contingência é como um teste para a potência de uma multidão e sua capacidade de adaptação, isto é, o grau de solidez de suas instituições às variações da fortuna depende do enraizamento destas instituições na potência da multidão, de maneira que possam ser continuamente adaptadas às conjunturas; adaptar-se é não se opor à necessidade da natureza, mas fazer o que por força da natureza é necessário. A produção de instituições é, a um só tempo, a maneira pela qual os seres humanos contribuem em comum para a ação constituinte da natureza inteira, e o modo como esta ação se explica na e pela constituição da natureza humana comum. Não se trata da produção de uma segunda natureza, mas a mesma natureza que consideramos ora em si mesma, ora por meio da natureza humana. s instituições expressam, como se a multidão compusesse um só corpo e uma só mente, afetos que são comuns. A natureza cria indivíduos e os indivíduos em conjunto criam instituições, cuja especificidade reside na satisfação dos desejos da multidão, em maior ou menor grau, como se a potência comum ou a união de potências produzisse, apenas por si mesma, o que é útil a cada indivíduo. As instituições tornam-se, ao mesmo tempo, causa de novos desejos e afetos que não podem ser explicados pela natureza dos indivíduos considerados isoladamente. O artificial das instituições será somente naquilo que distingue um corpo político

163 de outro, isto é, o fato de que a reunião das partes constituintes produz, segundo as disposições próprias de cada corpo político, novos desejos que exprimem seu esforço de perseverar como tal. A originalidade do projeto político espinosano está em determinar sob que condições as instituições podem estabelecer um regime que permita, tanto quanto possível, a experiência das muitas variações da vida coletiva, atravessada que é por conflitos e flutuações passionais, como experiência comum que se conserva enquanto tal, ou seja, a perseverança da relação constitutiva da multidão: os homens não nascem mas fazem-se civis e é esta produção de virtudes públicas o problema político por excelência. Enquanto determinados a agir segundo disposições que são comuns à parte e ao todo, é possível falar de um conatus instituinte, ou de um desejo da multidão em perseverar na sua existência coletiva, que determinará a potência e a duração de suas instituições. De um lado, às instituições cabe justamente impedir que os afetos se tornem excessivos, isto é, impedir a fixação afetiva ou titilatio, que necessariamente reduz a aptidão do corpo comum para afetar e ser afetado, e excita a ambição de dominação de uma parte do corpo político sobre outra. De outro, fazer a balança dos afetos comuns pender para as paixões alegres de maneira que a esperança predomine sobre o medo, a alegria sobre a tristeza, o amor sobre o ódio. Trata-se de uma estratégia direcionada para a conservação comum, cujos fundamentos estão na própria estratégia imanente ao conatus da multidão: a política que concorda melhor com a prática. Aproximar-se do imperium absoluto ou democrático é a única maneira de produzir os efeitos necessários à conservação comum. Pois quando a soberania não pertence mais a todos em conjunto, isto é, quando a potência de uma parte do corpo político predomina sobre as demais, prevalece a tendência a dispô-las de tal maneira que passem a servir a sua utilidade particular e não mais à utilidade comum. Apenas pela afirmação de potências capazes de contra-arrestar esta tendência, o Estado poderá ser reconduzido a seu princípio natural e finalidade imanente, que não é o da simples conservação da vida humana enquanto definida pela sua funcionalidade biológica, mas a segurança da vida que permite a expressão de tudo quanto a natureza humana pode ou de sua liberdade. As lutas da multidão contra o domínio estrangeiro e o exercício da resistência contra a tirania, animadas pela imagem de sua liberdade e pelo afeto de amor a esta liberdade, são a maneira pela qual ela experimenta sua própria potência de agir, na ausência de

164 um imperium efetivamente democrático. É a prática, o exercício do esforço de viver por si mesmo e não em função de outra coisa qualquer, isto é, a experiência de alegria que surge do próprio conatus que pode dissolver a falsa aparência de liberdade e impulsionar o processo de racionalização dos desejos. A democracia, tal como a compreende Espinosa, é o único regime político que fornece condições ótimas para esta práxis: o desenvolvimento das aptidões corporais e mentais do indivíduo singular, permitindo a experiência do múltiplo simultâneo. Pois, neste caso, a liberdade é sempre-já uma experiência da igual liberdade dos demais indivíduos para existirem e agirem por si mesmos. Em outros termos, como todos tem igual direito de participarem nas decisões coletivas, e só a elas obedecem, na democracia o exercício da liberdade de cada um não estará associado, em princípio, à submissão de outrem, pois cada imaginará submeter apenas a si mesmo, como no estado de natureza. E o que talvez seja mais importante, a imagem da liberdade de cada um será referida a múltiplas imagens de outras coisas igualmente livres, permitindo a cada um compreender sua própria utilidade como residindo somente na conservação deste estado, a um só tempo seu e de todos. Para criar as condições em que se desenvolve a aptidão ao múltiplo simultâneo, o corpo político deve ser capaz de experimentar em comum as mais diversas maneiras de viver, afirmando o desejo de governar e não ser governado como eixo central da comunidade e estabelecendo um mínimo de repressão necessário à preservação da utilidade comum. E pelo modo como as instituições democráticas se ordenam, é possível compreender porque não é de recear, nos estados populares, a inconstância e a instabilidade. A livre e igual participação de todos na vida política faz com que o conflito seja o cotidiano da democracia: sendo os indivíduos livres para existir e agir, não se impede que, de saída, de todas as partes do corpo político surjam iniciativas tendendo a estabelecer o predomínio de sua força sobre as demais, em nome da estabilidade e da paz. A democracia é, no entanto, o regime mais conflitivo e, ao mesmo tempo, o mais apto para impedir que a dominação possa se estabelecer em nome do conflito, pois é a potência comum que será mobilizada para refrear esta tendência. Contra a suposta racionalização obtida pela transferência do poder a um só ou a poucos, a razão do todo encontra melhores condições para prevalecer. Contra a racionalidade delirante dos homens providenciais e tiranos, a razão própria da instituição.

165 De Espinosa, portanto, não podemos esperar uma apologia teleológica da potência da multidão, como se nela estivesse depositada a chave da mudança demiúrgica da história humana. A potência se exerce com e contra o poder; este, no mais das vezes, se exerce contra a potência. Esta talvez seja a única chave de que precisamos. Compreender a história a partir do poder é perder o que há nela de essencial: o poder é sempre uma resposta conjuntural aos problemas que a existência coletiva coloca no seu esforço por perseverar, por conquistar a duração. Trata-se justamente de saber em que condições os problemas são formulados, ou como se livrar dos falsos problemas. Com isso, reduzir as aberturas para a emergência de poderes exercidos contra a potência, fazer com que estes poderes tenham seus limites definidos pela potência e minimizar as possibilidades de inversão da equação. Se a humanidade formula apenas os problemas que tem condições de responder, trata-se de apropriar-se das condições que permitem enunciar os problemas, mais do que das respostas.