O medalhão de Aleijadinho da igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto Leonardo Etero Como notoriamente reconhecida, a igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto é considerada a grande obra de Aleijadinho no Estado de Minas Gerais. Na época em que tal igreja foi construída, havia no Brasil as irmandades da ordem terceira de São Francisco, na segunda metade do século XVIII. Aleijadinho, antes de executar a fachada da igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, já havia desenhado a fachada da igreja de São Francisco de Assis de São João d El Rei, a pedido da irmandade daquela vila. Assim, a irmandade franciscana de Vila Rica (atual Ouro Preto), admirada com a fachada bem projetada de São João d El Rei, pediu ao mestre que refizesse o frontispício para a igreja de Ouro Preto. Sabe-se que, apesar do desenho da igreja de São João d El Rei ser anterior ao da igreja de Ouro Preto, aquela só veio a ser realizada em 1786, enquanto esta tem o frontispício com a nova portada concluído entre 1773-74, e o medalhão entre 1774-75. Antônio Francisco ao modificar o projeto da fachada da igreja de Ouro Preto, recua as janelas laterais do coro, e acrescenta sobre a portada um novo relevo com a imagem de Nossa Senhora da Conceição, abaixo do medalhão já existente no projeto inicial. Assim, a junção do relevo com Nossa Senhora da Conceição (que apresenta um formato de seta) com o medalhão da imagem de São Francisco logo acima, empurra e valoriza o arranque de frontão na fachada da igreja. 151
Leonardo Etero FIGURA 1 Porto. Desenho da fachada da igreja de São Francisco de Assis de São João d El Rei Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/aleijadinho [consult. 17 novemrbo de 2011]. 152
O medalhão de Aleijadinho da igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto FIGURA 2 Fachada da igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto Fonte do autor. 153
Leonardo Etero Este arranque de frontão também está presente no interior da igreja, no altar-mor, o que vem acentuar ainda mais uma leitura de continuidade em direção ao céu, iniciada com o gesto de São Francisco, no medalhão, com os braços abertos e a cabeça voltada para o alto. FIGURA 3 Medalhão de São Francisco de Assis no Monte Alverne. Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto Fonte do autor. 154
O medalhão de Aleijadinho da igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto Vale destacar, ainda, que os braços abertos de São Francisco se posicionam na mesma linha do entablamento do edifício, mantendo, assim, harmonia do medalhão com o entorno da fachada da igreja. E ainda, um fato curioso é que o gesto de São Francisco de Assis, com os braços abertos no desenho do projeto da igreja de São João D El Rei, foi utilizado na igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto. Logo, quando da realização do medalhão da igreja de São João d El Rei, o São Francisco de Assis nele esculpido passou a ter os dois braços estendidos para frente. Acredita-se que Aleijadinho tenha tido o medalhão da capela de Nossa Senhora do Carmo, no Rio de Janeiro, como uma das fontes de inspiração para a feitura do medalhão de São Francisco no Monte Alverne, em Ouro Preto. A viagem ao Rio de Janeiro teria ocorrido com o fim de o escultor se defender de um processo de paternidade movido por Narcisa Rodrigues da Conceição. Nesta oportunidade, teria observado o relevo na referida capela, em pedra de lioz, vinda de Portugal. FIGURA 4 Medalhão da capela de Nossa Senhora do Carmo, Rio de Janeiro Fonte do autor. 155
Leonardo Etero Outra possível fonte de inspiração para a execução do medalhão de Ouro Preto pode ter vindo do livro I Fioretti di San Francesco (ou As Florinhas de São Francisco de Assis ), que descreve revelações de São Francisco de Assis, bem como, narrativas sobre o movimento franciscano. É provável que Aleijadinho tenha tido contato com este livro, que na edição de 1510, publicada em Milão, possui um desenho que reproduz o milagre do Monte Alverne; desenho este que, segundo historiado, se assemelha com o revelo da igreja de Ouro Preto. Por fim, já havendo constatações de que Aleijadinho teve por influência a enciclopédia de Cesare Ripa para a realização de algumas de suas esculturas, é possível especular que o relevo em questão também tenha inspiração em desenhos daquela enciclopédia, como, por exemplo, a estampa Congiuntione delle cose humane com le divine, que apresenta um gesto similar ao do relevo, conforme a figura n.º 5 (desenho realizado pelo autor, reproduzindo a citada estampa). FIGURA 5 Desenho realizado pelo autor a partir da enciclopédia de Cesare Ripa Fonte do autor. 156
O medalhão de Aleijadinho da igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto A leitura da forma Estar diante do medalhão de Ouro Preto é estar diante de um relevo que apresenta, a partir do primeiro plano, alto, médio e baixo-relevo, com características semelhantes aos relevos picturais (aqueles onde a perspetiva é mostrada através da distribuição gradual das massas para sugerir a profundidade), porém, possuindo certas peculiaridades, como será detalhado neste tópico. Segundo Raquel Quinet Pifano, a perspetiva vem transformar efetivamente o espaço psicofisiológico em espaço matemático. Assim o campo de visão esferoidal decorrente do fato do ser humano enxergar com dois olhos sempre em movimento é reparado pela ideia do olho único e imóvel. Já no espaço da perceção imediata, diz a autora que cada elemento considerando o espaço vazio como elemento possui conteúdo próprio, um valor específico, ou seja, possui existência autônoma em relação ao outro. Assim, na perspetiva a atenção se volta para a ação, e toda ação é um colocar-se em relação ao outro ou à outra coisa qualquer, a ação não tem caráter episódico e sim universal 1. Logo, partindo desses conceitos, tudo indica que, nos relevos de Aleijadinho, o escultor trabalha, primordialmente, com a perceção imediata. Todavia, a busca de perspetivação do espaço nos relevos de Aleijadinho estão em alguns elementos, como na auréola de São Francisco e no templo de Assis no relevo da igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, já que estes dois elementos, por terem formas geométricas, parecem mais evidentes em apontar a perspetiva quando comparados às demais figuras representadas no referido relevo, que trabalham por escorço seus volumes. Contudo, Aleijadinho se preocupa mais com a clareza narrativa, com o seu caráter episódico (oriundo da perceção imediata), do que com caráter universal (proposto pela perspetiva), reforçando um conteúdo antes predicatório que retórico 2. 1 PIFANO, 1997: 353. 2 PIFANO, 1997: 353. 157
Leonardo Etero A inserção de um chão a partir da figura em primeiro plano é um instrumento que ajuda a resolver o problema da perspetiva, no entanto, Aleijadinho parece não ter se preocupado em construir este chão, no medalhão de Ouro Preto, com São Francisco, dado que reforça o uso da perceção imediata. Já o relevo da capela de N. S. do Carmo, no Rio de Janeiro, anteriormente mencionado, se preocupa em marcar um chão, indicado por meio de degraus em primeiro plano, o que assegura o solo firme em que se ajoelha São Simão Stock, além da representação de uma pequena barra próxima aos pés e um frasco no primeiro degrau, o que acentua o jogo de perspetiva. Contudo, apesar da busca pela perspetiva, a tendência à grande profundidade, neste relevo, parece reduzida com a forte presença das figuras, onde se tem basicamente três planos marcados, quais sejam, São Simão Stock em primeiro plano, Maria e o menino Jesus em segundo plano e os querubins ao fundo. No que tange aos relevos Portas do Paraíso de Ghiberti e Púlpito da Ressurreição de Donattelo, ao contrário do relevo da capela de N. S. do Carmo, a profundidade obtida através da perspetiva é intensa, representada por sutis passagens entre as zonas sobrepostas. Todavia, esta intensa profundidade não é a regra, muitos relevos, mesmo dentro de uma retórica barroca clássica no continente europeu, não trazem sempre extrema profundidade, isto porque no relevo existe um jogo complicado da relação entre o volume real dos planos com o desenho das linhas; daí a tendência, em muitos relevos, de trazer ênfase às figuras que se apresentam em planos mais próximos da superfície e evitar uma profundidade acentuada. Podemos notar, ademais, que o relevo em estudo apresenta São Francisco de Assis em primeiro plano com a cabeça um pouco maior em relação ao corpo, para corrigir a visão à distância dos observadores, que tende a diminuir o tamanho dos elementos que estão mais altos, quando vistos de baixo. Já o corpo e a cabeça de Cristo, que têm quase o mesmo tamanho da cabeça dos querubins ao seu lado, se apresentam bem diminuídos em relação ao Santo, 158
O medalhão de Aleijadinho da igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto para trazer a sensação de distância, sugerindo que Cristo estaria bem mais elevado, no céu. Logo, Aleijadinho explora os recursos da escala de grandeza. Também, no relevo com São Francisco no Monte Alverne, não há convergência das linhas para um mesmo ponto de fuga, peculiar à perspetiva. O que ocorre, no caso em estudo, é a ideia de profundidade, que ganha realce com a relação de sobreposição das massas, principalmente pela presença do templo, da vegetação, das pedras, da auréola sobre o Santo e dos raios de luz que resplandecem do Cristo. Por todo o exposto, percebe-se que Aleijadinho volta mais sua atenção para a distribuição das massas e da sobreposição dos corpos, preocupando-se com a eloquência da narrativa, do que com o rigor das leis da perspetiva. Vale ressaltar, outrossim, o brilhantismo desta obra, que é enriquecida de detalhes, apesar da dificuldade enfrentada pelo artista para relacionar todos os planos do relevo de Ouro Preto, que foi realizado com a junção de onze blocos de pedra sabão. Logo, a distribuição das massas por Aleijadinho permeia a questão do Equilíbrio Geral segundo o Dicionário de Escultura de Machado de Castro: O Equilíbrio Geral porém, é mais difícil de perceber-se, explica-se; porque não pertence a uma só peça mas sim ao total de qualquer composição. v.g. Faz-se um Baixo, Meio ou Alto Relevo: se um dos seus lados enche o Quadro debaixo acima é preciso que o lado oposto o contrabalance com arte sem afetar a Arte, introduzindo-lhe alguns objetos diversos; mas sempre análogos ao assunto expressado 3. Desta forma, partindo da definição de Machado de Castro, pode-se dizer que no relevo de São Francisco no Monte Alverne encontra-se presente este contrabalanceamento citado pelo autor, isto porque, se do lado superior esquerdo da obra aparece uma concentração de luzes e sombras geradas pelos diversos anjos, nuvens e o Cristo, todos muito próximos e emaranhados; do lado direito apare- 3 CASTRO, 1937: 42. 159
Leonardo Etero ce apenas o templo, em baixo relevo, trazendo uma sensação maior de vazio (se comparado com os inúmeros elementos do lado oposto), provocando, assim, harmonia no conjunto da obra, além de destacar a perceção de profundidade, que certamente não ficaria tão nítida se todo o relevo estivesse coberto com aquela concentração de luzes e sombras existentes no plano superior esquerdo. Sendo assim, podemos afirmar, sem medo de errar, que Aleijadinho, em seu relevo, contrabalanceia os elementos com arte sem afetar a Arte. Uma conceção do espaço O conhecimento artístico no período barroco, segundo Giulio Carlo Argan, (que também pode ser aplicado ao período colonial) não está mais ligado à natureza, mas sim, forma um sistema único de comunicação, que é o da persuasão e a influência sobre o pensamento moral. 4 Ademais, acrescenta que o conceito de forma como representação da realidade entra em crise: a técnica pode até continuar sendo um processo de imitação, mas a imitação da ideia, e não mais da natureza 5. Esta imitação pura e simples da natureza é abandonada esporadicamente por Aleijadinho para se fazer compreensível entre os devotos por meio da iconografia, comunicando-se através dos elementos que encantam os sentidos, como, por exemplo, no modo como Jesus se apresenta como um anjo de seis asas, inusitadamente com a metade do corpo (da cintura para cima) e com folhas envolvendo a cintura, rodeado de nuvens e feixes de luz; como também nos lírios, que representa a inocência e a paz. 4 ARGAN, 2004: 22. 5 ARGAN, 2004: 22. 160
O medalhão de Aleijadinho da igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto A obra de Aleijadinho está repleta de símbolos que buscam, acima de tudo, criar um diálogo com os devotos por meio das imagens, principalmente se considerarmos o alto índice de analfabetismo no século XVIII. O que transparece é que o escultor tinha a finalidade de passar mensagens religiosas até mesmo nos pequenos detalhes, como, por exemplo, a árvore cortada no lado inferior esquerdo do medalhão (fazendo alusão a morte), mas que, no entanto, possui ramos brotando de seu tronco, deixando entrever a constante renovação da vida. Assim, em suas obras, Aleijadinho explora o espaço de forma minuciosa, a fim de expressar o que lhe vem à imaginação criadora. Parece que ao invés de submeter os elementos simbólicos ao espaço a priori, subverte esta ordem, construindo o espaço conforme os elementos que esculpe, os quais são prioritários. John Bury, comentando sobre as esculturas de relevo pleno dos doze profetas, suscitou que Aleijadinho não submeteu as esculturas ao Adro, como era a tradição à época (quando as esculturas eram encomendadas para ocupar certo local já estabelecido), mas sim, criou o Adro para albergar os profetas 6. Contudo, esta forma de construção do espaço também parece ocorrer em outras obras do escultor, como no medalhão de São Francisco, ou seja, os elementos esculpidos no relevo tomam posição ativa na obra, adotando o espaço em que o medalhão será disposto (a pedra sabão) posição passiva - assim como o Adro que tinha a função primordial de ressaltar os profetas. Logo, apesar de os relevos de Aleijadinho possuírem um universo finito para se concretizar (como o bloco de pedra ou o bloco de madeira), tal circunstância não aparenta ser limitadora do resultado da obra, já que quando concretizada toma força tão monumental que cria no observador a sensação de ocupar, tal obra, o tamanho exato que deve/merece ter. Trata-se da grande façanha do escultor, que faz do cenário coadjuvante de suas obras. 6 BURY, 1991: 29. 161
Leonardo Etero Bibliografia ARGAN, Giulio Carlo, 2004 Imagem e Persuasão. Ed. Cia das Letras. BASTOS, Francisco de Paula Vasconcellos, 2006 A igreja de São Francisco de Assis de Vila Rica. Belo Horizonte: Edição do Autor. BURY, John, 1991 Arquitetura e arte no Brasil Colonial. São Paulo: Nobel. CASTRO, Machado de, 1937 Dicionário de escultura: inéditos de história da arte/ Joaquim Machado de Castro. Lisboa: Livr. Coelho. Disponível na internet em: http:// purl.pt/778 [consult. 16 novembro de 2011]. OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de; SANTOS FILHO, Olinto Rodrigues dos e SANTOS, Antonio Fernando Batista dos, 2002 O Aleijadinho e sua oficina. Catálogo das esculturas devocionais. São Paulo: Capivara. PIFANO, Raquel Quinet, 1997 O Espaço na Obra de Aleijadinho: Simbólico ou Perspectivado?, in CESÁRIO, Wellington; MANSUR Mo nica; PAULA, Marcus Vinícius de (orgs.) Tradição e Inovação. Anais do 5.º Encontro do Mestrado em História da Arte. Rio de Janeiro: UFRJ, EBA. p. 351-356. 162