Balada da infância perdida e Um táxi para Viena d Áustria: identidades itinerantes nas narrativas de Antônio Torres



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Balada da infância perdida e Um táxi para Viena d Áustria: identidades itinerantes nas narrativas de Antônio Torres Resumo: Doutorando Rogério Gustavo Gonçalves i (UNESP/FAPESP) Neste trabalho, focalizamos as particularidades da (des)organização do tempo e do espaço na constituição da memória e da imaginação dos narradores-personagens de Balada da infância perdida (1986) e Um táxi para Viena d Áustria (1991), de Antônio Torres, a fim de estabelecer uma inter-relação dessas categorias, que se apresentam fragmentadas ou relativizadas nos dois romances, com a temática abordada. Analisamos o fato de que os personagens oscilam entre os sentimentos de acolhimento e não-pertencimento, tanto pelo espaço urbano quanto pelo sertanejo, resultando dessa alternância a constituição de uma identidade também fragmentada e ambígua. O objetivo é demonstrar como o tema, aliado aos procedimentos formais, aponta criticamente a questão da crise identitária do retirante nordestino, nesses romances, ao destacar a situação do homem deslocado de sua terra de origem e exilado na urbanidade. Palavras-chave: Antônio Torres; espaço; memória; identidade. 1 Introdução Balada da infância perdida, publicado em 1986 e Um táxi para Viena d Áustria, de 1991, são dois romances nos quais, por meio da memória e do trabalho imaginativo de seus narradoresprotagonistas, se estabelece uma antinomia entre os considerados centros geográficos, economicamente desenvolvidos e disseminadores de cultura, e as regiões periféricas do Brasil, mais carentes e atrasadas socialmente. Essa oposição, que nesses romances é representada pela cidade do Rio de Janeiro e certas áreas do Nordeste brasileiro, se apresenta como uma nostálgica obsessão temática do autor, Antônio Torres, visto que aparece em quase todos os seus textos literários. Tal contraste também evidencia a tendência do escritor à utilização de elementos autobiográficos em seu processo de criação ficcional, visto que Antônio Torres é nascido no sertão nordestino, no interior da Bahia, e trabalhou como publicitário e jornalista, inicialmente em São Paulo e depois no Rio de Janeiro, do mesmo modo que os personagens principais dos romances aqui analisados. Em Balada da infância perdida, as reminiscências do narrador-protagonista, que não é nomeado, vêm à tona a partir do momento em que ele, após uma noite de bebedeira, deita-se, ao chegar a seu apartamento, e terminam quando o despertador toca e é preciso levantar-se para trabalhar. Suas recordações, assim, desenvolvem-se numa atmosfera onírica, que possibilita o surgimento de situações absurdas, ao lado da evocação de momentos e de personagens significativos em sua vida. Entre estes, está a lembrança do pai, que vive isolado na caatinga, sem contato com a civilização, como que suspenso no tempo e no espaço. É recorrente também a lembrança dos parentes mortos do interior da Bahia, com quem o narrador dialoga, como a mãe, a tia Madalena e o primo Calunga que, como ele, também optou por buscar melhores condições de vida na metrópole, mas retornou ao Nordeste, doente e falido, como símbolo da degradação humana que o ambiente urbano pode causar. Nessa operação de lembranças intercaladas com cenas fantasiosas, as situações apresentam-se de forma desordenada, sem uma ligação direta aparente, com cortes cinematográficos e retomadas súbitas, como representação do inconsciente do personagem, ressaltando a ilogicidade temporal das recordações trazidas por meio do sonho e da embriaguês. Um táxi para Viena d Áustria apresenta a história de Veltinho, publicitário desempregado que, também no espaço caótico do Rio de Janeiro, sofre com os problemas da vida moderna, entre eles o de reinserir-se no mercado de trabalho. A história se inicia quando, após assassinar, sem

motivo lógico, o amigo de juventude Cabralzinho, escritor frustrado que, assim como ele, é exemplo de emigrante fracassado, Veltinho foge do local do crime, entrando num táxi. A partir de então, o personagem empreende uma viagem em seu subconsciente e passam a ser narrados momentos de sua juventude no Rio Grande do Norte e outros fatos marcantes de sua vida. Essas recordações vêm misturadas com devaneios, situações atípicas imaginadas que o reportam a lugares idealizados ou nunca antes visitados e que expõem seus anseios e frustrações. Após despertar, no banco traseiro do táxi, da espécie de estado de transe em que se encontra, Veltinho percebe que o automóvel permanece no mesmo lugar, preso em meio ao engarrafamento de Ipanema. A representação da memória e da imaginação dos personagens-narradores se apresenta como elemento estruturador dos romances, uma vez que o passado e o presente enredam-se por meio delas. A exploração dessas duas instâncias, nessas narrativas, constitui princípio norteador para o processo de composição de Antônio Torres, pois, nelas, o tempo psicológico, das lembranças e do devaneio, que remete a uma viagem também no espaço, parece importar mais que o tempo histórico. Neste trabalho, portanto, atenta-se para o modo como os narradores articulam os elementos memorialísticos e imaginativos, responsáveis pelos constantes deslocamentos temporais e espaciais nos dois romances, buscando-se avaliar tais variações como expressão da formação identitária instável dos personagens, emigrantes nordestinos vivendo em meio à histeria da metrópole moderna. 2 A memória como agente da mobilidade temporal Nas duas narrativas a ação desenvolve-se, predominantemente, no interior do pensamento dos narradores-personagens, onde o tempo é subjetivado. Contudo, as alterações entre o tempo cronológico e o tempo da memória não são facilmente discerníveis, porque os narradores, muitas vezes, não marcam o retrocesso do flashback, não dão o passado como passado, como coisa apenas lembrada. Eles fazem o passado ressurgir, constantemente, como presença atual. O plano da diegese, nesses romances, comporta, basicamente, duas seqüências narrativas: na primeira, que funciona como uma moldura da segunda, o tempo é limitado, às vezes descrito ou referenciado. Na segunda, por outro lado, o tempo é quase sempre ilimitado, uma vez que é matéria da memória ou do sonho. Logo, o que é narrado nessa instância não obedece ao tempo histórico, mas ao tempo subjetivo. O tempo objetivo é comprimido numas poucas horas e o passado e o presente subjetivos são expandidos, de modo a cobrir a quase totalidade das tramas, terminando com o retorno ao presente objetivo dos narradores. Podemos dizer que as reminiscências surgem, predominantemente, desencadeadas pela memória involuntária dos narradores, em detrimento da memória voluntária, para usarmos a noção de Proust, retomada e desenvolvida por Walter Benjamin (1985a, p. 37). Sendo a memória voluntária provocada de maneira consciente e, portanto, tendendo a ser cronológica, a reproduzir os acontecimentos numa seqüência linear, nos romances analisados verifica-se a ausência quase que total desse recurso, visto que os personagens não têm como objetivo inicial recuperar o seu passado, o da sua gente e da sua terra. As lembranças, entretanto, insistem em ressurgir, independentemente da vontade deles e, mesmo dentro do estado de inconsciência desses personagens, muitas vezes, são ativadas por meio de elementos do mundo sensorial, especialmente o visual (certas imagens que lhes despertam a lembrança) e o auditivo (geralmente o som de música). Conforme analisa Pouillon (1974, p. 143), nos romances de duração, o ponto de partida do romancista é uma idéia psicológica a que ele subordina todo o desenvolvimento da história. Nos dois romances, essa idéia parece consistir sempre na reflexão sobre o lugar do homem contemporâneo no mundo e a única função dos acontecimentos parece ser fornecer esse ponto de partida: o tiroteio no morro próximo, enquanto o protagonista dorme, em Balada da infância perdida, aviva o surgimento das lembranças dos familiares mortos do protagonista, enquanto o assassinato do personagem Cabralzinho, em Um táxi para Viena d Áustria, desencadeia a

retrospecção de fatos importantes da vida de Veltinho. A partir desse ponto inicial, algumas recordações tocam os narradores, originando neles essa espécie de associação incessante de imagens. Desse modo, verifica-se que o encadeamento de idéias propõe o ritmo da reflexão nesses romances, ou seja, uma idéia provoca outra idéia, seguindo o chamado fluxo de consciência. A configuração das lembranças nos romances conforma-se com o pensamento de Walter Benjamin (1985a, p. 37), para quem o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois. Num outro sentido, é a reminiscência que prescreve, com rigor, o modo da textura. Ou seja, as lembranças nos romances de Antônio Torres, conforme discorre Benjamin sobre a representação da memória involuntária na obra proustiana, vêm por associação, em pedaços, aleatoriamente, ocasionando a mistura de temas. Daí o seu caráter inacabado, a dificuldade de conclusão. Anatol Rosenfeld, ao focalizar as influências externas nas transformações estruturais das manifestações artísticas, observa que, nos romances contemporâneos, em geral, a irrupção, no momento atual, do passado remoto e das imagens obsessivas do futuro não pode ser apenas afirmada como num tratado de psicologia. Ela tem de processar-se no próprio contexto narrativo em cuja estrutura os níveis temporais passam a confundir-se, sem demarcação nítida entre passado, presente e futuro.(rosenfeld, 1985, p. 83) Obedecendo aos movimentos da memória involuntária, as recordações apresentam-se, nesses romances, às vezes, com uma configuração que não chega a ser de sucessão, mas de simultaneidade. Desse modo, os narradores usam a subversão da cronologia para produzir determinados efeitos: sem prevenir o leitor, fazem surgir um momento no outro, desorganizando a ordem habitual e promovendo o entrecruzamento de acontecimentos presentes com uma ou várias reminiscências de acontecimentos passados. Durante a representação do fluxo da memória, as narrativas apresentam-se densas, escassas de ações e repletas de divagações, marcadas incisivamente pela destruição da ordem temporal. 3 A memória e a imaginação como agentes da mobilidade espacial A essa eliminação da sucessão temporal corresponde a indeterminação do espaço: ambos aparecem como relativos, ou mesmo aparentes nas obras. Em relação à configuração espacial, Rosenfeld constata que a arte moderna nega o compromisso com o mundo empírico das aparências, sendo o espaço um dos elementos que perdem sua referência em relação ao realismo tradicional, no processo de desrealização, definido por ele como a tendência de reproduzir, de uma forma estilizada ou não, idealizada ou não, a realidade apreendida pelos nossos sentidos. (1985, p. 76). Nos dois romances de Antônio Torres, assim como o tempo, o espaço se esvaece, quando não se constitui da alternância entre a cidade e o campo, entre o caótico e o edênico: o primeiro representado pelo espaço urbano do Rio de Janeiro, focalizado no presente, e o segundo pelo espaço nordestino da infância, relacionado ao passado. As narrativas mostram, inicialmente, a ambientação caótica da cidade grande e o desejo de evasão que ela causa nas pessoas. Depois, no interior do pensamento dos personagens, espaço e tempo passam a sofrer alterações profundas e tornam-se confusos, resultando em narrativas fragmentadas, com enredos labirínticos e abruptos deslocamentos espaciais. O conflito do eu com o mundo circundante leva os narradores-personagens a projetarem espaços distintos ou inexistentes, a buscarem apreender a totalidade do real por meio da intuição e da reflexão desenvolvidas a partir da memória ou do sonho, como se pode notar neste excerto de Um táxi para Viena d Áustria, em que Veltinho, diante da poluição visual e do ar da cidade, evoca a atmosfera provinciana do lar materno do passado: Alô, mãe? Já procurei em toda a parte e nunca acho a sua casa. Só vejo prédio alto. Cadê o cheiro das suas goiabas, no quintal? Meu cheiro é de álcool e de gasolina. (TORRES, 2005, p. 139)

Em Balada da infância perdida, esse espaço de fuga é representado principalmente pelo ambiente pitoresco e idealizado do interior baiano, que o protagonista constata estar circunscrito a um passado longínquo, uma vez que o sertão de sua atualidade também se tornara degradado e corrompido. Em Um táxi para Viena d Áustria, além da casa materna, essa condição pode ser atribuída também à aldeia comunitária portuguesa onde o narrador afirma não se utilizar dinheiro ou à cidade de Viena, com sua placidez inabalável, onde se pode ouvir música clássica nas ruas, ou tantos outros lugares aprazíveis que Veltinho visita, em sua viagem imaginária dentro do táxi. Tais alterações espaciais, que aparecem como índices do estado psíquico dos narradorespersonagens, definem como sua posição essencial o entre-lugar, divididos ante as paisagens que evocam, desprovidos de um centro de referência e tomados por um sentimento de não pertencimento. Inconformados com o seu tempo atual, os personagens insistem nas possibilidades de retorno aos nichos de conforto ligados à sua origem. No decorrer das narrativas, é recorrente a evocação de espaços considerados de abrigo e proteção, que têm valores de onirismo consoante, para empregar a expressão de Bachelard (1989), utilizada em relação aos lugares do sonho considerados de abrigo e proteção. Por exemplo, o rancho do bisavô, que morava nos confins do mundo, aonde a gente só chegava a cavalo ou num carro de bois, com sua luz de candeeiros e o cheiro de milho verde fumegando nas panelas (TORRES, 2005, p. 74), em Um táxi para Viena d Áustria e a saudosa casa do pai do protagonista de Balada da infância perdida: [...] Meu pai. Papai. O velho: só e esquecido no silêncio de uma tapera, num pé de grota sem futuro. Mesmo assim. Assim mesmo ele ainda sonha um sonho temperado com um cheirinho bom de alecrim, enquanto eu, recendendo a álcool por todos os poros, me debato na cama, contando caixõezinhos azuis. Sem pai nem mãe que me cantem uma cantiga de ninar. O acalanto que ouço agora é outro. Ganidos e uivos lancinantes, circunvoluções de helicópteros e gritos e pânico e o horror debaixo de uma tremenda fuzilaria no morro bem ao pé da minha cama. E papai jamais virá para me enganchar em seu cangote e me carregar por aí até que eu adormeça. (TORRES, 1999, p. 9) Essa insistência em trazer à lembrança os lugares da infância aponta para um desejo, talvez inconsciente, de recomeçar a vida com novas possibilidades de satisfação: os personagens, vivendo no espaço urbano, cultivam um desejo quimérico de retorno a um paraíso perdido. Em Balada da infância perdida e Um táxi para Viena d Áustria, a mudança para a cidade é abordada em suas conseqüências negativas: os migrantes nordestinos são socialmente marginalizados, não conseguem uma boa condição econômica e acabam desiludindo-se. No primeiro romance a mudança suscita a doença do personagem Calunga que, sucumbindo às pressões da cidade, entrega-se ao alcoolismo e, no segundo, leva à perda da dignidade e dos valores morais do narrador Veltinho que, depois de desempregado, torna-se um assassino. Após anos vivendo no Rio de Janeiro, com o fracasso de seus planos de enriquecimento, excluídos e marginalizados na sociedade urbana, os narradores retornam ao Nordeste do passado, por meio das memórias e do devaneio, a fim de restabelecer os laços com o ambiente aconchegante reconstruído em suas memórias e resgatar suas origens, reencontrar o que acreditam ser o seu verdadeiro eu. Entretanto, de volta, eles percebem não ser possível readaptar-se à vida pacata de antigamente. Eles não se identificam mais com a sua terra de origem, porque a experiência na metrópole os modificou. Eles percebem que o passado não pode ser recuperado, que eles não são mais os mesmos homens de antes. A terra natal que estava cristalizada em suas memórias também não existe mais, se tornou um espaço utópico. Ao mesmo tempo, reconhecem não poderem mais renunciar ao modo de vida e às possibilidades oferecidas pela cidade grande, apesar de todos os problemas, conforme podemos perceber na citação da fala de Veltinho em Um táxi para Viena d Áustria, num momento de deslumbramento com a paisagem da cidade, em que ela é vista como espaço eufórico:

Mas já estou contornando a esquina e pegando a direção da praia. Pisando em caco de vidro. Nada, porém, vai me impedir de ver o pôr-do-sol à beira-mar. Tanto mar, tanto mar. Belos crepúsculos. O Rio é tão bonito que chega a dar raiva. Há qualquer coisa aqui que me faz perder a cabeça. Deve ser o excesso de luz. Luzes e cores que se fundem nos meus olhos embaçados e se propagam, banhando edifícios, calçadas, ruas, automóveis, pessoas. [...] (TORRES, 2005, p. 222) Portanto, os personagens oscilam entre os sentimentos de desejo e repúdio pelo ambiente urbano, de acolhimento e desamparo, resultando da alternância entre cidade e sertão, presente e passado, a constituição de uma identidade também fragmentada e ambígua. Tal situação de instabilidade representada nos romances exemplifica as reflexões de Stuart Hall a respeito do colapso das identidades modernas. Nas palavras do crítico cultural, um tipo de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX, fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. (HALL, 1999, p. 32) Hall coloca, aqui, entre outras coisas, que o contato do eu com o outro numa sociedade global onde não existem mais fronteiras rígidas, onde não existem mais comunidades completamente isoladas leva à impossibilidade da formação de identidades sólidas, bem definidas e univalentes. Os dois romances permitem perceber uma cosmovisão marcada pelo choque com o cotidiano imediato e pelas evidências de um mal-estar, revelados pela ânsia de evasão do presente descolorido, a partir, não apenas da rememoração do passado, mas também do trabalho imaginativo de seus narradores. Na introspecção dos personagens, alguns episódios apresentam-se como puro produto da imaginação e outros, como num sonho, parecem ser fragmentos de memória misturados com delírio, sem haver, às vezes, como discernir o que pertence a um e outro. Nessas narrativas, o plano da imaginação proporciona o acesso para o atípico, o aparentemente gratuito e o nonsense, com o surgimento de situações surreais, que enveredam para o mágico, para o insólito, dada a sua contrariedade à ordem natural das coisas ou à racionalidade humana. Como exemplos, podemos citar a visão do narrador de Balada da infância perdida de caixõezinhos na parede de seu quarto e a situação fantasiada por ele de conduzir um tanque de guerra voador que o transporta a diversos lugares do passado. Em Um táxi para Viena d Áustria, destaca-se a percepção de Veltinho de uma parede branca que o acompanha constantemente e a qual não consegue transpor ou seu diálogo com a barriga falante do amigo Cabralzinho, além do próprio táxi como veículo para os espaços do sonho e da memória.

Essas situações incomuns que compõem o elemento imaginativo dos romances podem ser interpretadas coerentemente com o desenvolvimento psicológico dos personagens e com a temática abordada, a partir das reflexões de caráter sociológico de Walter Benjamin, para quem o homem moderno renuncia a experiência cultural herdada e passa a valorizar a imaginação criadora na busca de soluções compensatórias para os problemas de seu tempo: Eles devoraram tudo, a cultura e os homens, e ficaram saciados e exaustos. Ao cansaço segue-se o sonho, para compensar a tristeza e o desânimo do dia. (1985b, p. 119). Os fatos e ocasiões convencionalmente absurdos presentes no plano da imaginação dos personagens não são inseridos de maneira gratuita e infundada, mas contêm uma natureza denunciativa, constituindo fatores de crítica à condição do indivíduo na sociedade. Consistem em representações simbólicas das angústias e aspirações do homem deslocado diante da realidade atormentadora que, buscando o enclausuramento no seu mundo interior, por meio da fantasia, acaba por subverter os códigos naturais do mundo exterior. Conclusão Os romances Balada da infância perdida e Um táxi para Viena d Áustria exigem, por sua espessura psicológica, a descrição de uma duração que não constitua um simples desenvolvimento, uma simples sequência de fatos. A regra que prevê unidade de tempo, espaço e ação nas histórias realistas tradicionais é infringida nessas obras, que apresentam essas categorias fragmentadas, harmonizando-se com a temática que aborda um mundo composto de fragmentos diversos, em ruína. Os procedimentos utilizados para exprimir a temporalidade e a espacialidade, como a quebra da linearidade cronológica nas seqüências narrativas, a indeterminação de lugar e da fronteira entre presente e passado também acompanham os personagens-narradores em sua representação psicológica, na manifestação de sua subjetividade. Rosenfeld (1985, p. 97), ao apontar a tendência de se expressar por meio da forma o conteúdo histórico-social, afirma que, na arte moderna, exprime-se uma nova visão do homem e da realidade ou, melhor, a tentativa de redefinir a situação do homem e do indivíduo, tentativa que se revela no próprio esforço de assimilar, na estrutura da obra-de-arte a precariedade da posição do indivíduo no mundo moderno. Nesse sentido, as instâncias da memória e do devaneio nos dois romances, por servirem-se da recorrência aos mesmos temas e procedimentos, parecem convergir para um propósito do escritor de retratar as questões referentes à constituição identitária do emigrante nordestino. Os artifícios formais empregados são caracterizadores da crise que ganha caráter permanente nas obras, por meio de seus narradores, cujo comportamento anuncia o desabrigo do homem contemporâneo em meio à relativização generalizada de formas e valores. Por meio de seus personagens, os romances dão relevo à situação do homem deslocado de sua terra de origem e obrigado a se enquadrar no sistema opressivo, individualista e competitivo dos grandes centros urbanos, estabelecendo-se, assim, metonimicamente, o retrato do brasileiro exilado na urbanidade e em conflito com a realidade. Referências Bibliográficas BACHELARD, G. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989. BENJAMIN, W. A imagem de Proust. In: Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985[a], p. 36-49.. Experiência e pobreza. In: Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985[b], p. 114-119. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: 1999. POUILLON, J. O tempo no romance. Trad. Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Cultrix, 1974.

ROSENFELD, A. Reflexões sobre o romance moderno. In:. Texto/contexto. São Paulo: Perspectiva, 1985. TORRES, A. Balada da infância perdida. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.. Um táxi para Viena d Áustria. 8ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. i Rogério Gustavo GONÇALVES, Doutorando Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (IBILCE/UNESP São José do Rio Preto) Bolsista FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo E-mail: rogeriogstvo@yahoo.com.br