Blanchot, Foucault e Deleuze: convergências entre a palavra literária, a experiência do Fora e o impensado. Nara Lúcia Girotto Caçar em vão Armando Freitas Filho Ás vezes escreve-se a cavalo. Arrebentando, com toda a carga. Saltando obstáculos ou não. Atropelando tudo, passando por cima sem puxar o freio a galope no susto, disparado sobre as pedras, fora da margem feito só de patas, sem cabeça Nem tempo de ler no pensamento o que corre ou o que empaca: Sem ter calma e o cálculo de quem colhe e cata feijão. Mallarmé, Kafka, Proust cavalgaram de outro modo seus textos literários, fazendo aparecer uma nova relação entre literatura e a realidade, isto é, o texto literário não representa a realidade, não é cópia do mundo, existindo um hiato, uma inadequação, uma arbitrariedade entre a realidade e o mundo, entre as palavras e as coisas, entre significados e significantes. Para explicar a mudança de estatuto da literatura clássica para a moderna, Banchot assinou o conceito - do Fora - para mostrar como a palavra literária provocava uma experiência não representativa e não significativa da linguagem. A literatura, ao fundar a sua própria realidade, elide sujeito e objeto, mundo e realidade, também prescinde da certeza, da verdade, da representação, do significado, da consciência, do tempo cronológico e, desta forma, errante, móvel, nômade substitui a intimidade do sujeito pelo Fora da linguagem, isto é, o projeto moderno da literatura é colocar-se mais longe de si mesma. Blanchot, de forma inovadora, demarcou a especificidade, o uso próprio, distinto, funcional da literatura e, buscando compreender como se constitui a própria realidade literária, inventa o conceito do Fora, noção forjada nos campos da filosofia e da crítica literária. Então, utilizando esse conceito norteador, desconstrói a idéia de que a literatura é um meio de chegar ao mundo e propõe, contrariamente, que a palavra literária seja
instauração de mundos, de eventos plenos de real. Contudo, nesse movimento, a literatura funda sua própria realidade, isto é, cria um outro mundo do mundo. A realidade advinda da literatura possui características particulares e para conhecer a especificidade dessa, precisamos diferenciar as funções das duas linguagens: a dia-a-dia e da ficção. O objetivo da linguagem comum é evocar referência direta com aquilo que designa para que os compartilhamentos de sentidos sejam sempre preservados. Para tal, ela deve remeter-se a um objeto que se encontra no mundo, pois sua função encontra-se a serviço dos fins sociais da ação, da comunicação e da compreensão. O quadro de Magritte ceci n est pas une pipe apresenta a figura de um cachimbo com a frase que nega que a figura seja igual ao nome, a palavra cachimbo não representa o nome cachimbo. O quadro mostra o que faz a linguagem comum, isto é, essa chama a figura do cachimbo, de cachimbo, como se o nome fosse idêntico a figura, como se a palavra fosse idêntica a coisa. O mérito do quadro é não nos deixar esquecer o equívoco, de que o desenho do objeto não é o objeto e que o desenho do objeto sempre será infiel, figurativamente, ao objeto. Do mesmo modo, podemos pensar que a palavra será sempre infiel à coisa, que essa nunca recobre totalmente o que designa. Na literatura, a palavra deixa de ser um instrumento, um meio, um signo vazio que designa as coisas do mundo para apresentar uma outra realidade, diferente da realidade familiar do mundo cotidiano. No lugar do familiar, um outro uso da palavra, uma outra função da linguagem e, conseqüentemente, a fundação de um outro mundo. O aparecimento da linguagem ficcional exige a destruição, a negação da palavra, àquela que estabelece a ligação entre o receptor e o objeto evocado pelo nome (palavra). Um direito à morte, um assassinato diferido, para usar as palavras de Blanchot, que provoca uma transformação radical da palavra, isto é, desaparecimento das suas funções de representar o objeto para as funções de criar, evocar uma realidade constituída a partir da (ir) realidade da coisa à realidade da linguagem. O poema, caçar em vão, colocado no início desta reflexão, torna-se apoio para entender como acontece a passagem da (ir) realidade da coisa à realidade da linguagem. Armando Freitas Filho faz uma analogia entre escrever e cavalgar. No processo de escrever 2
passamos por vários estados, movimentos: galopar, empacar, saltar, marchar, trotear. O nome, caçar em vão, nos diz que espreitar, procurar, mirar, deslocar-se, esperar a palavra tem sido um trabalho sem retorno e que o movimento do escrever acontece, em alguns casos, só com as patas, sem a cabeça. Para explicar os movimentos de negação e de realização da palavra literária, utilizo o poema do qual desprendemos que escrever é correr com as patas, sem cabeça, sem o cálculo de quem colhe ou cata feijão. Podemos dizer que o poeta fez desaparecer o cavalo real, do mundo e, no lugar, fez surgir um outro cavalo devir animal-escritor - que escreve em vários ritmos parando, andando, galopando, saltando-. Quando Blanchot diz que é preciso negar o real para se construir a ir(realidade) fictícia nos mostra este paradoxo. Ou seja, a palavra literária faz coincidir a sua realização com o seu desaparecimento, por isso o uso de pares opostos como vida e morte, ruína e constituição, ausência e presença para explicar esta ambigüidade. Podemos dizer que a morte do cavalo real do poema desdobrouse no aparecimento do devir animal-escritor. Blanchot resumiu esteticamente este acontecimento, dizendo que a palavra é admiravelmente a vida desta morte. A experiência poética nos retira do mundo e nos coloca novamente nele, porém com outro signo, como desdobramento, como possibilidade de vivenciar uma outra versão do mundo. Para circunscrever o espaço onde acontece à literatura, esse outro mundo, Blanchot utilizou várias designações: exílio, deserto, errância, Fora. Então, podemos dizer que o espaço literário alimenta-se da origem e tende sempre voltar ao vazio de onde veio ou, como diz Blanchot, espaço anterior a designação de gêneros, de palavras, portanto, espaço do rumor, do neutro, do impessoal. Clarice Lispector começou seus livros Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres e A Paixão segundo G.H com uma vírgula e com traços espaçados, respectivamente. Não estaria ela querendo indicar, demarcar este começo original, o começo do desdobramento, da impessoalidade, do colar-se no Fora, na superfície, no artifício, na palavra literária? Clarice Lispector, referindo-se ao processo de escrever, dizia que quando escrevia não pensava nem no leitor e nem nela e que na hora do escrever, no ato, ela era as próprias palavras. 3
A realidade literária faz ascender à superfície a materialidade do corpo das palavras, no entanto, um corpo sem interior, sem organização, sem pensamento; um corpo só pele, só de patas, fora das margens, arrebentando com toda carga, saltando e deixando para trás a poeira e o rumor sem fim. Uma das frases mais conhecidas de Foucault refere-se àquela do homem como invenção recente e cujo fim, talvez, esteja próximo. Este diagnóstico mostra o enfraquecimento da noção de Homem nos séculos XIX e XX e seus desdobramentos como a fragmentação da unidade subjetiva, apagamento da essência do eu, desaparecimento do sujeito da enunciação. Foucault apóia-se na exterioridade, na dispersão, na impessoalidade da linguagem da literatura moderna para firmar-se na contracorrente do humanismo, da dialética, do estruturalismo. Foucault capta a força demolidora da literatura moderna, sua operação no campo da alteridade absoluta, no plano assubjetivo e fazendo uso dos atributos dessa propõe a dispersão do sujeito na ordem dos discursos. Desta forma, alguns atributos do homem caem em ruína como, enunciação, alma, interioridade, consciência, reflexão, memória, autor. Nietzsche pergunta: quem fala? É a própria palavra, responde Mallarmé. Esse jogo de pergunta e resposta sintetiza os interesses de Foucault com a literatura, uma vez que esse último explicará em diversas publicações o desaparecimento daquele que fala, a morte do autor. Na esteira do desaparecimento do Homem, Foucault vai explicar o desaparecimento da função autor apoiado na identidade, na individualidade, na biografia, na origem, no eu, daquele que fez a obra. Resolver, por exemplo, o enigma James Joyce é louco não fará sua obra ser mais ou menos compreensível. O apagamento do autor e da obra é feito em proveito da sobrevivência da literatura, pois no lugar destes surge à figura plural da própria palavra, o ser da linguagem. A escritura, a palavra poética aparece no seu esplendor e novidade mantendo-se na exterioridade da subjetividade e, igualmente, Foucault quer manter seu pensamento na exterioridade para escapar dos perigosos jogos de poder, saber. O desaparecimento do ser-homem e, conseqüentemente, o aparecimento do serlinguagem resultam numa contestação do pensamento representativo, uma vez que não 4
existe uma relação causal que garante a representação, a significação entre as coisas e as palavras. A relação arbitrária entre significado e significante não se sustenta, pois a palavra, ao dizer somente a si própria, promove o eterno escoamento do Fora. A obra Ulisses de James Joyce pode ser um exemplo de como a literatura se desenvolve a partir de si mesma, para longe de si mesma, uma vez que o Ulisses de Joyce se desdobra em outra obra, num outro estilo, numa outra assinatura que, ao invés de repetir a obra épica, produz uma diferença. Blanchot encontra-se entre os literatos que introduziram o estudo de Nietzsche na França e com Bataille, Mallarmé, Artaud realizaram uma experiência não representativa e não significativa da linguagem. Foucault encontrou guarida para suas inquietações filosóficas nesse modo de conceber a literatura O filósofo, acompanhando o movimento da literatura moderna, constata que essa faz um estremecimento do cogito, um desmoronamento da unidade do eu, das noções de obra e autor, da dialética, do humanismo. Então, Foucault utiliza o conceito do Fora proposto por Blanchot, dando a esse uma outra assinatura pela maneira como integra o conceito no seu projeto de pesquisa. Assim como Blanchot consegue falar da literatura estando fora desta, Foucault quer fazer filosofia sem estar nela, conseguindo deslizar do pensado para o impensado. O interesse e, posteriormente, o desinteresse de Foucault pela linguagem literária é explicado por Roberto Machado no seu livro Foucault, a filosofia e a literatura. A literatura, por manter-se fora da subjetividade, permitiu Foucault aprimorar sua análise das condições de como o sujeito aparece na ordem dos discursos, porém seu desinteresse progressivo deve-se ao fato que a literatura não consegue manter-se a margem, exterior as engrenagens institucionais de produção cultural, dos discursos e poderes hegemônicos. Nietzsche deixou como legado a possibilidade de pensar de forma indissociável as forças, o Fora e a diferença, o que pode vir a explicar a convergência teórica entre Blanchot, Foucault e Deleuze. Assim, o Fora é o espaço do encontro das forças, essas sempre distribuídas no diagrama, no seu diferencial quantitativo, porém, a diferença, a resistência, permanece no espaço não-estratificado (Fora) de onde provém o diagrama. Para Foucault e Deleuze pensar está no domínio das forças, diz respeito ao espaço do Fora, 5
por isso ser necessário à intrusão do Fora, da espera, de uma passagem para a superfície. Entende-se o Fora como categoria imanente, pois a inclusão do Fora no mundo não tem nada a ver com ao além mundo, ele faz parte do mundo sem estar ainda atualizado, sem ser real (formas). O pensar, nesta perspectiva, nasce sob o signo da violência, algo precisa desestabilizar os caminhos perceptivos e cognitivos naturalizados, fazendo aparecer um rompimento, uma fissura, uma novidade. Aparece uma nova maneira de conceber o real em Blanchot e, próximo do pensamento de Levinas, entende a experiência do Fora como se abrir e deixar-se levar pelo Outro, aquele que nunca se tornará idêntico, o diferente, o estrangeiro, o desconhecido. Sua ética poderia ser resumida na seguinte frase: desejar que o outro permaneça sempre o Outro. Também, para Foucault, a experiência do Fora abre novas perspectivas, entendendo o Fora como uma matéria móvel, onde nada ainda aconteceu, campo das Forças, no qual o saber, o poder e a subjetivação são explicados pelo modo como cada um destes estratos, diagramas funcionam hoje e como funcionaram em outras épocas históricas. Resumidamente, o saber acontece nos plano das formas, contudo as dizibilidades e as visibilidades não são produtos do sujeito da enunciação, cada época possui seu arquivo audiovisual - o que pode ser visto e dito depende das condições enunciativas de cada apriori histórico -. Enquanto a topologia do saber dá-se no plano das formas, por um agenciamento prático, o poder é formado por um diagrama de forças. A composição das forças são informes, móveis e invisíveis, contudo uma microfísica diagramática explicita seu exercício, pois sua função e matéria são afetar e ser afetado por outras forças. A subjetivação, por sua vez, consiste na produção de uma interioridade, de um estilo de vida (subjetividade). Ou seja: a característica da força de afetar-se a si mesma, de vergar o lado de Fora permite que possamos construir regras facultativas para o modo de nos conduzir no mundo. Para Foucault, ao embarcarmos numa interioridade exterior singular estaremos resistindo aos jogos de poder e saber hegemônicos. Esta digressão sobre o saber, o poder e a subjetivação em Foucault tinha como finalidade mostrar como o conceito de Fora esteve ligado, sobretudo, ao estremecimento do sujeito, do cogito e, conseqüente, a despersonalização deste, sua dispersão na ordem dos discursos, entendimento do sujeito como resultante dos processos de subjetivação. 6
Deleuze, percorrendo obras de filósofos e literatos, desenvolve seu conceito-chave: o plano de imanência. A arte, para o filósofo, é a realização de um processo que pertence ao âmbito do virtual, do plano de imanência, da vida em sua máxima potência. Para explicar a complexidade do conceito de plano de imanência, busca-se apoio na frase Ele é infeliz. Kafka, segundo Blanchot, nunca falou da sua infelicidade e ao manter-se no impessoal, no neutro da assertiva ele é infeliz fez a linguagem liberar singularidades, diferenças. A infelicidade encontra-se como virtualidade, como imanência, somente estando ausente no leitor que ela poderá ser sentida, atualizada, isto é, justamente por não pertencer ao eu do escritor, pertence a todos. Pensar e escrever surge da privação do eu, do afastamento da subjetividade para a exterioridade, fora da consciência de um sujeito. Então, qual relação entre esse processo involuntário do pensar e do escrever com o plano de imanência? Em tempos em tempos surge, nos campos da literatura, da arte, da política, da filosofia e outros, um intolerável e num processo involuntário, sem um projeto previamente arquitetado são inauguradas mutações irreversíveis. Quando surge inesperadamente um outro mundo do mundo, segundo Deleuze, o homem restabelece seu vínculo com este mundo o nosso mundo -, fazendo-nos acreditar novamente na vida, no mundo. Deleuze utilizou a imagem do caos para explicar o plano de imanência, sendo esse uma fatia do caos que permanece livre em todas as dimensões (planos), constituindo, paradoxalmente, um único e imanente plano. O transcendental, o outro nome do plano de imanência, constitui um campo assubjetivo, isto é, não remete a um objeto e nem pertence a um sujeito. Uma vida, em sua máxima potência, encontra-se neste estado, livre dos qualificativos de subjetividade e de objetividade. Quando a vida encontra-se neste estado, encontra-se grávida de singularidades anônimas, nômades, selvagens, impessoais. Como se trata de composto de forças sem forma, informais por excelência, não ficam retidas no saber e no discurso. São, desta forma, hecceidades livres, singularidades, virtualidades capazes de engendrar acontecimentos. O rompe com o senso-comum, com a verdade, instaurando uma nova sensibilidade, uma outra maneira de lidar com o intolerável, convocando a criação, a resistência e, sobretudo, fazendo a vida acreditar neste mundo, ao produzir outro mundo do mundo. 7
Não se escreve e não se pensa quando se quer, mas podemos querer escrever um pouco como os poetas. Por isso, o devir-animal escritor escreve a cavalo, explorando os meios, arrebentando com toda a carga, atropelando, passando a galope, fora da margem, saltando obstáculos, inventando uma língua, sem tempo de ler no pensamento, farejando, atravessando o vivível e o vivido, sem calma, criança, só de patas, sem cabeça (Deleuze, 1997 ; Filho, 2005). Bibliografia: DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Coleção TRANS. São Paulo: Editora 34, 1997. FILHO, Armando Freitas. Caçar em vão. Em Veneno Antimonotonia: os melhores poemas e canções contra o tédio. FERRAZ, Eucanaã (org). Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. LEVY, Tatiana Salem. A experiência do Fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Conexões (19). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003 MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2000. 8