TÍTULO: Desde então, era sempre, como agora se torna Coca-cola. É isso aí! AUTOR: Míriam Aguiar INSTITUIÇÃO: Universidade Presidente Antônio Carlos, MG. Mesmo no horizonte da ciência, o Objeto aparece cada vez mais inatingível, inseparável em si e, portanto, inacessível à análise, eternamente versátil, reversível, irônico, decepcionante e fazendo pouco das manipulações. (Jean Baudrillard)
RESUMO O presente trabalho apresenta uma reflexão sobre algumas das manifestações e desdobramentos dos signos de consumo em suas trajetórias interlocutivas junto aos meios de comunicação, através das articulações estratégicas e da teia de sentidos que o discurso publicitário vai, ao longo do tempo, constituindo com o público pela linguagem. A análise é fruto de uma pesquisa que teve como recorte empírico mensagens publicitárias audiovisuais veiculadas publicamente para promover o produto e marca Coca-cola em diferentes períodos históricos. Traz como principais aportes teóricos a semiótica perceiana e alguns estudos sociológicos que contribuem para a compreensão dos estatutos e mitologias que a linguagem publicitária ajuda a constituir ao se postular como uma das grandes articuladoras de um imaginário social crescentemente centrado no consumo de signos e mercadorias. PALAVRAS-CHAVE: Desdobramentos da Significação Publicitária 1
INTRODUÇÃO A temática do consumo sempre me interessou de modo especial e é o que vem norteando todos os meus trabalhos acadêmicos de pesquisa. Nestes momentos, abandono o pragmatismo aplicativo do planejamento estratégico publicitário para lançar um olhar investigativo e reflexivo aos fenômenos consumptivos em seus mecanismos e imbricações psico-sociais. Um olhar que, sabendo da atual centralidade e importância do consumo como fator de troca simbólica social e da crescente expressividade e complexidade de elementos e arranjos envolvidos na trama libidinosa que permeia a sua configuração, respeita-lhe a valiosa condição simbólica significadora. Sem querer reproduzir aqui todo o resultado de um trabalho de pesquisa, trago algumas reflexões levantadas que considero ter mais a acrescentar aos correntes debates e abordagens a respeito do consumo e de sua significação. Tendo como objeto empírico um recorte histórico das mensagens publicitárias da Coca-cola, a pesquisa teve como fonte de análise 27 minutos de registros aúdio-visuais: 22 minutos em forma de comerciais (um total de 26 VTs) e 5 minutos em forma de edições de imagens e sons referentes a várias passagens do cenário publicitário do produto no mundo. É possível identificar, através dessas imagens, o delineamento da linguagem publicitária da Coca-cola, suas significações mais fixas, assim como sua evolução ao longo do tempo. Voltando à centralidade do consumo na nossa sociedade, podemos dizer que a libido que dá impulso às suas aspirações é marcada pela transitoriedade; uma libido que abandona o engajamento modernista e orienta-se fugaz e vulneravelmente para diversos alvos. Observamos hoje uma sociedade povoada de imagens condensadoras e veiculadoras de significações efêmeras, versatéis, trazendo em seu bojo ideológico propostas políticas de pouca densidade, fundamentadas em estratégias de marketing, cujas principais metas, na maioria das vezes, são a busca da comunicabilidade e reprodutibilidade de seus discursos dentro de um universo poluído de signos. A despeito de sua amplitude e diversidade, a abrangência desses discursos parece pertencer crescentemente a um projeto englobador e mundializante de suas estruturas mercadológicas e políticas sígnicas num traçado que prefere a busca de uma nivelação estratégica segundo modelos automatizadores à preservação das suas diversidades e idiossincrasias essenciais. Mas onde estão as diferenças, as singularidades? Na verdade, se dermos uma volta nas ruas do Brasil ou de qualquer país com muitos problemas econômicos, veremos que essas diferenças estão à mostra de forma bem evidente nos contrastes sociais do espaço urbano. No entanto, a setorização geográfica e 2
estatutária desses elementos contrastantes em aliança com a crescente representação "simulacro" da pós-modernidade, camuflam, de certo modo, essa visão sociológica da realidade. Vários mecanismos de transformação da significação do espaço cultural vivido confundem a nossa leitura do significado das coisas, colocando-nos num processo contínuo de decodificação das milhares de representações, mensagens e manifestações que se concentram no complexo espaço urbano da contemporaneidade. Nesse ritmo transeunte, cruzando trajetos poligrafados e incessantemente retocados pela avançada sociedade pósmoderna, aquilo que poderia ser intrinsecamente diverso aos olhos do homem urbano, ocupa, não obstante, frágeis e similares estatutos simbólicos no seu universo cultural. A velocidade desse processamento decodificante dificulta uma leitura clara da realidade, de maneira que, sob essa visão meio turva, tornou-se difícil e por isso, às vezes até desvalorizada, a interpretação das diferenças, das qualidades das coisas. Se a diferença existe, a expressão e apresentação pública destes traços aparece-nos assim: efêmera, cambiante, oferecendo-nos um calculado ar da graça, como um fetiche que tem por função ornamentar e dissimular a repetição. EVOLUÇÃO SEMIÓTICA DA LINGUAGEM PUBLICITÁRIA DA COCA-COLA O signo publicitário em sua condição existencial semiósica de "signo", portanto transmutável, desdobrável, de acordo com a linguagem, o contexto, a interpretação, e em sua condição de estar a serviço do discurso publicitário, portanto mais aberto às mais variadas analogias, sem compromisso com a prova, com a veracidade encontra nesta ambiência de rápida e flutuante significação, sob o imperativo ético hedonístico e estético mídiorepresentativo, um perfeito nicho de proliferação. Por ser capaz de abordar esse relativismo conceitual do signo, elejo a semiótica como disciplina mais apropriada para cercear a sua investigação e melhor revelar a teia de sentidos que é constituída pelas linguagens e suas respectivas interlocuções. O material publicitário analisado apresentou três tipos de manifestações semiósicas em períodos subsequentes de evolução da marca e de sua representação interlocutiva na mídia, os quais serão examinados aqui. 3
01. COCA-COLA COMO ÍCONE De acordo com a definição de Peirce, um ícone é "um signo que se refere ao objeto que ele denota simplesmente em virtude de caracteres dele (o signo) mesmo, e que ele possui independentemente da existência do objeto ou não." (1) Podemos dizer que o período que classifiquei como "1a. Fase da Publicidade da Coca-cola" (que corresponde à 1a. parte do material publicitário que analiso aproximadamente entre fins do séc. XIX e 1950) mostra a sua linguagem publicitária num estágio predominantemente icônico, do ponto de vista semiótico. Isso significa que as propagandas se utilizam sempre de traços da própria embalagem para se referir ao produto sua garrafa, sua tampinha, sua logomarca. Esses traços também são associações sígnicas externas e, portanto, simbólicas, que se estabelecem com o refrigerante para comercializá-lo e, dessa forma, seria complicado definir se pertencem ou não ao objeto em si. Mas, visto que estão presentes desde a sua origem no mercado, formando a sua identidade primeira, podemos praticamente considerá-los como características "físicas", estruturais do objeto/produto Coca-cola. Temos, numa 1a. fase, as propagandas da Coca fazendo uma apresentação do refrigerante, através de seus signos básicos. O produto é mostrado e oferecido ao consumidor nas fábricas, através de sua própria imagem (fotografia) ou pela mão de alguma pessoa. Não há a utilização isolada de marcas e signos que remetem ao produto, que não aqueles(as) que pertencem à sua própria imagem. Temos ainda, nessa fase, o uso de associações conotativas, como os slogans "delicious and refreshing"; "national temperance beverage" e de personalidades históricas, artísticas, míticas (soldados da guerra, Rita Hayworth, Papai Noel) na promoção do produto. Esses elementos começam a fazer uma ponte entre o refrigerante (sua imagem) e a sociedade, assim como a qualificá-lo. A predominância da utilização de slogans promocionais reiteram o estágio de iconicidade imagética publicitário, na sua função de qualificar o produto. 02. COCA-COLA COMO ÍNDICE Em 1,2,3 da Semiótica, Pinto define o índice assim: "Segundo termo da segunda tricotomia (v.) dos signos (v.), o índice (v.) se define, em contraposição ao ícone (v.), como aquela função sígnica que, em vez de exibir em si traços do objeto (característica do ícone) aponta para fora de si na direção do objeto (v.) (2) A parte que chamei de "2a. Fase da 4
Publicidade da Coca-cola" que compreende a 2a parte do material que analiso e o período entre 1950 e a segunda metade da década de 80, aproximadamente, apresenta a publicidade da Coca num estágio de comunicação que poderíamos classificar como predominantemente indicial, do ponto de vista semiótico. É importante esclarecer que tanto aqui quanto em outros estágios, temos o uso de ícones e símbolos também, simultaneamente e separadamente, exercendo a função de emitir a mensagem desejada. Entretanto, começa a se observar, a partir desta etapa, que, de acordo com a evolução semiótica da comunicação de um produto com a sociedade, pode-se passar de um nível de linguagem mais concreto para uma maior abstração, uma vez tendo-se estabelecido uma ampliação do universo de conexões simbólicas entre o público e esse produto. Nesta 2a. fase, podemos verificar já um maior número de canais simbólicos entre o público e a Coca. Agora não só teremos o produto e a sua logomarca como signos da Cocacola, mas também uma trilha-sonora, um slogan e até mesmo ainda que em menor correspondência indicial a sua representação num certo comportamento/atitude do público. Não é imprescindível nessa fase a apresentação, pela mensagem publicitária, da garrafa e da logomarca do refrigerante, para que seja constatado pelo receptor o fato de tratar-se de um anúncio da Coca-cola, pois outros elementos o ritmo do jingle, "Isso é que é...", situações de muito suor já conseguem antecipar o produto e determinar o objeto da propaganda. Em outras palavras, eles apontam, indicialmente, para o produto. Não foram eliminadas a imagem, o nome da Coca, eles estão lá juntamente, garantindo a identificação do refrigerante, além de estarem reforçando e complementando a chamada indicial feita pelos outros elementos. Mas temos já aqui um certo grau de descolamento e de deslocamento do signo de seu(s) objeto(s) original(is) para signos de outra natureza. Esses signos apontam para o objeto originário: "Para ser índice, na verdade, basta que o signo esteja numa relação diádica de dois termos com seu objeto (quer dizer, uma relação existencial) independentemente da natureza dessa relação (que pode ser de contraste, ação e reação, causa e efeito, contiguidade, etc.) (3) 03. COCA-COLA COMO SÍMBOLO "...um signo cujo objeto é conhecido e cujo interpretante pode ser facilmente alcançado é aquele signo que representa uma lei, uma regularidade, um hábito, uma convenção, uma previsão ou conceitos parecidos." (4) 5
Conforme a definição de símbolo para a semiótica, dizemos que um signo se encontra em estágio simbólico quando a sua ligação com o objeto que representa não mostra uma relação física, analógica e só se deve em conseqüência de um caráter convencional estabelecido com este, a priori. Aplicando este conceito ao material dessa análise, podemos dizer, então, que a publicidade da Coca-cola em sua 3a. fase (anos 90) alcança um estágio de comunicação prioritariamente simbólico com o público, do ponto de vista semiótico. Aqui também teremos a presença de ícones e índices, da mesma maneira que já tínhamos relações simbólicas estabelecidas anteriormente, entretanto, destaca-se a abundante utilização de outros elementos, que não estão mais colados ao objeto/produto ou que sinalizem diretamente a sua identidade. A Coca-cola começa a se afastar de traços muito singulares para ocupar um estatuto mais generalizado de sinônimo de "refrigerante" e de "bebida refrescante". Não há convite para o consumo ou para a escolha do produto segundo critérios de qualificação do mesmo. Seu consumo povoa, unanimemente, todos os universos singulares. A escolha agora se define pela situação, lugar e hora de consumi-lo, sendo que, quanto ao objeto, será "sempre Coca". Á medida que a Coca vai firmando seu império mercadológico e se tornando um dos produtos mais consumidos mundialmente império que conta com uma história comercial e promocional de um século ela deixa de prescindir dos signos originais/singulares para se identificar. Torna-se um signo universal de bebida não-alcóolica/refrescante/refrigerante. Assim, em sua evolução, caminha para o estatuto de substantivo comum, ou seja, de ícone para índice e, finalmente, símbolo de bebida universal, aberto a uma amplitude de complementos Coca-cola para urso; Coca-cola como substituto de mulher ou homem; Coca-cola para astronautas, etc. Teremos a comparação do produto, em grande parte das novas propagandas, aos hábitos universais, aos substantivos comuns - comidas, líderes, dia, noite, música, etc. Como símbolo universal, ele ganha independência para se expressar e uma múltipla funcionalidade, como podemos observar nos comerciais "O som de Coca-cola", no qual as embalagens de Coca são utilizadas como instrumentos musicais, e no "Garrafas e motos", no qual garrafas de Coca-cola seguem os mesmos movimentos de motocicletas. Se o produto, num estágio anterior, depende de seus traços básicos para se afirmar, produzir o recall esperado, assim como se faz para identificar substantivos próprios: "João", de Belo Horizonte, economista, olhos azuis, cabelos castanhos, 1,80 m de altura, no estágio simbólico, ele se transporta para toda parte: "homem" na região polar, na espaçonave, nas artes, em vários países, na afetividade, etc. 6
"O nome próprio simplesmente aponta para seu portador (um singular dentro daquela espécie), mas o substantivo comum nomeia coletivamente todos os seres daquela espécie e ao mesmo tempo exclui os não pertencentes àquela espécie." (5) A PUBLICIDADE COMO OBJETO DE CONSUMO Podemos identificar através das imagens e VTs relativos à publicidade da Coca-cola o histórico de um produto no mercado nacional e internacional. Pode-se verificar, por exemplo, pela sua apresentação estética, formato, material, tamanho, entre outros, que a Coca era vendida, um pouco depois do início de sua produção, em garrafinhas de 200ml. Por volta dos anos 50 foi introduzida a garrafa de 290ml no Brasil. Pode-se notar também que nos anos 60, pelo menos nos EUA, já se consumia a lata com o diminutivo Coke. As publicidades têm a sua própria história também e é quase impossível fazer-se uma dissociação clara entre aquilo que é característica só do objeto ou só da publicidade. Concentrando-me apenas no tocante ao discurso publicitário, gostaria de interpretar algumas questões pertinentes à luz de algumas afirmações propostas por Jean Baudrillard em O Sistema dos Objetos. A observação da evolução dos três estágios da Coca nos conta uma história que reflete os traços de seu protagonista (o refrigerante) e do universo que o cercava. Como um romance que narra/constrói o percurso de seu personagem central, suas trajetórias pessoais, suas transformações no tempo, seu mundo social (infância, adolescência, namoro, casamento, etc.), a publicidade humaniza um produto, criando e projetando junto a ele, além das transformações intrínsecas ao objeto, todo um mundo de significações. Temos, então, uma seqüência de slogans, trilhas-sonoras, textos, logomarcas, entre outros, que vão repetindo, inovando, recuperando traços, apresentando e estabelecendo um discurso próprio e periódico com os consumidores. "...retorna integralmente ao sistema dos objetos, não somente porque trata do consumo, mas porque se torna objeto de consumo. É preciso distinguir direito essa dupla determinação: é discurso sobre o objeto e ela própria objeto." (6) Não há muitos espaços vazios de conotação, tenta-se preencher o discurso publicitário com muitos elementos (em extensão e intensidade) e praticar a sua renovação periódica, assim como se faz com o objeto. Vale dizer também que, diferentemente do produto, a publicidade ainda é ofertada ao consumidor, o que democratiza muito mais o seu acesso a ele e confere 7
ao seu discurso um caráter de "estar a serviço do indivíduo". (7) Nos VTs institucionais, podemos identificar claramente essa característica: "Boas Festas", "Copa de 86", "Olimpíadas", "Patrocinador Oficial da Copa do Mundo" promovem a imagem da empresa com homenagens a eventos de grande importância social. Um outro aspecto da linguagem publicitária trabalhado por Baudrillard fala-nos do processo de leitura do signo publicitário. Haja vista a sua relativa autonomia e liberdade discursiva para emitir uma mensagem que não esteja ligada à praxis do objeto que ele promove, o signo publicitário tem que proporcionar a sua própria leitura, tem que ser legenda de si mesmo. (8) Não generalizando tal afirmação pois temos a evidência de diversas situações mais conectadas com a praxis do objeto (na propaganda do "Piquenique", amigos tomam o refrigerante como acompanhamento de sanduíches), mas considerando a sua importância, podemos afirmar que, devido à sua múltipla possibilidade associativa e em sua intensa utilização de figuras de linguagem, sons, imagens, símbolos, entre outros, o signo publicitário venha crescentemente demonstrando um comportamento que o aproxima do estatuto de "auto-referente". Principalmente, quando tratamos de publicidades de produtos que alcançaram um estágio mais avançado na relação com o consumidor, como pudemos observar na 3a. Fase da Publicidade da Coca-Cola, na qual é evidente a desconexão entre a factualidade do objeto e os signos publicitários que discursam sobre ele (ou sobre si mesmos). No VT "Sempre Haverá", produzido em 27/05/93, temos a seguinte letra executada através de locução: "Sempre haverá líderes, seguidores, dever de casa, projetos científicos, as sete maravilhas do mundo, seu mundo, sua Coca-cola. Sempre vão existir meninos, meninas, o movimento certo, as jogadas erradas, seu encontro, nenhum encontro, sua identidade, sua Coca-cola. Sempre vão existir, sempre." Nesta campanha, foram editados vários takes de personagens, ruídos de áudio, que, de alguma forma, remetiam ao texto. Há aqui, como já analisei, a tentativa de aproximar a Cocacola aos eventos universais e colocá-la num nível de atemporalidade. Mas nada nos indica, de antemão, qual seria a chamada dessa campanha, o que lhe caberia melhor; nada antecipa esse signo. Tal qual o "sempre", poderíamos ter um outro advérbio, um adjetivo ou a ausência de algum deles simplesmente. Em relação ao sentido da descrição discursiva, podemos entendêlo, mas isto só é possível a partir da própria lógica que é construída no texto, das comparações que ele cria, lógica que pode fazer sentido com a realidade ou não. Não há 8
grande estranhamento por parte das pessoas se esse sentido não criar uma correspondência factual com a realidade, pelo contrário, na maioria das vezes é muito comum que esse sentido se estabeleça depois; a partir da publicidade. Depois de inserido num contexto seqüencial de propagandas de um produto e da própria campanha à qual pertence, é que será possível estabelecer a sua "razão de ser" dentro da mensagem. E esse estatuto do signo publicitário já se encontra incorporado na lógica do discurso publicitário, tanto em nível de emissor quanto de receptor. ASPECTOS DE MITO NA PUBLICIDADE DA COCA-COLA Sem querer adentrar no vasto campo do mito em suas múltiplas abordagens, coisa que fugiria ao meu domínio e ao fôlego da pesquisa, o que busquei foi apenas identificar alguns pontos de conexão entre este tema e o material analisado. Chamaram-me a atenção, de forma significativa, três aspectos apresentados pelas imagens dos VTs da Coca na década de 90 (3a. Fase), que revelaram afinidades conceituais com a questão do mito. A Coca-cola aparece-nos em comerciais mais recentes como um objeto semi-deus, venerado e amado pelo mundo. Se, anteriormente, o refrigerante, assim como os seus concorrentes, parecia se esforçar no sentido de seduzir e conquistar os consumidores, na terceira fase os VTs retratam em suas imagens um consumidor que, pelo contrário, se curva perante o produto. A sua publicidade se dá ao luxo de simplesmente afirmar "sempre Coca-cola" e não apresentar quase nenhuma justificativa sequer para a sua escolha. Não quero dizer com isso que não existe(m) mecanismo(s) de sedução nos VTs mais recentes do material, mas há uma mudança de atitude no lugar de centro das atenções não está mais o consumidor e, sim, a Coca. Como um deus, um mito, uma peça fundamental, que é adorada por todos. Algumas características dos mitos apontadas por Eliade em seus relatos e estudos sobre os mitos nas sociedades primitivas em Mito e Realidade e em Aspectos do Mito, foram de valor para as seguintes aproximações entre as funções e significados sociais do mito e o status quo projetado pela publicidade da Coca para a sua marca no período. De modo geral, os mitos exerciam uma função de justificar as convenções, a moral, as leis que regulamentavam as relações de cada sociedade. A partir do relato dos mitos, de suas referências mitológicas altamente respeitadas, principalmente por trazerem em si uma aura sagrada e intocável, as gerações garantiam a manutenção de certos valores, a conservação de 9
padrões de comportamento para as próximas gerações. O fato de um mito sustentar a manutenção de certos padrões tem relação com o conteúdo de seu próprio relato (que endossa a lógica desses padrões) e também com o aspecto de que a posição do mito é meio intocável, altamente respeitada e, dessa forma, pouco vulnerável a mudanças. Estar numa posição mitológica favorece, portanto, a manutenção desse status quo. (9) É daí que podemos inferir que a Coca-cola, ao ter alcançado um status de notável liderança mercadológica em seu setor, optou por uma estratégia publicitária de coroação de sua marca, elevando-a a uma posição de mito, de objeto aurático (o êxtase e a adoração dos ursos polares mostram isso claramente). Dessa forma, procura também mostrar ao público uma condição de invulnerabilidade, uma posição de liderança absoluta, incontestável e para sempre. Uma outra característica, que considero ser ainda mais significativa, é a atemporalidade do mito. Eliade nos fala que, na maioria dos casos, os mitos primitivos narram a origem de algo das tribos, seja a respeito de suas próprias raças, sociedades, terras ou de elementos que compõem seus universos. Eles narram uma origem situada num outro tempo cronológico, mas não estão localizados ou presos àquele tempo. O mito não está situado num tempo cronológico, ele pode ser reatualizado, revivido pelos seus discípulos através de rituais que resgatam as suas condições de existência e, com elas, o seu tempo sagrado. Sendo assim, se existe em uma certa sociedade, por exemplo, a crença em um deus da fertilidade, poderá haver um ritual no momento em que será efetuado o plantio de um determinado alimento, no qual, sob determinadas condições (através da narração de sua estória, oração, etc.), aquele deus poderá ser novamente presentificado para produzir os mesmos efeitos de sua presença em outros tempos. (10) "Numa fórmula sumária, poderíamos dizer que, ao viver os mitos, sai-se do tempo profano, cronológico, ingressando num tempo qualitativamente diferente, um tempo 'sagrado', ao mesmo tempo primordial e indefinidamente recuperável." (11) Um aspecto enfatizado na referida fase da publicidade da Coca é a atemporalidade de seu consumo. O slogan da campanha afirma isso, com todas as letras: "Sempre Coca-cola". As imagens dos comerciais projetam-na num futuro ficcional, resgatam-na no passado e, muito freqüentemente, inserem o refrigerante num contexto em que não se pode perceber exatamente a sua temporalidade. A ação do tempo cronológico não ameaça a sua existência, isso é o que podemos ver bem exprimido pelo VT intitulado "Neon". Em apenas 15" de duração, a propaganda mostra parte da paisagem de uma cidade à noite: no alto de um prédio de traços mais antigos, estão afixados um outdoor com a logomarca da Coca-cola e, na lateral, suspende-se do prédio um letreiro em neon que também divulga o refrigerante. O 10
outdoor mostra a logomarca em um formato transitório, ou seja: num primeiro momento, lembra um de seus formatos antigos o disco vermelho com as inscrições da Coca-cola (por volta dos anos 50), mas já contendo em seu interior a garrafinha de 200ml da logomarca atual, e, em seguida, sofre o acréscimo da palavra "sempre", vazada no fundo azul, transformando-se no verdadeiro formato atual. O letreiro em neon informa, alternadamente, as promoções: "sempre", "gostosa" e "beba". No áudio, um instrumental do início do século. Ao final, o comercial mostra a imagem de um cometa passando pelo céu, ao fundo da paisagem. Vemos ali uma mistura de tempos cronológicos, pois, de certo modo, se está no início do século, de certo modo, no tempo atual e, de outro modo, em qualquer tempo ao qual não saberemos definir. O cometa passa; as promoções do letreiro se alternam; e a Coca permanece sempre. Qual de nós tem essa capacidade ilimitada de transgredir a temporalidade? Parece-me que isso pertence ao universo dos seres sobrenaturais, dos objetos sagrados, dos mitos e, como nos mostra a Coca, dos símbolos de consumo elevados à categoria de mito. 11
CONCLUSÃO As análises que desenvolvi tratam de abordar a linguagem publicitária em três diferentes aspectos, apontando, cada qual em seu tópico, para uma tendência da comunicação publicitária realizada junto aos meios de comunicação de massa rumo a uma semelhante direção: a um abstracionismo do mundo do consumo, pela transformação crescente daquilo que de concreto e real pertence ao objeto naquilo que do objeto se comunica, se mitifica e lhe é acrescentado. Transportado para um universo de signos de linguagem extremamente mutável, o objeto publicizado pode vir a ser "quase tudo", desde que devidamente significado, numa sociedade que se exercita a fazer, cotidianamente, seguidas e momentâneas leituras de sua realidade através da virtualidade imaginária dos media. Poderíamos dizer que essa vivência imaginária, com a qual o homem contemporâneo divide as suas outras atividades, tornou-se uma espécie de "vidência". Neste novo estatuto de experiência, o sujeito é afastado de um contato físico mais direto com a sua realidade, conservando-se mais numa atitude de espectador, que se insere no discurso como um interlocutor indireto e virtual, constituindo juntamente com os objetos-signos de consumo a imagérie antropológica desta neo-realidade. Não pretendo entrar em méritos de questionamento acerca da qualidade de uma ou outra(s) vivência(s) ou ainda, como muitos discutem, questionar se, em conseqüência da passividade de sua posição, o receptor dessas mensagens estaria afastado de uma experiência. Até mesmo por questionar tais posicionamentos, uma vez que aquilo que se processa no imaginário pode muito bem, em algum momento da vida do indivíduo, propiciar novas experiências, alterar seu repertório de significação, influir na sua forma de pensar e agir. Como já foi analisado, a publicidade tem um discurso próprio que geralmente se processa através da aglutinação de significações a uma determinada marca ou objeto, cujo conteúdo cria singularidade e estabelece coerências para aqueles que acompanham esse enunciado. Essa vivência ou, como chamei, "vidência", concorre paralelamente com as outras experiências do indivíduo trabalho, relações pessoais, lazer e, provavelmente, influencia e sofre influência delas, indiretamente. O que considero razoável sublinhar, não obstante, é que existe um novo e diverso estatuto de experiência que se processa entre o homem e os programas e enunciados transmitidos através dos meios de comunicação de massa. Essas enunciações aparecem na publicidade, mas também nas novelas, nos jornais, nas matérias da mídia impressa e eletrônica com algumas características em comum e outras peculiaridades. A relação que se 12
estabelece entre um discurso como o publicitário, em que não há a interação direta entre emissor e receptor e no qual constituem-se ligações semióticas em níveis muito abstratos, não permite a realização de uma sintaxe da linguagem com a realidade do receptor nem a construção de um discurso muito lógico. E, quanto maior for o grau de autonomia do objeto publicizado para com seus signos concretos (como na 3a. Fase da Publicidade da Coca), menor será o vínculo direto entre a experiência imaginária do consumidor da propaganda e o seu universo social concreto. Pudemos verificar também que, ao evoluir para a condição de símbolo, ou, como analisei através da semiótica, para uma condicão semelhante à de um substantivo comum facilmente adaptável a vários modos de qualificação a Coca-cola passa a ter uma funcionalidade sígnica impressionante, transformando-se num objeto altamente refratário e susceptível às mais surpreendentes operações. Isso intensifica a sua capacidade de abstração e lhe dá maior autonomia. Acrescenta-se a isso o fato de que, na condição de símbolo, a marca aproxima-se das unanimidades, dos símbolos universais e, assim também, da lei. Uma lei que, vale lembrar, diante da condição mais autônoma do signo e da abstratividade permitida pelo discurso publicitário, justifica-se em sua própria retórica, apropriando-se estrategicamente daquilo que mais lhe convém para conceder como prova ao público. E, finalmente, a criação de um status de mito busca conceder ao produto e à marca uma sustentação social e uma maior potencialidade estratégica para superar os limites dos outros objetos naturais e, assim, tentar consolidar a sua posição hegemônica. 13
CITAÇÕES 1. PEIRCE, apud PINTO, 1995, p.24. 2. PINTO, 1995, p.28. 3. PINTO, 1995, p.28. 4. PINTO, 1995, p.54. 5. PINTO, 1995, p.54. 6. BAUDRILLARD, 1973, p.174. 7. BAUDRILLARD, 1973, p.180-181. 8. BAUDRILLARD, 1973, p.186-187. 9. ELIADE, 1989. 10. ELIADE, 1994, p.21-23. 11. ELIADE, 1994, p.21. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. Trad. Zulmira Ribeiro Tavares. São Paulo: Perspectiva, 1973. BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1991. CAMPOS, Maria Helena Rabelo. O canto da sereia: uma análise do discurso publicitário. Belo Horizonte: UFMG, 1987. ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Trad.: Manuela Torres. Rio de Janeiro: Edições 70, 1989. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Pola Cirelli. São Paulo: Perspectiva, 1994. FERRARA, Lucrécia D'Aléssio. Leitura sem palavras. São Paulo: Ática, 1993. FERRARA, Lucrécia D'Aléssio. Estratégia dos signos. São Paulo: Perspectiva. LÉVI-STRAUSS, Claude. Totemismo hoje. Trad. Malcom Bruce Corrie. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. PEIRCE, Charles S. Semiótica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 1977. PINTO, Júlio. 1, 2, 3 da Semiótica. Belo Horizonte: UFMG, 1995. ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é mito. São Paulo: Brasiliense, 1994. SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1985. 14