Direitos Humanos: Uma condição necessária para a cidadania



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Transcrição:

Direitos Humanos: Uma condição necessária para a cidadania Vanuza Maria da Conceição Silva Trancozo 1 Lourenço Zancanaro 2 ** Resumo: Ao analisar rapidamente as teorias dos grandes filósofos; Hobbes, Rousseau e Kant podemos entender que o ser humano é dotado de uma razão prática, a qual o deixa apto a formar uma sociedade civil que lhe garanta seus direitos, os quais já não existiam no estado natural graças à falta de ordem e de governo. Esses direitos passam a existir quando os homens descobrem a necessidade de viver com segurança. Isto os leva a criar um contrato onde os indivíduos se unem e transferem a um governante o poder de cuidar de seus direitos e a missão de instaurar a paz. Fica claro que a maior necessidade dos homens não é a sobrevivência, mas a tolerância. A única diferença que está presente entre os seres racionais se resume nos diferentes modos de se constituírem em sociedade. No mais fazem parte da mesma espécie biológica, ou seja, são todos iguais. Palavras-chave: Direitos humanos. Cidadania. Pluralidade cultural. Abstract: A quick analysis of the theories of the great philosophers Hobbes, Rousseau and Kant leads us to the understanding that human beings have a practical reason, which allows them to form a civil society that will guarantee their rights which did not exist in the natural state due to the lack of government and order. These rights came to exist when men s need to live in safety lead them to create a contract in which individuals unite and transfer to one governor the power to look after their rights and the mission to make peace. It becomes clear that men s greatest need is not survival, but tolerance. Because the only difference which is present among rational beings is the different ways in which they constitute society, as they are, otherwise, part of the same biological species, that is, they are all alike. Keywords: Human rights. Citizenship. Cultural plurality. Introdução A intenção do presente trabalho é apresentar uma possível base que sirva de fundamentação dos direitos humanos. De acordo com Bruno Konder Comparato é possível encontrar essa sustentação em grandes filósofos como Hobbes, Rousseau e Kant, uma vez que os mesmos desvelaram o direito natural. 1 Aluna do curso de Filosofia da UEL e bolsista do UEL/Afroatitude. 2 Orientador. Professor Doutor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina.

Tal compreensão foi possível graças à revolução científica, ocorrida no século XVII. Tornou-se necessário retrabalhar o conceito de direito natural no campo da política e do direito. Há também a necessidade de se fazer uma reflexão sobre qual o sentindo e a função da expressão dignidade humana e cidadania, porquanto parece existir grande confusão entre os dois conceitos. Veremos que, apesar de ambos terem uma forte correlação entre si, a dignidade humana está ligada ao indivíduo ao passo que a cidadania ao todo social. Para realizar essa análise nos guiaremos pela filosofia de Adela Cortina ao tratar a distinção entre cidadania social, econômica e civil. Ao discutir o tema pluralidade cultural veremos que os seres humanos são muito diferentes; variam na cor da pele, no formato dos olhos, nos cabelos, nas características físicas, na organização social, além da diversidade do mundo subjetivo. Mas com o desenvolvimento de modos de vida tão diferentes, surgem dentro da mesma espécie biológica os conflitos que muitas vezes estão pautados em acidentes como a cor ou posição social. Existe algo mais profundo que a mera exterioridade. Trata-se da essência humana ou do respeito à dignidade das pessoas. 1. A fundamentação dos direitos humanos em Hobbes, Rousseau e Kant a) Hobbes O primeiro a apontar para a questão do direito natural, foi Thomas Hobbes. A solução por ele proposta é o estabelecimento de um contrato por meio do qual os indivíduos se colocam sob a proteção de um soberano. Este tem a missão de manter a paz, mesmo que seja pela força. Hobbes tinha plena consciência da inauguração de uma nova etapa na investigação filosófica ao introduzir o método da ciência natural moderna na reflexão sobre o homem e a vida em sociedade. De acordo com seu entendimento, até então os filósofos políticos se limitaram a imaginar um modelo ideal de constituição política ou a descrever a organização política das sociedades existentes. O novo objetivo que se propõe a realizar, com sua filosofia política, era explicar racionalmente o comportamento humano, de modo a prever as conseqüências de determinadas ações e conceber

um arranjo institucional que continha as iniciativas individuais em um nível aceitável. Ao conceber sua filosofia política como uma ciência, precisava partir de fatos concretos (a realidade à sua volta estava conturbada, nesse momento ocorria a ameaça católica que vinha da Espanha). Não é por acaso que o medo ocupa uma posição de destaque na obra Intelectual de Hobbes. Para ele, o medo está na origem da guerra de todos contra todos. Persistir no estado de natureza, da mesma forma que é o medo que motiva os que se encontram nesse estado, a contrair uns com os outros um contrato, a estabelecer uma autoridade para controlá-los e garantir a paz. É também o medo que os obriga a obedecer a autoridade uma vez instaurada. De acordo com a investigação do filósofo, a verdadeira natureza do homem deve constituir o ponto de partida de toda análise política. Ela será uma ciência se soubermos como o homem é de fato. A ciência política será possível se construirmos Estados que se sustentem, em vez de tornarem permanente a guerra civil. Esse autor, diferentemente de Aristóteles não acreditava ser o homem uma criatura apta a viver em sociedade. Como o direito natural é prejudicial aos homens, por levar à guerra, estes vão se submeter a um direito civil que garantirá a paz. Dizer que no estado de natureza todos têm direito a tudo, significa dizer que ninguém tem direito a nada, pois não há como garantir esse direito. Podemos dizer que nesse momento, acaba o direito natural ao ser instituído o direito positivo. Com a formação do pacto tanto o direito quanto a justiça passam a ser concessões do soberano, o que deriva da própria fórmula do pacto e funciona como se cada homem dissesse aos outros: Cedo e transfiro o meu direito de me governar a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires para ele o teu direito, autorizando de uma maneira semelhante todas as suas ações" (Hobbes, 1997:103). É possível acreditar que o modelo criado por Hobbes represente um grande potencial para promover os direitos humanos. b) Rousseau O pensamento de Rousseau é categórico: se os princípios nos quais se apoiaram os teóricos do passado justificam a servidão, eles são falsos e é preciso refutá-los. Ele trata de reformular os conceitos centrais das reflexões de Hobbes

e Bodin, que estavam em voga na época, trabalhando à idéia de contrato e a noção de soberania, a partir de uma nova base. Para ele, os princípios verdadeiros devem estar comprometidos com a liberdade e esta só realizará na política, e, como tudo está ligado à política, as instituições são fundamentais, são elas que formam os cidadãos. Rousseau pretendia instituir o novo, de modo que não é possível entendêlo a partir das categorias antigas que ele critica. O seu principal alvo de destruição é a obra de Hobbes. Dela sobram apenas alguns conceitos, como o do contrato social e o de soberania, porém inteiramente reformulados. Se Hobbes se considerava o fundador da ciência política, o que Rousseau reivindica para si próprio é ter instituído os princípios do direito político, pois clamava pela necessidade de se criar o direito político: O direito político ainda está por nascer, e pode-se presumir que não nascerá nunca. Grotius, o mestre de todos os nossos sábios neste assunto, é apenas uma criança, e, tanto pior, uma criança de má fé. Quando ouço elevar Grotius às nuvens e cobrir Hobbes de execração, vejo quantos homens sensatos lêem ou entendem estes dois autores. A verdade é que os seus princípios são exatamente os mesmos: eles diferem apenas pelas expressões (...) (Rousseau, 2004: livro V). Ele considera tê-lo feito: Depois de haver estabelecido os verdadeiros princípios do direito político e ter-me esforçado por fundar o Estado em sua base, ainda restaria ampará-lo por suas relações externas (...) (Rousseau, 1996: livro V). Essa idéia de fundação é importante, pois remete à atribuição principal que Rousseau confere ao Estado: formar o cidadão. Se a ação formadora for bem sucedida, o homem natural será transformado em cidadão, o estado de natureza será substituído pelo estado civil, os direitos naturais serão preteridos pelos direitos do cidadão acrescidos dos deveres do súdito, a vontade particular será anulada pela vontade geral e, assim, a posse dará lugar à propriedade. Ao se tornar cidadão o homem natural perde a liberdade natural que possuía antes, mas ganha a liberdade civil que corresponde à parte que lhe cabe da liberdade do corpo coletivo do qual faz parte. Reivindicar direitos para Rousseau, adquire um significado, apenas se esses direitos não prejudicarem a constituição da sociedade. Reivindicar o direito fundamental da liberdade, por exemplo, não pode ser a reivindicação de uma volta ao estado de natureza. Uma vez que o cidadão ingressou no estado civil, ele só pode reivindicar a parte que

lhe cabe na associação, sua liberdade convencional e moral, de acordo com as cláusulas estabelecidas no contrato social. Trata-se de operar uma transformação radical no indivíduo que de um ser natural e independente deve tornar-se um ser relativo, considerando-se como parte de um todo e agente principal dessa transformação. Para Rousseau o indivíduo deve ser o legislador. A ação pedagógica que o legislador deverá operar no indivíduo consiste, em anular o homem natural e formar o civil; no campo jurídico a transformação consiste na eliminação da posse, a qual é substituída pela propriedade. O ato de pertencer à comunidade política é indissociável da vontade geral que é a própria expressão da soberania e a mesma não se situa acima dos cidadãos como na teoria de Hobbes, mas é constituída pela reunião de todos os cidadãos num só corpo. A fórmula do pacto imaginado por Rousseau é bem diferente da fórmula do pacto de Hobbes: Cada um de nós coloca em comum a sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisível do todo (Rousseau, 1996: livro VI). Trata-se de um pacto entre os cidadãos e o governo, no qual ambos se reafirmam constantemente por meio da vontade geral; a política assume aos olhos de Rousseau, uma tarefa ética. Para Rousseau os proprietários devem ser considerados, como depositários do bem público. Ao alienar-se inteiramente da comunidade, o indivíduo transfere tudo o que tem para a comunidade e recebe em troca o título de proprietário, mas ao soberano, em última instância, cabe o direito maior sobre a vida e os bens de cada associado. Essas distinções são importantes para demarcar a ação da força, do direito do mais forte e o do primeiro ocupante apenas para o estado de natureza. Essa noção de proprietário como um depositário do bem público influenciou de maneira decisiva os teóricos dos direitos humanos quando, os mesmos tratam de delimitar o conteúdo dos direitos econômicos e sociais. c) Kant Kant em alguns momentos reescreve à sua maneira as idéias de Rousseau. Retoma o conceito de vontade geral ao dizer que uma boa organização pode ser obtida para o Estado, se for concertada de tal modo que as

idéias egoístas dos homens batam de frente umas com as outras e se eliminem. Mas, ele não se contenta em retomar o conceito de vontade geral da maneira como Rousseau formulou, por isso, vai além e radicaliza a noção de vontade geral trazendo-a para o íntimo dos homens. A partir de uma construção racional, Kant elabora princípios morais, não somente são válidos para todos os seres humanos, mas que também podem ser racionalmente deduzidos e demonstrados por cada um de nós. O problema fundamental posto por ele, é a unificação entre a natureza e a moral, entre o mundo físico e o sentimento ético. Ao ser relacionado com a política, este problema aponta necessariamente para a formulação de um conceito de direitos humanos. Kant concorda com Rousseau no sentido de que o contrato só é válido se a autonomia de cada parte contratante for mantida, assim, a liberdade natural é abandonada em troca da liberdade civil. Desta forma a liberdade dos cidadãos adquire outra dimensão, pois a vontade livre se transforma em legisladora, e cada um unindo-se a todos os outros não estará obedecendo senão às leis que ele próprio estabeleceu. A dignidade contida nessa formulação só se realiza plenamente quando os princípios morais são levados em conta na elaboração das leis. Ao introduzir a razão no julgamento das leis morais, Kant propõe um método simples que permite a qualquer um de nós decidir se uma determinada atuação é desejável ou se é prejudicial à comunidade, pois se trata do imperativo categórico, o qual equivale a um supremo requisito de moralidade. Kant afirma que o imperativo categórico é único e as duas formulações que propõe, evidenciam o seu caráter universal. A primeira formulação do imperativo categórico se enuncia da seguinte maneira: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal (FMC, 1995:2º seção). Ao considerar que o homem é o único ser no mundo que se apresenta aos seus próprios olhos, como um fim em si mesmo, Desta forma propõe a segunda formulação: Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio (FMC,1995:2ºseção).

Essa nova definição do imperativo categórico constitui a base moral da sua doutrina política dos direitos humanos e representa, também, o princípio supremo de igualdade, do qual se extrai todo o sistema contemporâneo de direitos humanos. 2. Fundamentos Filosóficos dos Direitos Humanos a) Princípio de Dignidade Humana. Depois de se observar como se estabeleceu a base que hoje sustenta os direitos humanos, é preciso conhecer o que constitui o homem, qual é o seu valor perante uma sociedade, o que lhe é próprio por direito e o que lhe é próprio como dever. Poderemos dessa forma, tratar de um conceito importantíssimo que é próprio do homem, mas que pouco é lembrado: a dignidade humana. Não há nos povos antigos o conceito de pessoa tal como o conhecemos hoje. O homem para a filosofia grega era um animal político ou social, como afirma Aristóteles. O conceito de pessoa como categoria espiritual e subjetividade que possui valor em si mesmo, como ser de fins absolutos e que, em conseqüência, é possuidor de direitos subjetivos ou direitos fundamentais e possui dignidade, surge com o Cristianismo, com a chamada filosofia patrística, sendo depois desenvolvida pelos escolásticos. A proclamação do valor distinto da pessoa humana terá como conseqüência lógica a afirmação de direitos específicos de cada homem, o reconhecimento de que, na vida social ele não se confunde com a vida do Estado. Para Immanuel Kant, ao homem não se pode atribuir valor, mas deve ser considerado como um fim em si mesmo, em função da sua autonomia enquanto ser racional. Sendo assim tornam-se inaceitáveis os atos brutais deferidos contra os negros tornando-os escravos, os quais tiveram sua cultura e a própria vida dizimada. Conseqüentemente, esses atos de atrocidades proporcionaram diferenças sociais que até hoje permanecem vivas. Para Kant, a dignidade é o valor de que se reveste tudo aquilo que não tem preço, ou seja, não é passível de ser substituído por um equivalente. Dessa forma, a dignidade é uma qualidade inerente aos seres humanos enquanto entes

morais. À medida que exercem de forma autônoma a sua razão prática, os seres humanos constroem distintas personalidades humanas, cada uma delas absolutamente individuais e insubstituíveis. Conseqüentemente, a dignidade é inseparável da autonomia para o exercício da razão prática. É por esse motivo que apenas os seres humanos se revestem de dignidade. Para Kant, a razão prática possui primazia sobre a razão teórica, enquanto que a moralidade significa a libertação do homem e o constitui como ser livre. Para o filósofo o homem é um fim em si mesmo. Tendo valor absoluto, não pode ser usado como instrumento. Por isso tem dignidade e é pessoa. b) Cidadania Na Roma antiga, o conjunto de cidadãos que constituíam uma cidade era chamado de civitate. A cidade era a comunidade organizada politicamente. Era considerado cidadão aquele que estava integrado na vida política da cidade. Naquela época e durante muito tempo, podia-se entender cidadania como privilégio, pois os direitos de cidadania eram explicitamente restritos a determinadas classes e grupos, fato que ocorria também na Grécia onde mulheres, crianças, metecos e escravos, não eram considerados cidadãos. A definição de cidadania foi sofrendo alterações ao longo do tempo, pelas mudanças dos modelos econômicos, políticos e sociais ou como conquistas, resultantes das pressões exercidas pelos excluídos dos seus direitos. Embora as raízes da cidadania sejam gregas e romanas, o conceito atual de cidadão procede dos séculos XVII e XVIII, das Revoluções Francesa, Inglesa e Americana e do nascimento do capitalismo. Para a filósofa Adela Cortina, cidadania implica em reconhecer-se como um membro do conjunto e principalmente em ser reconhecido pelo Estado social como um membro constituinte do mesmo e esse é responsável pela garantia dos direitos civis (liberdades individuais), dos direitos políticos (participação política) e dos direitos sociais (trabalho, educação e moradia). Considera-se cidadão o indivíduo que pertence a uma comunidade política. É preciso entender que o fato de pertencer a uma cidade, ou estado, não diz respeito à posse, mas da possibilidade de fazer parte desse conjunto.

É importante lembrar que o papel de cidadão não pode ser negado pelos diferentes papéis que cada indivíduo desempenha em sua cidade, mesmo que em alguns casos, o limite. Um indivíduo, reconhecendo-se como um membro de seu país e sendo por este reconhecido com o mesmo status é automaticamente colocado à condição de cidadão, permitindo-lhe que acompanhe o andamento político e social da comunidade política da qual faz parte, para que possa desempenhar também seus deveres e compartilhar de seus direitos. Hoje há vários direitos que já estão estabelecidos pela legislação, que são para todos os indivíduos, sem restrições. Mas, apesar desses direitos estarem garantidos pela Constituição Federal, o que ocorre na prática, é um abandono desses direitos de cidadania contra a maioria da população excluída dos bens e serviços desfrutados por minorias economicamente bem sucedidas. O grande desafio é incorporar novos direitos aos já existentes, integrar cada vez mais indivíduos ao gozo dos direitos reconhecidos. c) Cidadania Social A necessidade do exercício por parte dos indivíduos, de sua cidadania civil e econômica, é que eles obtenham do Estado Nacional uma garantia eficiente da sua cidadania social. As pessoas precisam sentir que o governo está cuidando da sociedade da qual faz parte, ou seja, está cuidando dos membros que a constituem. Para que os direitos sociais sejam estendidos a todas as pessoas é preciso, em primeiro lugar, que todos já tenham o direito à vida assegurado. Todas as coisas que possuímos, como dinheiro, bens materiais, trabalho, poder e mesmo nossos direitos, podem perder o valor se a nossa vida estiver ameaçada. Além de garantir a vida é necessário que o Estado de bem-estar satisfaça as necessidades básicas de sobrevivência. Os bens de qualquer sociedade são sociais, dos quais participam os que nela vivem. Cada pessoa deve à sociedade muito, tanto de suas faculdades como do produto delas. Não tem sentido, portanto, que os bens sociais não estejam socialmente distribuídos, de modo que cada um de seus legítimos proprietários disponha ao menos de uma renda básica, de uma moradia digna, de trabalho, de assistência à saúde e de educação.

Se uma comunidade política deixar algum de seus membros desprotegido em qualquer um desses aspectos está demonstrando com fatos que na verdade não os considera seu cidadão. E as pessoas precisam do reconhecimento dos grupos sociais em que vivem, para que elas mesmas se reconheçam. Os direitos sociais, apesar de expressos em quase todas as legislações nacionais não estão totalmente assegurados a todos. Ainda corremos o risco de que sejam retirados das constituições. Exemplo: os direitos trabalhistas, estabilidade no emprego, décimo terceiro salário, licença maternidade, férias, entre outros, que podem, de acordo com os interesses econômicos, deixar de ser direitos de uma hora para outra. c) Cidadania Econômica O conceito de cidadania se estendeu a várias esferas, entre ela à econômica, para indicar que, em qualquer uma delas, os afetados pelas decisões nelas tomadas são seus próprios senhores e não súditos. Isso implica que devem participar de forma significativa da tomada de decisões que os afetam. Os direitos econômicos referem-se à participação do cidadão no governo da empresa, pois os habitantes do mundo econômico são cidadãos econômicos, segundo a ética aplicada ao mundo da economia e da empresa. Esse princípio ético exige que a constituição econômica e as normas empresariais sejam decididas dialogicamente, tendo por interlocutores todos os grupos de afetados. O objetivo desse diálogo é que seja racional e que todos os afetados cheguem a um consenso de quais seriam as normas que poderiam torna-se universalizáveis, satisfazendo não o interesse de alguns grupos, mas os interesses de todos. O exercício desse tipo de direito confere legitimidade à organização política da sociedade. Ele relaciona o compromisso de pessoas e grupos com o funcionamento e os destinos da vida coletiva. Ao participar da vida política, os indivíduos interferem em todos os outros direitos, os definem formalmente e legislam a esse respeito. Só existe a plena participação na vida pública, dentro dos limites da democracia representativa, se houver: igualdade de condições para a participação política, tanto dos eleitores quanto dos candidatos aos cargos

públicos, transparência nas decisões dos representantes, uso do cargo público para atender às necessidades realmente públicas e não ao privilégio de poucos. d) Cidadania Civil A cidadania civil se refere às liberdades individuais como o direito de ir e vir, de dispor do próprio corpo, o direito à vida, à liberdade de expressão, à propriedade, à igualdade perante a lei, a não ser julgado fora de um processo regular, a não ter o lar violado. Esse grupo de direitos tem por objetivo garantir que o relacionamento entre as pessoas seja baseado na liberdade de escolha dos rumos de sua própria vida, por exemplo, definir a profissão, o local de moradia, a religião, a escola dos filhos, as viagens e de ser respeitado. É preciso ressaltar que a liberdade de cada um não pode comprometer a liberdade do outro. Ter os direitos civis garantidos deveria significar que todos sejam tratados em igualdade de condições perante as leis, o Estado, situação social, independentemente de raça, condição econômica, religião, filiação, origem cultural, sexo, ou de opiniões e escolhas relativas à vida privada. e) Pluralidade Cultural Nós não nascemos inteiramente prontos para a vida. Pelo contrário, precisamos de cuidados, orientação e ensinamentos. Nos tornamos de fato humanos na medida em que convivemos e aprendemos com outras pessoas em uma dada cultura. Por meio desse aprendizado na vida social formamos nossa personalidade e elaboramos nossos planos de vida, nossos sentimentos e desejos. Nossa vida só pode acontecer verdadeiramente se participarmos de um mundo cultural, se partilharmos um conjunto de referências sociais. Todas as culturas criaram modos de viver coletivamente, de organizar sua vida política, de se relacionar com o meio ambiente, de trabalhar, distribuir e trocar as riquezas. Mais ainda, todos os povos desenvolveram linguagens, manifestações artísticas, religiosas, mitologias, valores morais, vestuários e moradias. A pluralidade cultural indica, antes de tudo, um acúmulo de experiências humanas que são patrimônio de todos, pois podem enriquecer a vida ao ensinar diferentes maneiras de existir socialmente e de criar o futuro, representar o

acúmulo das experiências e das conquistas humanas. No entanto, nem todas as diferenças são positivas. Quando se transformam em desigualdades precisam ser encaradas criticamente. Dentro das sociedades e entre povos há relações de desigualdade e dominação em que alguns grupos sociais acumulam bens materiais, saberes, prestígio e poder ao mesmo tempo em que impedem o amplo acesso de outros grupos a essas riquezas, como aconteceu com os índios e os negros. A desigualdade no acesso aos meios para organizar a própria vida compromete a plena existência da pluralidade cultural, isso porque se alguns grupos em uma sociedade ou algumas culturas se afirmam em detrimento de outras, é sinal de que uma parcela dessa diversidade está sendo reprimida, constrangida ou até mesmo excluída. Assim, a autêntica afirmação da pluralidade cultural é inseparável das lutas pela extensão dos direitos humanos a todos e pela construção de relações cidadãs e democráticas. Conclusão Por fim, é possível afirmar que o atual sistema dos direitos humanos é ao mesmo tempo hobbesiano, rousseauniano e kantiano. Ele é hobbesiano porque foi Hobbes quem aplicou o método científico para provar que não é possível estabelecer diferenças físicas fundamentais entre os homens, de modo que qualquer justificação da dominação de um grupo sobre outros, com base na superioridade das características inatas dos primeiros em relação aos segundos, não faz mais sentido. É rousseauniano porque as características propositivas e sugestivas dos atuais tratados de direitos humanos, devem muito à formação do legislador, ao se apresentar como um exemplo para a sociedade, da maneira como Rousseau destaca no Contrato Social. É kantiano porque mesmo que todos os Estados do mundo se unam em uma federação de repúblicas, como imagina Kant, devido à impossibilidade de estabelecer uma força supranacional que obrigue a todos que observem os tratados internacionais, a efetiva realização e vivência dos direitos humanos só pode se realizar se as regras morais forem internalizadas por cada ser humano, onde a pessoa é tratada como um fim e jamais como um meio.

Nesses autores encontram-se idéias iniciais sobre os direitos humanos, mas foi somente em 1948 que se inicia a Declaração Universal dos Direitos Humanos reconhecendo os valores supremos da igualdade, da liberdade e da fraternidade entre os homens. Assim, como ao longo da história, hoje é necessário respeitar às diferenças entre todas as pessoas. Todos estão imersos em seu egoísmo, correndo atrás de bens materiais que a sociedade impõe como necessários para alcançar a felicidade e acabam aceitando essas imposições. Enquanto não nos livrarmos do gosto produzido por terceiros não veremos a aplicação dos direitos humanos, ou seja, não teremos o verdadeiro progresso da sociedade visto também como progresso moral. Referências: CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. São Paulo. Loyola,2005. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo. Saraiva, 2003. COMPARATO, Bruno Konder. A justificação política dos direitos humanos. Artigo. HOBBES, T. Leviatã. São Paulo. Nova Cultura, 1997. KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa. Edições 70, 1995. ROUSSEAU, J. J. Do Contrato Social. Paris. Livre de Poche, 1996. Emílio. São Paulo. Martins Fontes, 2004.