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Transcrição:

Revista Paulista de Pediatria ISSN: 0103-0582 rpp@spsp.org.br Sociedade de Pediatria de São Paulo Brasil Martins M.M. Becker, Ana Laura; Haddad de Souz, Paulo; Martins de Oliveira, Mônica; Bruzzi B. Paraguay, Nestor Luiz A articulação da rede de proteção à criança e a aplicação intersetorial do círculo de segurança como alternativas à medicalização Revista Paulista de Pediatria, vol. 32, núm. 3, septiembre, 2014, pp. 247-251 Sociedade de Pediatria de São Paulo São Paulo, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406034051017 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe, Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

Rev Paul Pediatr. 2014;32(3):247 251. REVISTA PAULISTA DE PEDIATRIA www.spsp.org.br relato de caso A articulação da rede de proteção à criança e a aplicação intersetorial do círculo de segurança como alternativas à medicalização Ana Laura Martins M.M. Becker*, Paulo Haddad de Souza, Mônica Martins de Oliveira, Nestor Luiz Bruzzi B. Paraguay Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP, Brasil Recebido em 24 de novembro de 2013; aceito em 16 de fevereiro de 2014 PALAVRAS-CHAVE Medicalização; Criança; Atenção primária à saúde; Psicoterapia Resumo Objetivos: Descrever o caso clínico de uma criança que apresenta comportamento agressivo e fala recorrente do tema de morte, e relatar a experiência da equipe de autores na proposição de uma alternativa à medicalização por meio da formação de uma Rede de Proteção e da aplicação Intersetorial do conceito de Círculo de Segurança da Criança. Descrição do caso: Criança de 5 anos apresenta comportamento violento e agressivo na creche que frequenta. Foi diagnosticado pelo Centro de Saúde com Transtorno Depressivo e Transtorno de Conduta, sendo medicado com Sertralina e Risperidona. Apresentou efeitos colaterais, interrompendo o uso das medicações. Apesar de ações como conversas, trabalho em grupos, acompanhamento psicológico e psiquiátrico, a criança manteve esse comportamento. Comentários: Foi desenvolvido um Projeto Terapêutico Singular por alunos do curso de Medicina da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com o objetivo de criar um vínculo entre as instituições responsáveis pelo cuidado da criança (Creche, Centro de Saúde e família), o que possibilitou o desenvolvimento de uma rede de proteção para o cuidado na Atenção Básica. A aplicação intersetorial do Círculo de Segurança, assim como a comunicação e a colaboração entre as equipes, mostrou resultados muito positivos neste caso, configurando-se como uma alternativa acessível e eficaz à Medicalização da criança. 2014 Sociedade de Pediatria de São Paulo. Publicado por Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados. Estudo conduzido na Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil. *Autor para correspondência. E-mail: analaurambecker@gmail.com (A.L.M.M.M. Becker). 0103-0582/$ - see front matter 2014 Sociedade de Pediatria de São Paulo. Publicado por Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados. http://dx.doi.org/10.1590/0103-0582201432316

248 Becker AL et al. KEYWORDS Medication; Child; Primary healthcare; Psychotherapy Child protection network and the intersector implementation of the circle of security as alternatives to medication Abstract Objectives: To describe the clinical history of a child with aggressive behavior and recurring death-theme speech, and report the experience of the team of authors, who proposed an alternative to medication through the establishment of a protection network and the inter-sector implementation of the circle of security concept. Case description: A 5-year-old child has a violent and aggressive behavior at the daycare. The child was diagnosed by the healthcare center with depressive disorder and behavioral disorder, and was medicated with sertraline and risperidone. Side effects were observed, and the medications were discontinued. Despite several actions, such as talks, teamwork, psychological and psychiatric follow-up, the child s behavior remained unchanged. Remarks: A unique therapeutic project was developed by Universidade Estadual de Campinas Medical School students in order to establish a connection between the entities responsible for the child s care (daycare center, healthcare center, and family). Thus, the team was able to develop a basic care protection network. The implementation of the inter-sector circle of security, as well as the communication and cooperation among the teams, produced very favorable results in this case. This initiative was shown to be a feasible and effective alternative to the use of medication for this child. 2014 Sociedade de Pediatria de São Paulo. Published by Elsevier Editora Ltda. All rights reserved. Introdução A medicalização na infância é um dos temas mais discutidos no cenário pediátrico atual. Crianças cujos comportamentos não correspondem ao esperado pela escola e pela sociedade são vistas como portadoras de doenças orgânicas, incluindo transtornos psicóticos. 1 Collares e Moysés 2 definem a patologização como a busca de causas e soluções médicas, em nível organicista e individual, para problemas de origem eminentemente social, e a medicalização como processo de transformar questões não médicas, eminentemente de origem social e política, em questões médicas, isto é, tentar encontrar no campo médico causas e soluções para problemas dessa natureza. Afirmam ainda que a medicalização ocorre segundo uma concepção de ciência médica que discute o processo saúde-doença como centrado no indivíduo, privilegiando a abordagem biológica, organicista 2 Tratase, portanto, de uma omissão por parte das instituições médica, escolar e familiar em relação aos problemas de cunho emocional e psicológico da criança. Como consequência do processo de estigmatização, são tomadas atitudes culpabilizantes e autoritárias, atribuindo o problema comportamental puramente a causas orgânicas, sem que seja investigado o real motivo da postura agressiva ou de hiperatividade. 1,3 O conceito de Círculo de Segurança, proposto por Marvin et al, 4 corresponde a uma intervenção precoce nas relações entre a criança e seus cuidadores, de forma a proporcionar um suporte emocional adequado durante a infância. A teoria ajuda na observação das diferentes maneiras pelas quais as crianças abordam os adultos na procura por suporte e atenção, e em como ensiná-la a fazer bom uso da ajuda que recebe. Além disso, o Círculo colabora para a percepção das reais questões emocionais presentes no momento em que a criança modifica seu comportamento, ajudando o cuidador a identificar as demandas psicológicas e emocionais que a criança tem dificuldade de expressar. O diagrama do Círculo de Segurança apresenta instruções para pais e profissionais no que diz respeito a atitudes fundamentais na criação de um ambiente estável e seguro para que a criança desenvolva suas emoções. É preciso que ela tenha uma base segura para poder brincar e explorar o mundo, contando com a proteção dos cuidadores. Em seguida, é necessário um porto seguro, para o qual ela possa voltar quando experimenta situações frustrantes. Nesse momento, os adultos devem acolhê-la e ajudar na organização dos seus sentimentos. 4 A teoria é muito útil para profissionais que lidam com crianças de todas as idades, pois ajuda na criação de oportunidades seguras para desenvolvimento do relacionamento interpessoal, além de ensinar estratégias para que eles se mostrem mais disponíveis emocionalmente para as crianças quando abordados por elas. O conceito de Rede de Proteção à criança, 5 por sua vez, deve ser entendido como uma ação integrada entre instituições para atender crianças e adolescentes em situação de risco pessoal por exemplo, sob ameaça de violação dos direitos, como em casos de abandono, violência física e psicológica ou em situações de negligência, que provoquem danos físicos e emocionais. Assim, uma Rede de Proteção funcionante e eficaz proporciona à criança a possibilidade de um crescimento livre de riscos sociais e de violência doméstica. Nesse contexto, o presente trabalho consiste na apresentação de um Projeto Terapêutico Singular que teve como objetivo investigar e intervir sobre os diferentes

A articulação da rede de proteção à criança e a aplicação intersetorial do círculo de segurança 249 aspectos da gestão do cuidado da criança em questão, com foco na criação do vínculo intersetorial entre saúde (Centro de Saúde CS), educação (creche) e família, visando à formação de uma rede de proteção articulada e à aplicação prática do conceito do Círculo de Segurança da criança, como alternativa à patologização e à medicalização. Essa experiência configurava estágio curricular obrigatório para os alunos do quinto ano do curso de medicina da UNICAMP, como parte da disciplina de Saúde Coletiva. Sendo assim, foi aprovada pelo Conselho de Graduação da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP e autorizada pela Secretaria Municipal de Saúde de Campinas. Descrição do caso Criança de 5 anos, sexo masculino, mora com a mãe (28 anos), o pai (36 anos) e com o irmão mais novo. A creche que frequenta em período integral tem feito reclamações constantes, desde a entrada na instituição, devido ao seu comportamento agressivo e violento. Inicialmente, os problemas restringiam-se apenas a verbalizações constantes acerca do desejo de morrer e da pretensão de matar a si mesmo e aos colegas. Posteriormente, passou a apresentar atitudes como: cuspir e chutar professores e colegas; afastar-se das outras crianças e falar sozinho; atirar fezes em direção aos colegas; esconder facas em sua mochila ( vou levar pra matar, disse o menino à mãe); ameaçar fisicamente outra criança, colocando uma faca em seu pescoço durante o almoço na escola. A creche procurou amparo na Unidade Básica de Saúde da região, pois acreditava tratar-se de um quadro patológico. O Centro de Saúde optou por incluir a criança e a mãe num grupo de pais e crianças com problemas escolares, solução que se mostrou ineficaz, uma vez que o comportamento da criança se manteve. A equipe optou, então, pela medicalização. No prontuário constavam duas consultas com psiquiatra, com diagnóstico de transtorno de conduta e transtorno depressivo. O menino foi medicado inicialmente com Sertralina 25mg, sendo substituída por Risperidona 0,5mg, mas apresentou efeitos colaterais, e a mãe optou por descontinuar o uso das medicações. O problema foi passado à equipe de alunos da UNICAMP devido à complexidade do caso, à dificuldade de relacionamento entre a equipe da creche e do CS e devido ao insucesso das propostas terapêuticas aplicadas, pois, apesar de conversas, inclusão em grupos, acompanhamento psicológico e psiquiátrico e uso de medicações, a criança manteve o mesmo comportamento, considerado pelas equipes como patológico. O grupo utilizou a elaboração desenhos (recurso projetivo na abordagem à criança) e a construção do genograma da família como ferramentas para coleta de dados. A opção por focar as discussões com a creche e com o CS na problematização da situação, em vez de discutir as prescrições, mostrou-se uma abordagem mais efetiva para incluir as equipes no diálogo e implicá-las com o caso. Além de entrevistas com os diferentes indivíduos envolvidos e de visitas à família e à creche para ampliar o entendimento sobre o caso, foi trabalhado o conceito do Círculo de Segurança em reunião com as equipes, capacitando-as a aplicar esse conceito como estratégia no cuidado intersetorial dessa criança. Discussão Na tabela 1, são expostos os diferentes pontos de vista das equipes envolvidas no cuidado da criança acerca de alguns tópicos relevantes do caso clínico. Essas opiniões foram coletadas pelo grupo de alunos nos momentos descritos anteriormente: entrevista familiar, entrevistas individuais, visita à casa da família, visita à creche e reunião com a equipe do Centro de Saúde. A opinião da equipe da UNICAMP é o resultado das discussões do grupo de alunos, orientados por profissionais como psicóloga, pediatra e psiquiatra infantil. É clara a tentativa de individualização do problema por parte das equipes da creche e do CS, atribuindo à criança uma doença orgânica associada à alteração de personalidade, o que explicaria seu comportamento não convencional e inadequado para o parâmetro escolar. Trata-se de uma avaliação precipitada e culpabilizante, que contraria a postura proposta por Dolto: 6,7 Já antes de uma informação mais ampla, não aceitamos a alternativa proposta: doença ou maldade. A primeira dessas interpretações anula toda a responsabilidade da criança; a segunda, atribui-lhe toda a responsabilidade. A creche acredita que as atitudes da criança são feitas por maldade, que a criança não demonstra sentimentos nem culpa. Já o CS acredita que se trata de uma doença e, por isso, medica. É consagrada a ideia de que as relações interpessoais e os fatos ocorridos no cotidiano da família influenciam o desenvolvimento do individuo. 8-10 A análise mais criteriosa e elaborada de todo o contexto possibilita a conclusão de que a conduta da criança se deve mais a problemas estruturais de dinâmica familiar e do modelo pedagógico da creche do que à doença orgânica ou transtorno de personalidade. Acredita-se que a criança em questão seria beneficiada pela psicoterapia individual, para abordar questões familiares, desenvolvimento afetivo e habilidade de socialização. Além disso, seria fundamental a modificação da abordagem pedagógica, sem que prevaleçam atitudes puramente normativas e de forma que haja estímulo à assimilação de regras mediante utilização de estratégias lúdicas e dialógicas. Quando trouxer a questão da morte, seria preferível confrontá-lo com palavras carinhosas e propor atividades que melhorem sua autoestima. Segundo Junqueira, 11 a intersetorialidade é a articulação de saberes e experiências de diferentes setores no planejamento, na realização e na avaliação de ações, com o objetivo de alcançar resultados integrados em situações complexas, visando a um efeito sinérgico no desenvolvimento social. Nesse âmbito, é fundamental desenvolver uma rede de proteção articulada por saúde, educação e família, para que a criança disponha de um ambiente saudável em que possa desenvolver adequadamente sua afetividade e aprender a lidar com suas frustrações no processo de crescimento, como recomendam Marvin et al 4 e Cooper et al. 12 Ademais, a problematização junto às instituições envolvidas sobre as formas de aplicação prática intersetorial do

250 Becker AL et al. Tabela 1 Pontos de vista dos diferentes grupos envolvidos no cuidado da criança em relação a seu comportamento, envolvimento familiar e atitudes quanto aos problemas enfrentados Ponto de vista Creche Centro de saúde Família Equipe UNICAMP Comportamento da criança Sobre a participação dos pais na vida da criança Atitude frente ao comportamento da criança Sobre o fato de a criança falar sozinha e isolar-se Problemas enfrentados Agressivo, violento e patológico. Alega que a criança não se adéqua às normas da escola. Ele não mostra culpa, não tem sentimentos Ele parece estrategista, é cruel. Culpa os pais por negligência afetiva e por não colaborarem com a escola na educação da criança. Repreende a criança quando fala de morte, castiga e mantém o menino com o rótulo de problemático e violento. Acredita que se trata de uma doença psiquiátrica. A criança diz conversar com um bicho. Alega não ter apoio do CS, sente-se isolada como instituição. Tem dificuldade em lidar pedagogicamente com o tema de morte trazido pela criança. Acredita tratar-se de um quadro orgânico e diagnostica como transtorno de conduta e transtorno depressivo. Acredita que os pais não tenham condição emocional para cuidar da criança devido aos conflitos enfrentados durante a infância e a adolescência. Entende o caso como doença orgânica e, por não conseguir conter o menino no trabalho em grupos, opta por medicá-lo. Entende como sinal de doença psiquiátrica. Dificuldade para lidar com a criança no trabalho em grupo. Falha na terapêutica aplicada, predominantemente medicamentosa. Acha que o menino é Acredita que o agitado e dá trabalho. A comportamento da mãe nega que o filho fale criança é consequência sobre morte em casa. do contexto social de negligência a que está exposto. Não é possível fazer diagnósticos de transtorno de conduta ou de psicoses. Alega participar da vida escolar do filho. Mostra bilhetes que mandou à escola pedindo informações diárias sobre o comportamento do filho. Mãe afirma em bilhetes para a escola que coloca a criança de castigo e conversa com ele quando se comporta mal. Pai não é presente na educação do filho. Nega que o filho fale sozinho. Refere não ter paciência e sabedoria para educá-lo. Ando muito nervosa, não tenho paciência, logo começo a gritar. Conta que está em tratamento para depressão. Acredita que a família tem desejo de cuidar e participar da criação do filho mas encontra dificuldades no cuidar. Acredita que as instituições podem apoiar a família para constituir uma rede de proteção psicossocial à criança. São necessárias modificações quanto à abordagem pedagógica à criança. Acredita tratar-se de uma atitude normal de crianças dessa faixa etária, sendo excluída a hipótese de esquizofrenia. Trata-se de criança extrovertida e que demonstra de modo constante o interesse em comunicar-se com o outro. Como articular as instituições de forma a promover a construção de uma rede de proteção à criança? Como ajudar a família a acolher o sofrimento do filho? Círculo de Segurança, bem como sobre as possibilidades de desenvolvimento da Rede de Proteção à Criança, a partir da comunicação e da colaboração entre as equipes, mostrouse uma estratégia muito positiva nesse caso, na medida em que as equipes puderam reconhecer esses recursos como uma alternativa acessível e eficaz à patologização e à medicalização da criança. Conflitos de interesse Os autores declaram não haver conflitos de interesse. Referências 1. Luengo FC. A vigilância punitiva: a postura dos educadores no processo de patologização e medicalização da infância. São Paulo: UNESP; 2010. 2. Collares CA, Moysés MA. A transformação do espaço pedagógico em espaço clínico (a patologização da educação). São Paulo: FDE; 1994. 3. Collares CA, Moysés MA. A história não contada dos distúrbios de aprendizagem. Cad CEDES 1992;28:31-48. 4. Marvin R, Cooper G, Hoffman K, Powell B. The circle of security project: attachment-based intervention with caregiver-preschool child dyads. Attach Hum Dev 2002;4:107-24.

A articulação da rede de proteção à criança e a aplicação intersetorial do círculo de segurança 251 5. Instituto GRPCOM.org [homepage on the Internet]. Redes de Proteção Social [cited 2013 Dec 28]. Available from: http:// www.institutogrpcom.org.br/concurso-ler-e-pensar/ download/apoio/3_redesdeprotecao.pdf 6. Dolto F. Psicanálise e pediatria. 4 th ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1988. 7. Soler VT, Bernardino LM. A prática psicanalítica de françoise dolto a partir de seus casos clínicos. Estilos Clin 2012;17:206-27. 8. Resegue R, Puccini RF, Silva EM. Risk factors associated with developmental abnormalities in children. Pediatria (São Paulo) 2007;29:117-28. 9. Fonseca FF, Sena RK, Santos RL, Dias OV, Costa SM. The vulnerabilities in childhood and adolescence and the Brazilian public policy intervention. Rev Paul Pediatr 2013;31:258-64 10. Muzzolon SR, Cat MN, dos Santos LH. Evaluation of the pediatric symptom checklist as a screening tool for the identification of emotional and psychosocial problems. Rev Paul Pediatr 2013;31:359-65. 11. Junqueira LA, Inojosa RM. Desenvolvimento social e intersetorialidade: a cidade solidária. São Paulo: FUNDAP; 1997. 12. Cooper G, Hoffman K, Powell B, Marvin R. The circle of security intervention: differential diagnosis and differential treatment. In: Berlin LJ, Ziv Y, Amaya-Jackson LM, Greenberg MT, editors. Enhancing early attachments: Theory, research, intervention, and policy. New York: Guilford Press; 2005. p. 127-51.