Jürgen Habermas e a virtualização da publicidade



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Transcrição:

DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO JÜRGEN HABERMAS 65 Jürgen Habermas e a virtualização da publicidade ADRIÁN GURZA LAVALLE Resumo A concepção mais influente sobre o espaço público no debate teórico contemporâneo é tributária da obra de Jürgen Habermas, cujo trabalho seminal sobre as transformações estruturais da publicidade burguesa, Öffentlichkeit, atentou para os potenciais de emancipação e racionalização do poder inscritos na dinâmica moderna desse espaço. No entanto, as teses desenvolvidas nesse trabalho costumam receber pouca atenção, porque obliteradas pelos desdobramentos do programa de pesquisa do filósofo alemão e, mais especificamente, pela própria redefinição da publicidade como fluxo comunicativo. Isto, é claro, no marco da sua teoria da ação comunicativa. As páginas que se seguem oferecem uma análise reconstrutiva da evolução dessa categoria no programa de pesquisa habermasiano. Sustenta-se que essa evolução apresenta face dupla: se os progressivos ganhos e abstração permitiram notáveis conquistas no processo de edificação da macroteoria mais influente do último quartel do século XX, tais conquistas impuseram o ônus de despir a categoria de seus componentes sociologicamente mais ricos, aparando-lhe suas implicações analíticas mais críticas. Palavras-chave: espaço público; esfera pública; sociedade civil; publicidade; Jürgen Habermas. Abstract The most influent conception about the public sphere in the contemporary theoretical debate is related to the work of Jürgen Habermas, whose seminal work about the structural transformation of the bourgeois publicness Öffentlichkeit has called attention to the emancipation and rationalization of power in this sphere s modern dynamics. Nevertheless,

66 MARGEM N o 16 DEZEMBRO DE 2002 the theses developed in this work have a tendency to receive less attention, once obliterated by the following unfolding of the German philosopher research program and, more specifically, by the own definition of publicity as a communicative flux. That is, of course, inside the field of his theory of communicative action. The following pages offer a reconstructive analysis of this category, present in the Habermas research program. It is defended that the evolution of this category is double-faced: even though the progressive gains and abstraction has led to notable conquests in the process of the most influent in macro-theory in the last quarter of the 20 th Century. Such conquests have imposed the duty of separating this category from its sociologically richer components, trimming its most critical analytical implications. Key-words: public sphere; civil society; publicity; Jürgen Habermas. A trajetória intelectual de Jürgen Habermas começou há mais de quarenta anos, se considerado como ponto inicial o ano da edição de seu primeiro livro: Leituras (1958). Ainda nessa década publicou Estudantes e política (1959); todavia, a primeira obra do pensador alemão a se tornar referência canônica no debate acadêmico, no último quartel do século XX, viria à luz pouco tempo depois. Com efeito, sua reconstrução conceptual e seu diagnóstico sobre as transformações estruturais da publicidade burguesa (1962) introduziram-no nos circuitos internacionais como expressão renovada da originalidade analítica da Escola de Frankfurt mesmo a despeito das críticas de Horkheimer. No percurso de sua intensa carreira intelectual, com saldo próximo a quarenta livros alguns dos quais indispensáveis para uma reconstituição da história contemporânea da teoria e ciências sociais, as reflexões de Habermas foram se desdobrando em diversos flancos até assumir o perfil definitivo de um programa de pesquisa voltado para equacionar no plano da teoria geral os grandes desafios da modernidade. Independentemente do mérito ou dos alcances e limites desse programa de pesquisa, é fato isento de controvérsia que esse autor conquistou a posição de interlocutor obrigatório em distintos campos da análise social: ora por suas propostas no terreno da epistemologia ou da ética, ora por seus aportes no âmbito das teorias da democracia ou do direito, ora pelas implicações do seu pensamento para a compreensão da ação social ou das tarefas da filosofia e da teoria, mas normalmente graças às potencialidades heurísticas de sua pragmática universal de índole comunicativa. As páginas que se seguem elaboram uma interpretação reconstrutiva da trajetória intelectual de Habermas quanto a uma peça-chave do seu programa de pesquisa, a saber, a categoria publicidade. O arco de tal itinerário não obedece a uma lógica linear e sequer a uma evolução necessária, entretanto, parece claro que sua reconstrução dentro dos limites destas páginas seria improcedente sem lançar mão de certa estilização analítica. Pretende-se elucidar não apenas o conteúdo dessa categoria não raro sujeita a mal-

DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO JÜRGEN HABERMAS 67 entendidos, mas também a dinâmica de sua transformação; transformação responsável por elevar progressivamente a publicidade a patamares de maior universalidade e abstração, em detrimento de sua riqueza sociológica e de sua densidade histórica iniciais. Cumpre explicitar desde já que o esforço de reconstrução a ser desenvolvido não visa ao complexo programa de pesquisa do pensador alemão, e sequer uma avaliação crítica de conjunto assuntos já tratados alhures e com propósitos diferentes dos deste artigo. 1 Publicidade, opinião pública e esfera pública A publicidade Öffentlichkeit é a categoria central que levou Habermas, em 1962, a sua formulação original sobre os efeitos de racionalização do poder presentes na ação pública da sociedade civil burguesa, 2 entretanto, tal categoria sói aparecer traduzida nas línguas neolatinas como vida pública, opinião pública, espaço público, público e esfera pública 1. A crítica à concepção habermasiana da publicidade moderna, assim como uma análise pormenorizada de seus argumentos centrais, foi exposta em GURZA LAVALLE, Adrián. (1998), Estado, sociedad y medios Reivindicación de lo público, México, Plaza y Valdés Editores/UIA, pp. 109-156; por sua vez, a reconstrução analítica do pensamento de Habermas a partir da noção programa de pesquisa diferente dos esforços de teorização desenvolvidos como sistema, foi elaborada em GURZA LAVALLE, Adrián, (1997), A humildade do universal: Habermas no espelho de Rawls, Lua Nova, São Paulo, Cedec, n. 42, pp. 145-182. No último texto explora-se a importância do trabalho sobre as transformações da publicidade burguesa na trajetória intelectual do autor. O argumento aí exposto propõe que o núcleo dos problemas fundamentais e das tensões presentes no empenho de universalização teórica de Habermas aparece, em sua forma mais pura, ainda estilizada em moldes histórico-sociológicos, na caracterização do modelo clássico da publicidade burguesa e no diagnóstico sobre o desacoplamento das condições estruturais que a fizeram possível. As diferentes linhas do programa de pesquisa do filósofo alemão ensejam reformulações conceituais cada vez mais abstratas e universais do legado positivo e dos impasses herdados por essa pesquisa seminal. O esclarecimento é pertinente, pois a posição aqui assumida pode ser controversa se considerado que a literatura tende a organizar a interpretação da vasta obra de Habermas focando a atenção na teoria da ação comunicativa. De fato, o próprio autor parece preferir esse recorte, cuja hierarquização outorga menor relevância a seus primeiros doze livros. Cf. HABERMAS, Jürgen, (1997), Uma conversa sobre questões da teoria política, entrevista concedida a Mikael Carlehedeme e René Gabriels. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, n. 47, pp. 85-102; Idem, (1993), Moralidad, sociedad y ética, entrevista concedida a Torven Hviid Nielsen. (1990). In: HERRERA, María (coord.). Jürgen Habermas Moralidad, ética y política: propuestas y críticas, México, Alianza Editorial, pp. 79-113. Em reflexão minuciosa acerca da caracterização do espaço público em Habermas, Nora Rabotnikof também salienta a primazia do trabalho de 1962: Debate crítico, racionalidade e correção moral aparecem geneticamente enlaçados nessa auto-imagem da esfera pública burguesa [...] Este parece ser o núcleo normativo duro mantido quase intato desde a gênese histórico-social da idéia kantiana de publicidade, a qual Habermas rastreia nesse texto pioneiro, até as versões mais modernas da soberania popular como fluxo argumentativo sem sujeito. RABOTNIKOF, Nora. (1995), El espacio público: caracterizaciones y espectativas. Tese de doutorado, Facultad de Filosofía y Historia, Unam, México, p. 169; cf., também, pp. 162-3. 2. HABERMAS, Jürgen. (1962), Historia y crítica de la opinión pública. La transformación estructural de la vida pública, México,Gustavo Gili, pp. 94-123.

68 MARGEM N o 16 DEZEMBRO DE 2002 sendo a última opção de uso corrente em português e, aliás, também em inglês. 3 Os motivos para não verter literalmente Öffentlichkeit como publicidade são claros, pois, ao longo do século XIX, e sobretudo do XX, o vocábulo perdeu qualquer referência a seu sentido original, submetido a uma progressiva ressignificação dentro do campo semântico da mídia e da propaganda comercial. 4 Ainda assim, as soluções escolhidas prestam-se a possíveis enganos. No contexto do trabalho de 1962, a publicidade burguesa conota a um tempo o intrincado processo histórico de gestação do social e as suas conseqüências políticas, quer dizer, o movimento simultâneo da construção da autonomia material e moral da burguesia, e da projeção dessa autonomia para o convívio social publicidade literária e para a esfera política publicidade política. 5 De um lado, a publicidade remete em termos gerais ao estatuto daquilo que é público, à qualidade ou estado das coisas públicas; do outro, trata-se de reconstruir a emergência e as feições de uma publicidade própria da 3. Cumpre lembrar que a obra de 1962, na sua versão em português, foi intitulada: Mudança estrutural da esfera pública: Investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. 4. Cf. DOMÈNECH, Antoni. (1981) Prólogo a la edición castellana: el diagnóstico de Jürgen Habermas, veinte años después. In: HABERMAS, Jürgen. Historia y crítica..., op. cit., p. 22. O valioso texto de Domènech consta da edição de 1981, da qual é tradutor, e foi suprimido da edição de 1994 para incluir o prefácio de Habermas, escrito para a nova edição alemã de 1990. 5. HABERMAS, Jürgen. (1994), Historia y crítica..., op. cit., pp. 65-68 e 88-93. sociedade civil burguesa, edificada sobre uma robusta esfera privada, e distinta de outras formas de publicidade como a plebéia ou a feudal chamada por Habermas de representativa. 6 Na medida em que os traços históricos específicos da publicidade burguesa se inscrevem no multifacetado processo de autonomização do social, eles exprimem uma constelação de fatores fortemente entrelaçados, porém irredutíveis entre si expansão do mercado, emergência da família nuclear, urbanização, proliferação do hábito social da leitura e auge da imprensa, entre outros. Nessa constelação, aquilo que normalmente é designado como esfera pública corresponde, em Habermas, às instituições da publicidade consolidadas ao longo da segunda metade do século XVII e de todo o XVIII; com maior precisão, trata-se de dois tipos de cristalização institucional: primeiro, a afirmação confiante da autonomia burguesa em práticas e espaços de convívio dialógico clubes de leitura, salões, casas de café e de chá, reu- 6. Cabe lembrar que em alemão bürgerliche Gesellschaft significa a um tempo sociedade civil e burguesa; termo traduzido do inglês civil society quando da difusão das idéias da ilustração escocesa e da economia política inglesa, particularmente dos trabalhos de Adam Ferguson e Adam Smith; cf. BOBBIO, Norberto. (1967), O conceito de sociedade civil, Rio de Jaeiro, Graal, pp. 28-29. Para a publicidade representativa, cf. HABERMAS, Jürgen. (1994) História e crítica..., op. cit., pp. 44-51; para a publicidade plebéia, cf. os esclarecimentos do autor no que diz respeito à desconsideração desse tipo de publicidade no trabalho de 1962: Prefacio a la nueva edición alemana de 1990, in ibid., pp. 5-6.

DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO JÜRGEN HABERMAS 69 niões de conversação, lojas maçônicas e sociedades diversas de índole cultural ; segundo, a culminância dessa autonomia perante o poder, dessa vez materializada em um conjunto de instituições dedicadas a veicular publicamente as opiniões representativas dos interesses desse segmento social de livres proprietários jornais, ligas, clubes e associações políticas extraparlamentares. A rigor, não existe em Habermas o termo esfera pública, utilizado na tradução do conceito publicidade, segundo assinalado acima; no entanto, o autor se utiliza da idéia esfera da publicidade para referir um espaço consolidado e garantido por instituições privadas isto é, constituídas pela sociedade civil burguesa, cuja existência abre o caminho da notoriedade pública à formação de consensos emergentes no seio da sociedade. 7 Por isso, a publicidade burguesa como fenômeno histórico abrangente fornece a explicação das instituições da publicidade esfera pública enquanto suporte que contribuiu a cimentar uma identidade de classe e a promover e defender publicamente seus interesses. 7. V. g., ibid., pp. 46 e 118. Esse espaço de notoriedade pública, garantido por um suporte institucional civil e desvencilhado do poder, é o conteúdo de fundo do termo esfera pública, tal como utilizado hoje pela literatura; v. g.: O conceito esfera pública tem sido um dos pontos de atenção mais importantes em torno do problema da sociedade civil democrática. Como é bem sabido, ele se refere a espaços de comunicação societal abertos, autônomos e politicamente relevantes. ARATO, Andrew e COHEN, Jean. (1999), Esfera pública y sociedad civil, In: Metapolítica, n. 9, Cepcom, jan/mar, p. 37. A opinião pública arremata o processo, visto que não apenas é a expressão por excelência de certos consensos emergidos do seio da sociedade civil sedimentados e divulgados por fora da órbita de controle do poder através das instituições da publicidade política ; antes, quando olhada não da ótica da sociedade, senão dos fundamentos do poder, a opinião pública representa a consagração das pretensões de legitimidade dos interesses das pessoas privadas enquanto imperativo funcional da própria democracia o mandato da publicidade. Embora publicidade e esfera pública admitam certa sinonímia, particularmente se considerada a importância conferida, no trabalho de 1962, à dimensão institucional da publicidade, seu uso indistinto pode gerar mal-entendidos, tanto pela diferente abrangência dos conceitos, referida acima, quanto pela impossibilidade de aplicar o segundo em outros contextos que não os das sociedades modernas. Em sua formulação mais sucinta, os traços distintivos da publicidade burguesa implicam o complexo processo histórico de autonomização do social e, especificamente, a construção de uma esfera institucional relevante cuja dinâmica incide nas decisões políticas, mas independe dos ditames do poder, assim como o deslocamento da produção do público para o terreno da sociedade: A publicidade propriamente dita tem de ser contabilizada nos ativos do âm-

70 MARGEM N o 16 DEZEMBRO DE 2002 bito privado, visto se tratar de uma publicidade de pessoas privadas. 8 Cabe antecipar que os desenvolvimentos do programa de pesquisa de Habermas levaram-no a redefinir a publicidade em termos de fluxos comunicativos espontâneos, abandonando, pela abstração do conceito, qualquer pressuposto empírico notadamente a existência de um suporte institucional consolidado. Entrementes, quanto às ressalvas com relação à aplicação anacrônica da idéia de esfera pública, os traços da publicidade burguesa recém-assinalados são especificamente modernos, e, de fato, induziria a sérios equívocos de interpretação falar em esfera pública representativa ou esfera pública plebéia, pois inexiste nesses casos uma institucionalidade privada, abonada social e politicamente como legítima em sua função de veicular e intermediar interesses oriundos da sociedade diante das instâncias do poder político. Não se trata de ressalva meramente hipotética; na tradução ao português intitulada Mudança estrutural da esfera pública encontram-se, por exemplo, expressões como as seguintes: esfera pública plebéia, esfera pública helênica, esfera pública de representação cortesãfeudal ou, ainda, esfera pública em sua configuração representativa 9. Na 8. HABERMAS, Jürgen. (1994), Historia y crítica, op. cit., p. 68. 9. Tais expressões aparecem, respectivamente, nas páginas 10, 16, 21 e 25. Quanto à publicidade representativa, Habermas foi bastante explícito: A publicidade representativa não se constitui como verdade, no plano histórico de longa duração, a diferença fundamental no que diz respeito à publicidade representativa remete à progressiva desagregação das sociedades baseadas numa lógica comunitária e na corporificação representativa do poder, e ao correlativo surgimento da sociedade de indivíduos, da subjetividade moderna do íntimo, da privacidade e do interesse particular com seu correspondente mundo do social. 10 Aqui, utiliza-se o termo original publicidade, preservando-se a um tempo seu sentido histórico mais abrangente e sua conotação de espaço de interação dialógica atrelado a uma base institucional autônoma. Como será visto, à medida um âmbito social, como uma esfera da publicidade; é mais algo assim como uma categoria de status se permitido utilizar o termo nesse contexto. Historia y crítica, op. cit., p. 46. 10. Aliás, é bem conhecido quanta atenção dedicou Arendt para esquadrinhar as conseqüências da constituição do social como oposto ao político, porém, também ao privado: [...] a aparição da esfera social, que a rigor não é pública nem privada, é fenômeno relativamente novo, cuja origem coincidiu com a chegada da Idade Moderna e cuja forma política foi encontrada na nação- Estado. ARENDT, Hannah. (1993), La condicion humana. Barcelona, Paidós, p. 41. Para as diferenças entre as sociedades comunitárias e a sociedade moderna, no que tange à configuração do espaço público, cf. CÓRDOVA, Arnaldo. (1984), Sociedad y Estado en el mundo moderno, México, Enlace/Grijalbo, pp. 21-68; MACHADO DE ACEDO, Clemy. (1996), Individuo, sociedad, Estado: tensiones y oposiciones entre el interés privado y el interés público. In: GARCÍA- PELAYO, Graciela Soriano de e NJAIM, Humberto. (eds.). Lo público y lo privado Redefinición de los ámbitos del Estado y de la sociedad. Caracas, Fundación Manuel García-Pelayo, pp. 63-94.

DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO JÜRGEN HABERMAS 71 que a análise se afasta das considerações genéticas do trabalho de 1962, as distinções assinaladas assumem novos contornos, cada vez mais precisos e abstratos. Publicidade, modernidade e aposta programática A partir das balizas gerais recémesboçadas, é possível avançar mais um passo na reconstituição do modelo habermasiano da publicidade moderna; para tanto, e embora já mencionadas, convém fixar suas principais características. No pano de fundo de uma temporalidade maior, a publicidade se enquadra no processo histórico da emergência do social como âmbito simultaneamente privado e público, delimitado por fronteiras porosas em dois flancos: a nova esfera da privacidade e uma esfera política cada vez mais sensível à crítica e às solicitações provindas da sociedade por intermédio da opinião pública. A complexa causalidade histórica subjacente à aparição do social segue a trilha do paulatino fortalecimento da sociedade de mercado, do crescimento das grandes metrópoles, da afirmação material e simbólica da família burguesa, do surgimento do interesse privado como pretensão racional e legítima, sem esquecer o amadurecimento da subjetividade moderna afiançada na moral em sua relação com o mundo. 11 Quando focada com 11. HABERMAS, Jürgen. (1994), Historia y crítica..., op. cit., pp. 53-64 e 80-88. Note-se que o conjunto de tendências enunciadas dizem respeito à menor distância, a publicidade moderna obedece à configuração de uma esfera institucional de interação no interior das camadas de livres proprietários e entre elas e o poder. Nessa esfera institucional, primeiro consolidou-se uma visão de mundo comum no terreno do convívio social e, depois, multiplicaram-se reclamos e iniciativas voltados para a auto-regulação da sociedade civil burguesa, da sua atividade econômica e interesses os quais, a despeito de serem privados, atingiram extraordinária relevância para o conjunto da sociedade enquanto motores da reprodução da vida social sob a lógica autônoma do mercado. Assim, a relação da publicidade com o mundo privado admite vínculo duplo, aliás, nem sempre corretamente percebido. De um lado, a reprodução material da sociedade tornou-se assunto privado, exprimindo a conquista da autonomia do econômico diante emergência do social, pelo que outras grandes transformações em curso não aparecem no elenco notadamente, a centralização do poder político, a emergência de instituições políticas modernas e a consolidação do Estado. O surgimento do social também gerou transformações no âmbito privado-doméstico, agora simbolizado pela lógica da intimidade. Para as mudanças que redefiniram a geografia do público e do privado no plano da intimidade e da moralidade, analisadas a partir de um de seus componentes mais clausurados o corpo, cf. o trabalho de AMODIO, Emanuele. (1996), Vicios privados y públicas virtudes. Itinerarios del eros ilustrado en los campos de lo público y de lo privado, In: GARCÍA- PELAYO, Graciela Soriano de e NJAIM, Humbero (eds.). Lo público e lo privado..., op. cit. pp. 169-201.

72 MARGEM N o 16 DEZEMBRO DE 2002 do político e inaugurando o problema moderno da inegração social a questão social ; por sua vez, a esfera política especializou-se funcionalmente como instância incumbida de paliar esse problema, que, assumindo estatuto público, não mais encontrava mecanismos de resolução nas antigas estruturas comunitárias das sociedades estamentais. De outro lado, esse aspecto amplamente salientado na literatura ainda é parcial, pois não apenas o pauperismo e a pobreza de amplas camadas da população adquiriram feições de coisa privada com relevância pública; antes, maior atenção foi despendida em outro âmbito do privado, cuja extensão atingiu proporções sociais inéditas: o mercado como cristalização da atividade econômica dos particulares, que, entretanto, pleitearam o caráter público de seus interesses, exigindo reconhecimento, regulação e salvaguardas das instituições políticas. Nas palavras de Habermas: (...) [a privatização do processo de reprodução] afeta apenas um aspecto do curso empreendido [...], mas não sua nova relevância pública. A atividade econômica privada tem de se orientar conforme um tráfego mercantil submetido a diretrizes e supervisões de caráter público; as condições econômicas nas quais ele se realiza agora são localizadas além dos confins do lar: pela primeira vez são de interesse geral. Essa esfera privada da sociedade esfera que adquiriu relevância pública tem caracterizado, na opinião de Hannah Arendt, a moderna relação da publicidade com a esfera privada, muito diferente da antiga relação, gerando o social. 12 Por isso, a publicidade moderna exprime e consolida, mediante a intervenção da esfera política, a progressiva privatização da sociedade: A publicidade politicamente ativa mantém o status normativo de um órgão que se utiliza da automediação da sociedade burguesa com um poder estatal coincidente com suas necessidades. O pressuposto social dessa publicidade burguesa desenvolvida é um mercado progressivamente liberalizado, que faz da troca na esfera da reprodução social um assunto entre pessoas privadas, completando com isso a privatização da sociedade burguesa. 13 O caráter moderno da publicidade não se esgota nesses traços, isto é, nos seus laços com o processo simultâneo de afirmação das camadas de livres proprietários e do alargamento do âmbito privado; tampouco decorre apenas da localização da publicidade no período da ilustração, da crise do Estado absolutista e do assenhoreamento do mercado, para mencionar de forma grosseira as mudanças que nos planos ideológico, político e econômico costumam ser invocadas como divisores de águas da modernidade. Por outras palavras, não se trata somente da inserção descritiva e compreensiva do fe- 12. HABERMAS, Jürgen. (1994), História y crítica..., op. cit., p. 57. 13. Ibid., p. 110.

DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO JÜRGEN HABERMAS 73 14. Utiliza-se a noção programático e suas derivações correspondentes porque em Habermas a modernidade preserva o caráter de projeto a ser realizado; todavia, no pensamento do autor tal aposta deve prescindir de qualquer assunção afirmativa de conteúdos normativos quer dizer, sua proposta teórica é normativa em um sentido muito peculiar. Em última análise, há um programa defensável no cerne da modernidade, cujos pressupostos foram progressivamente deslocados para o terreno das premissas lógicas de uma ontologia da linguagem; o caráter formal de tais estruturas lógicas tornou possível, para o pensador alemão, desprender-se do espinhoso problema dos conteúdos. Não é fortuito que os desdobramentos de seu programa de pesquisa, no campo das teorias das democracia, tenha chegado a sua afamada concepção da soberania como procedimento. Rawls assinalou corretamente o iniludível teor metafísico de uma lógica como a habermasiana, que visa desvendar os pressupostos estruturais do que existe, embora tal existir seja reconduzido à pragmática universal [...] dos seres humanos engajados na ação comunicativa. RAWLS, John. (1997), Resposta a Habermas, versão mimeografada para publicação na revista Filosofia e Sociedade. Unicamp, item 1,2. Cf., também, HABERMAS, Jürgen. (1993), Qué significa pragmática universal?. In: Teoría de la acción comunicativa: estudios y complementos previos. México, Rei. pp. 299-368; também, HABERMAS, Jürgen. (1993), La soberanía popular como procedimiento Un concepto normativo de lo público. In: HERRERA, Maria (coord.). Jürgen Habermas Moralidad, ética y política: propuestas y críticas.. México, Alianza Editorial. pp. 27-58. nômeno no seu contexto tipificado segundo cânones historiográficos de ampla aceitação. Há outro sentido no qual a configuração dessa publicidade é moderna, um sentido programático: as potencialidades nela encarnadas para a realização do ideário político da modernidade. 14 Da interpretação dos princípios de universalidade contidos na publicidade burguesa, tal e como caracterizada em registro sociológico no trabalho de 1962, Habermas extrai os primórdios de seu modelo, cuja reformulação cada vez mais abstrata ir-se-á deslocando vagarosamente para o terreno da teoria social e da reflexão filosófica, até atingir formulação mais ou menos definitiva em 1981, quando da edição de sua teoria da ação comunicativa. Seja dito de passagem, esse deslocamento não foi realizado sem custos e, paradoxalmente, quanto mais universal tornou-se o esforço intelectual do autor, menos mordazes resultaram as críticas à realidade passíveis de serem engastadas no seu programa de pesquisa. 15 Quais, então, os princípios programaticamente modernos detectados naquela obra? No meio de uma argumentação intrincada e plena de nuanças, é factível distinguir, grosso modo, o jogo de três forças ou vetores de universalização presentes na publicidade burguesa, que assim levaria no cerne a possibilidade de sua própria superação. Primeiro, a inclusão nas práticas e ins- 15. Os custos desse percurso também foram frisados por Keane, John. (1992), em La vida pública y el capitalismo tardío Hacia una teoría socialista de la democracia. México, Alianza Editorial. pp. 214, 228-34; v. g.: Sua valiosa defesa [de Habermas] das formas alternativas de vida pública [...] é contradita pelo modo de argumentação reconstrutiva, abstrata e formal que sustenta o projeto, especialmente na sua fase mais recente (p. 232). Antoni Domènech defende opinião semelhante: É típico da posterior evolução de Jürgen Habermas carregar as tintas na boa intenção normativa em detrimento da exploração de seu possível encaminhamento material.. DOMÈNECH, Antoni, op. cit., p. 26.

74 MARGEM N o 16 DEZEMBRO DE 2002 16. HABERMAS, Jürgen. (1994), Historia y crítica..., op. cit., p. 74. 17. Ibid., pp. 92-93. tituições dessa publicidade não foi regida por cláusulas de hierarquia ou de prestígio social, senão por uma solidariedade horizontal entre indivíduos contrapostos ao poder; mais: embora fossem pessoas privadas no sentido de possuidoras de propriedade, tais indivíduos reputavam-se representativos dos interesses da sociedade e do homem em geral da paridade dos meramente homens, conforme expresso pela autocompreensão da época. 16 Nesse sentido, não há na distinção operante entre homem e proprietário qualquer quesito funcional; muito pelo contrário, trata-se de diferença encoberta por uma identidade fictícia que alavancou efetivamente processos de emancipação política, tornando viável resgatar o princípio universal da igualdade no plano da participação. 17 Segundo, a substituição das hierarquias pelo exercício do raciocínio e da concorrência de argumentos com pretensões de validez enquanto eixo na dinâmica das práticas e instituições da publicidade, descansa no pressuposto de os argumentos utilizados como fundamento serem passíveis de compreensão por todo homem, sem mais exigências que o uso da razão; isto é, os critérios de validez do discurso em público prescindem do apelo à autoridade, do secreto ou do aprendizado de saberes exclusivos mediante a inserção dos indivíduos em grupos vocacionados para entender e/ou questionar os motivos e regras do poder. Por essa via, estabelece-se vínculo forte entre a capacidade crítica do homem comum e a razão como único parâmetro universal de acesso irrestrito, cujos efeitos mediatos produziram resultados libertários ao erguer o imperativo da transparência e da responsabilidade responsável e responsivo diante das decisões da esfera política. 18 Por fim, a opinião pública emanada do conjunto de instituições sociais da publicidade, potencialmente abertas e animadas pelo agir dialógico de seus integrantes, cristalizou sua própria legitimidade como depositária da força democratizadora da razão; mas foi muito além disso e imprimiu o princípio da publicidade no funcionamento das instituições políticas, conferindolhe o estatuto de condição sine qua non da democracia tal como mostrado, para Habermas, pelo caso paradigmático do parlamentarismo britânico. 19 A partir do momento em que o princípio da publicidade tornou-se irrenunciável para todo arcabouço institucional democrático, a esfera política não mais pôde se manter hermética ante os reclamos de uma opinião pública ativa, e teve de desenvolver dispositivos sensíveis aos consensos sociais emergentes the sense of the people, the common 18. Ibid., pp. 115-123 19. De certa forma, Reinhart Koselleck representa um contra-exemplo nesse ponto, pois, preocupado como a relação entre crítica e crise política, enfatizou na sua análise da gênese cultural da ilustração o papel dos casos francês e alemão. Cf. KOSELLECK, Reinhart. (1979), Le regne de la critique (1959). Paris, Les Editions de Minuit.

DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO JÜRGEN HABERMAS 75 voice, the general cry of the people, the public spirit, segundo as denominações utilizadas nos embates parlamentares da Inglaterra do século XVIII 20. Em suma, os princípios da inclusão universal, do juízo baseado em pretensões de validez universais a razão versus o privilégio, e a adequação da esfera política a esses princípios sob os influxos de uma crítica pública socialmente impulsionada subjazem no fundo da publicidade burguesa enquanto princípios programáticos modernos: O interesse de classe é a base da opinião pública. Durante aquela fase, ele deve ter se confundido de tal forma, objetivamente, com o interesse geral, que essa opinião pôde passar por opinião pública e racional possibilitada pelo raciocínio do público [...] À base do progressivo domínio de uma classe sobre a outra, esse domínio desenvolve, contudo, instituições políticas cujo sentido objetivo admite a idéia de sua própria superação: veritas, non auctoritas facit legem; a idéia da dissolução da dominação naquela leve coação que apenas se impõe na evidência vinculante de uma opinião pública. 21 20. HABERMAS, Jürgen. (1994), Historia y crítica..., op. cit., p. 101. 21. Ibid., p. 122. 22. Ibid., pp. 173-260. A passagem da frase auctoritas facit legem, formulada por Thomas Hobbes, para sua subversão em veritas non auctoritas facit legem a verdade, não a autoridade, é que faz a lei ilustra de forma sintética a introdução da razão identificada com a sociedade como única fonte de legitimação do poder e de suas decisões, em face das formas pré-burguesas de domínio público, nas quais a legitimidade da lei era emanação direta da autoridade. É bem conhecido que no mesmo movimento de reconstrução conceitual da publicidade burguesa, do seu inédito potencial para a autodeterminação dos rumos da vida social mediante a articulação de fluxos comunicativos dirigidos a pressionar o poder, Habermas diagnosticou o desacoplamento irreversível das condições estruturais que lhe deram sustento. Nessa perspectiva, o curso da história comprometia a força emancipadora da publicidade moderna, pelo menos no quadro de seus pressupostos liberais clássicos: um público raciocinante e esclarecido; um âmbito privado ainda composto essencialmente por proprietários iguais o que, aliás, fez com que durante muito tempo a iniciativa privada fosse sinônimo da iniciativa dos indivíduos particulares e não do capital ; um Estado com severas restrições quanto ao espaço legítimo de sua intervenção; a inexistência de grandes corporações de classe, quer do lado dos proprietários, quer do lado do trabalho; e o teor verdadeiramente representativo de uma opinião pública não mediatizada, cuja incipiente base institucional não visava a mercantilizar os veículos de transmissão como objetivo essencial. 22 O exame desse diagnóstico negativo, por via de re-

76 MARGEM N o 16 DEZEMBRO DE 2002 gra julgado como herdeiro da escola de Frankfurt, escapa aos propósitos destas páginas; em todo caso, é fato que em sua trajetória intelectual o autor enveredou no plano da macroteoria para a resolução desses e de outros problemas, aprimorando a especificação conceitual do seu modelo de publicidade. Porém, convém assentar que as transformações estruturais apontadas por Habermas, em e para além de sua obra, salientam o caráter problemático da publicidade moderna, pois, diferentemente da centralidade do mercado, da secularização, da expansão da soberania legítima do interesse individual ou de outras tendências de longa duração já consumadas na modernidade, ela, como de resto a própria democracia, dista de ser um fato estável e garantido; antes, encontra-se constituído por campo de tensões que a um tempo preserva e põe à prova seus alcances na realização do ideário político da modernidade. 23 É emblemático que Habermas tenha enfatizado o caráter ambíguo ou não garantido dessa dimensão social moderna depois do seu trabalho sobre a publicidade burguesa, e mais de um lustro após ter concluído sua teoria da ação comunicativa: 23. Para uma análise elucidativa da forma como a filosofia política moderna tem elaborado e cercado, mediante o esforço do conceito, os riscos da subordinação do público sob o império do privado particularmente no plano do exercício do poder, cf. CHAUI, Marilena (1992), Público, privado, despotismo. In: NOVAES, Adauto. (org.). Ética, São Paulo, SMC/Companhia das Letras, pp. 345-90, especificamente, pp. 357-81. Não se sabe de verdade se esta sociedade cultural só reflete a força do belo profanada com fins comerciais e de estratégia eleitoral, e com isso uma cultura de massas privatista e semanticamente rarefeita, ou se a mesma poderia constituir uma caixa de ressonância para uma publicidade revitalizada, na qual a semente das idéias de 1789 apenas estivesse por nascer. 24 Além do mais, tanto pela via do processo histórico de privatização das atividades destinadas à reprodução social, quanto pela via da emergência e consolidação de uma instância de sujeitos privados o mercado como questão de interesse para o conjunto da sociedade, essa publicidade responde e é conformada, na sua origem, por exigências e transformações amadurecidas no mundo privado. Trata-se de exigências por certo conflitantes, pois, de um lado, aparece o problema da integração social particularmente em face da desagregação das formas de vida comunitárias, enquanto, do outro, coloca-se a necessidade de garantir e regulamentar a dinâmica econômica do mercado, precisamente responsável pelo problema moderno da integração. 25 Assim, aceita-se a recons- 24. Jürgen Habermas, La soberanía popular como..., op. cit., p. 36. 25. Cf. o extraordinário trabalho de CASTELS, Robert (1997), Las metamorfosis de la cuestión social Una crónica del salariado, Buenos Aires, Paidós, pp. 29-69 e 158-267. Para uma síntese do próprio autor quanto aos conceitos fundamentais que articulam a análise desse livro, cf. CASTELS, Robert. (1991), De l indigence à l exclusion, la désaffiliation Précarité du travail et vulnérabilité

DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO JÜRGEN HABERMAS 77 trução genética da publicidade, tal e como desenvolvida por Habermas, a nota distintiva do estatuto do público no mundo moderno, de sua ambigüidade, reside na forma de sua relação com o privado, a qual, seja dito de passagem, antes de ser uma deturpação, como postulado pelo modelo clássico de Arendt, adquire caráter constitutivo. 26 Publicidade e fluxos comunicativos Malgrado a recusa de Habermas a qualquer elucidação afirmativa de pressupostos axiológicos, a aposta por assegurar os efeitos democráticos, de autodeterminação social e de racionalização do poder inscritos nas tensões constitutivas da publicidade moderna, é sem dúvida condizente com o fato de o autor conferir a seu pensamento o perfil de uma colossal empreitada programática. Uma vez explicitado em grandes traços o núcleo das questões envolvidas no surgimento e na consolidação da publicidade moderna, assim como suas implicações para um programa de reflexão sobre os problemas e desafios contemporâneos da modernidade, falta avançar mais um passo e esboçar a trajetória dessa categoria, estabelecendo os acréscimos fundamentais que permitiram refinar a concepção habermasiana, tal e como hoje é utilizada na literatura por uma gama expressiva de autores. A atenção será focada apenas nos aportes mais relevantes, pois não cabe aqui acompanhar, sequer sumariamente, o percurso de mais de quarenta anos de intensa produção intelectual que, desde 1958, com a edição de Leituras, como já mencionado, deixou até o momento saldo aproximado aos quarenta livros. É possível distinguir dois grandes eixos de trabalho teórico, a partir dos quais a publicidade seria investida de atributos conceituais mais ou menos definitivos: o vínculo conflitante entre a sociedade civil e o Estado e a qualificação da lógica inerente a ambos os termos desse binômio. Embora o princípio de publicidade tenha impregnado o funcionamento das instituições políticas no contexto dos regimes democráticos, subsiste o problema da efetiva realização desse princípio, tendo em vista evidências históricas abundantes quanto à perseverança do hermetismo na esfera política e, ainda mais, quanto ao alastramento de dinâmicas de manipulação da opinião pública após o advento da revolução do número ou da democracia de massas. A elaboração da teoria da legitimidade (1973), a propósito do exame das crises sistêmicas no capitarelationnelle. In: DANZELOT, Jacques. (org.), Face à l exclusion, Paris, Esprit. pp. 137-68. 26. Isso evidencia, aliás, quão rudimentar tem sido o debate dos últimos anos em torno da redefinição dos limites do Estado e do mercado, do público e do privado, como se fosse uma espécie de equação matemática de soma zero. Cf. Giuseppe Vacca, Estado e mercado, público e privado, pp. 151-64, especialmente, pp. 160-2; GURZA LAVALLE, Adrián. (1997), Por uma utopia ao alcance da mão: contracrítica antineoliberal do espaço publico. In: CARCANHOLO, Marcelo; MALGUTI, Manoel Luiz (orgs.). A quem pertence o amanhã Ensaios sobre o neoliberalismo. São Paulo, Loyola. pp. 141-54.

78 MARGEM N o 16 DEZEMBRO DE 2002 lismo tardio, aparece em Habermas como resposta a equacionar a impossibilidade da clausura total do poder; impossibilidade derivada da diluição da imagem liberal do Estado como instância imparcial, em virtude de sua crescente intervenção nos processos de reprodução da sociedade. 27 No marco dessa proposta, a legitimidade não se reduz aos motivos psicológicos ou sociológicos para acreditar nas razões do poder e aqui a referência explícita é à influência das formulações clássicas de Max Weber ; 28 na verdade, ela condensaria os limites da autonomia do Estado em seu vínculo contraditório, porém constitutivo, com a sociedade. 29 Nas democracias, e desde que nesse contexto, pois o programa de pesquisa do autor não se preocupa com casos exceptivos, o poder precisa justificar seu agir, expor e ponderar publicamente os motivos de suas decisões, sempre passíveis de contestação quanto a suas pretensões de validez e à luz dos elementos probatórios disponíveis para 27. HABERMAS, Jürgen. (1980), A crise de legitimação no capitalismo tardio, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, pp. 34-38, 50-52. 28. Ibid., pp. 121-40. A principal crítica de Habermas à concepção weberiana da legitimidade aponta para os obstáculos incontornáveis que ela erige para resolver de forma satisfatória a relação entre verdade e legitimidade. 29. O caráter constitutivo desse vínculo suscitou em seu momento sérias críticas à visão instrumental do Estado e à redução da questão da legitimidade ao caráter presuntivamente formal da democracia burguesa; é claro que o destinatário de tais críticas era uma parte do pensamento marxista e sua estratégia conceitual dogmática ; cf. ibid., p. 78. a opinião pública. Destarte, apesar de o princípio de publicidade na esfera política estar sujeito a inúmeros constrangimentos que o tornam vulnerável, ele se encontra atrelado de forma indissolúvel à dinâmica dos reclamos sociais veiculados por intermédio das instituições autônomas da opinião pública as quais, por sua vez, e devido a seu enraizamento na vida social, constituem um âmbito indispensável de processamento da legitimidade para o poder. 30 É claro que as instituições autônomas da publicidade arraigadas no mundo social são passíveis de coação mediante expedientes diversos, mas não podem ser desmontadas nem banidas sem quebrantar os pressupostos de todo Estado de direito democrático. O desfecho de tais formulações parece evidente: a opinião pública pode ser artificialmente fabricada, e, sem dúvida, as verdadeiras causas que animam as decisões políticas podem serlhe escamoteadas de modo a manipu- 30. À proposição que os valores-metas dos sistemas sociais variam historicamente, precisa ser acrescentada a proposição que a variação em valores-metas é limitada pela lógica do desenvolvimento das estruturas das visões do mundo; uma lógica que não está à disposição dos imperativos do poder. Ibid., p. 25. Compare-se tal asseveração com a seguinte, formulada vinte anos depois: O desenvolvimento de tais estruturas do mundo da vida pode, certamente, ser estimulado, mas escapa em boa medida à regulamentação jurídica, à intervenção administrativa ou à regulação política. O sentido é um recurso escasso que não pode ser regenerado ou incrementado voluntariamente [...]. HABERMAS, Jürgen (1998), Facticidad y validez Sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso, Madri, Trotta, p. 439.

DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO JÜRGEN HABERMAS 79 lar sua orientação; entretanto, em meio a esses riscos e à sua própria ambigüidade, ela mantém seu potencial democratizador graças ao fato de que o processo de legitimação das decisões políticas não pode ocorrer totalmente à margem das práticas e espaços da publicidade. Note-se a mudança conceitual: trata-se agora de uma publicidade depurada de suas feições burguesas, consagrada como instância geral de intermediação entre o Estado e a única fonte insuprimível de legitimação nos regimes democráticos, ou seja, a sociedade. No que diz respeito ao segundo eixo, a separação entre o social e o político entre o mundo autônomo da sociedade e o Estado com suas regras internas de poder seria levada até às últimas conseqüências na teoria da ação comunicativa (1981), particularmente na idéia de sociedade em dois níveis. O primeiro termo do binômio, a sociedade, aparece radicalmente ressignificada mediante sua definição conceitual como mundo da vida, em cuja lógica prima a produção simbólica de sentidos não subordinada a qualquer determinação heterônoma aos agentes envolvidos na interação. 31 No mundo da vida, trama intersubjetiva de todos os sentidos herdados e dos novos sentidos possíveis ou, para dizêlo com Habermas, um horizonte no interior do qual ações comunicativas 31. HABERMAS, Jürgen. 1987), The theory of communicative action II Lifeworld and system: a critique of funcionalist reason. Boston, Bacon Press, pp. 113-152. estão sempre prontas e moventes, 32 os indivíduos interagem não apenas na interpretação e reapropriação do preexistente costumes e cultura, como também na produção de sentidos que escapam ao controle administrativo e às necessidades de auto-regeneração do poder. Já a esfera política ganha novos contornos como universo sistêmico alheio à dinâmica das mediações lingüísticas imperantes no mundo social. De fato, o nível sistêmico expande-se analiticamente para abarcar a lógica funcional da política e da economia não mais representativa do empenho material mais ou menos igualitário de pessoas privadas ; sendo que tal cisão com o mundo da vida assume caráter irreversível, pois responde ao incremento da complexidade na evolução social. A realidade sistêmica é organizada, então, pelo automatismo de imperativos funcionais refratários à linguagem moral e ao controle comunicativo da sociedade, o que, em certo sentido, eqüivale a dizer que a atividade da economia e da política encontra-se subordinada à lógica do poder e do dinheiro enquanto dispositivos de coordenação media cifrados de modo deslingüistificado. 33 A oposição entre o nível do mundo da vida e o sistêmico, aqui bosquejada de forma rápida, traz conseqüências relevantes para o modelo habermasiano da publicidade: aprimora sensivelmente o achado histórico e socio- 32. Ibid., p. 119. 33. Ibid., pp. 153-197.

80 MARGEM N o 16 DEZEMBRO DE 2002 34. Para a apresentação dessa teoria geral, cf. HABERMAS, Jürgen. (1984), The theory of communicative action I Reason and rationalization of society, Boston, Bacon Press, pp. 237-337. 35. Cf. HABERMAS, Jürgen. (1998), Facticidad y validez... op. cit., pp. 439-446. lógico de uma sociabilidade mediada por fluxos autônomos de comunicação, capazes de produzir efeitos de racionalização do poder; mas, sobretudo, eleva esse achado ao plano de uma teoria geral da evolução social e da ação social, despindo-o de todo vestígio particularista oriundo de sua gênese burguesa. 34 Na realidade, o resultado é a postulação de um modelo de publicidade passível de ser analiticamente mobilizado na reflexão programática acerca das possibilidades contemporâneas de realização dos ideais modernos. A publicidade já desempenhava funções de espaço de mediação no interior da sociedade e entre ela e o poder, todavia, seu papel conquistou salvaguarda inabalável como caixa de ressonância do mundo da vida; ainda mais, ela não mais pode ser compreendida como conjunto de instituições ancoradas no tecido social, pois agora se constitui na intangível articulação de fluxos comunicativos, como rede ou como espaço abstrato materializado em cada momento e lugar onde a formação de opinião emerge do mundo da vida e vem à luz pública. 35 A opinião pública também é reforçada no seu potencial democratizador, não porque seus conteúdos e posições sejam definitivamente garantidos, senão porque, apesar dos alcances dos processos de manipulação e dos estímulos artificiais, ela preserva liames constitutivos com o mundo da vida. Outra operação analítica na redefinição do modelo merece destaque. Por seus objetivos, modo de proceder, autoconcepção e fonte de suas demandas, o protagonismo político da opinião pública era, stricto sensu, pré-político: nunca aspirou a se entronizar como ator central no exercício das funções políticas, limitando-se à prática de um assédio constante sobre o poder que assim recebia pressões racionalizadoras de fora ; a opinião pública tampouco cristalizou autopercepções como poder alternativo, muito pelo contrário, animada por uma lógica liberal apresentou-se como encarnação da crítica racional para o aprimoramento das instituições; por último, a força da opinião pública visava à esfera política, mas seus reclamos tinham raízes fundas que atravessavam o âmbito do social e suas instituições de convívio e projeção pública, para se encravar nas experiências de vida e preocupações emergentes da privacidade familiar. 36 Assim, a índole pré- 36. As três considerações expostas acerca do caráter pré-político da opinião pública foram nitidamente expressas em diversas passagens da obra de 1962; v. g., com respeito às duas primeiras considerações: Conforme a suas próprias intenções, a opinião pública não quer ser nem limite do poder nem o poder mesmo, e ainda menos fonte de todo poder. Dentro de seu próprio contexto, é antes obrigada a modificar o caráter do poder executivo, da própria dominação. HABERMAS, Jürgen. (1994), Historia y crítica..., op. cit., pp. 117-118. Para a terceira consideração, cf. ibid., pp. 80-88.

DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO JÜRGEN HABERMAS 81 política da opinião pública já era condição a garantir sua missão política; entretanto, essa condição é agora investida de notável solidez, visto que o mundo da vida sintetiza não apenas o universo das experiências de vida, dos processos de socialização e de formação da personalidade dos indivíduos, mas também, e sobretudo, a base comum graças à qual e somente por intermediação da qual se torna possível a reapropriação e produção de sentidos. Para que tais inovações conceituais fossem possíveis, tiveram de convergir distintas linhas de trabalho no programa de pesquisa de Habermas, em áreas tão diversas como a epistemologia, a ética, as teorias da linguagem e da ação e evolução sociais e, mais recentemente, as teorias da democracia e do direito. No quadro mais restrito dos propósitos desta análise, é cabível afirmar que a chave do revigoramento da publicidade reside na arquitetura dual da sociedade e na relação necessária entre ambos os níveis. De um lado, o mundo da vida sempre exposto às investidas colonizadoras provindas dos sistemas, mas por definição salvo, já que a espontaneidade social e a infindável produção de sentidos nunca serão suprimidas ou reguladas por completo; do outro, a realidade sistêmica ensimesmada, porém incapaz de produzir sua própria legitimidade e, portanto, de se clausurar diante dos reclamos que, emergindo do mundo da vida, alcançam consenso social pela via da publicidade. Em suma, o modelo habermasiano da publicidade como espaço social gerado na ação comunicativa 37 reconfigura-se, no essencial, no quadro das definições teóricas próprias à legitimidade, ao mundo da vida e à realidade sistêmica as duas últimas diretamente vinculadas à teoria da ação comunicativa. Na trajetória de tal especificação conceitual ocorreu um deslocamento progressivo da publicidade como fenômeno histórico abrangente, que envolveu instituições políticas e de comunicação, associações civis e a vida pública de uma pujante camada de livres proprietários, para a publicidade como constructo abstrato e altamente estilizado, cuja nota distintiva é tão-só a confluência de fluxos comunicativos oriundos do mundo da vida. Sob suas feições mais abstratas, de rede tecida ao sabor da espontaneidade social e da emergência de consensos, a publicidade condensa seus significados como virtualidade comunicativa indeterminada, embora sujeita aos limites do mundo da vida quanto à capacidade de criação e reapropriação de sentidos. Nesse percurso, dimensões problemáticas do espaço público moderno como o perfil das instituições políticas e do Estado ou as tendências dos meios de comunicação, pesadamente presentes no diagnóstico de 1962, permanecem à margem dos novos contornos do conceito sem dúvida mais universal e preciso, embora sociologicamente em- 37. HABERMAS, Jürgen. (1998), Facticidade y validez..., op. cit., p. 441.

82 MARGEM N o 16 DEZEMBRO DE 2002 pobrecido. Cumpre ressalvar que o fato de abstrair essas dimensões na definição da publicidade não implicou sua exclusão do programa de pesquisa de Habermas, como ilustrado pelo tratamento mais acurado do direito e do Estado nos trabalhos de finais dos anos 1980 e da primeira metade dos 90. Recebido em 19/8/2002 Aprovado em 30/10/2002 Adrián Gurza Lavalle, professor do Departamento de Política da PUC-SP. E-mail: layda@usp.br