Interpretação e limitações da MAPA: análise crítica



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Transcrição:

234 Vol XV N o 4 5 Artigo de Revisão Interpretação e limitações da MAPA: análise crítica Lílian Soares da Costa, Alexandre Rouge Felipe, Cláudio Maurício Mota e Sousa, Denise da Rocha Renzeti, João Carlos Tress, Monica Amorim Oliveira, Renata Amerio Gonçalves e Cantidio Drumond Neto Responsável pelo setor de MAPA da rede LABS/CARDIOLAB RJ, dos hospitais da Santa Casa da Misericórdia do RJ e Instituto de Cardiologia Aloysio de Castro. Prof. assistente de cardiologia da FTESM, UGF e curso de pós-graduação em cardiologia da 6 a enfermaria da Santa Casa da Misericórdia do RJ. Mestre em cardiologia pela UERJ Considerações gerais Inicialmente serão descritos através de um breve histórico, as principais indicações da MAPA na prática clínica, para posteriormente dar ênfase a uma análise crítica dos dados mais relevantes que devem ser tomados em consideração durante sua interpretação e, por fim, serem listadas as principais limitações na sua utilização. Histórico e indicações clínicas A monitoração ambulatorial da pressão arterial (MAPA) surgiu a partir de meados dos anos 60, porém somente na última década que os estudos passaram a demonstrar sua grande importância clínica no acompanhamento de indivíduos com suspeita ou diagnóstico de hipertensão arterial sistêmica (HAS), entre outras patologias. Desde 1890 que o exame inicial diagnóstico para avaliação de marcadores cardiovasculares é a utilização do esfigmomanômetro para medida de pressão arterial (PA) 1,2. Entretanto, essas medidas fornecem somente valores de pressão arterial sistólica (PAS) e pressão arterial diastólica (PAD), que além de inadequados para aferir os efeitos das ondas de reflexão, representam informações limitadas em termos de identificar positivamente a presença de doença vascular arterial. Dessa maneira, a influência do componente pulsátil da PA e da complacência vascular na integridade da circulação era muitas vezes não adequadamente enfatizada. O advento da MAPA se iniciou com a demonstração de correlações entre a PA ambulatorial e a curva de PA intra-arterial em indivíduos hipertensos na década de 60. A partir daí, estudos se desenvolveram correlacionando a média de PA obtida na MAPA com a presença de lesões em órgãos-alvo (LOA), inicialmente caracterizadas por retinopatia e posteriormente por hipertrofia ventricular esquerda (HVE) 3. Somente cerca de 20 anos mais tarde demonstrouse que dados obtidos pela MAPA, como a média da PA e a carga pressórica (definida como percentual de medidas acima de determinado valor de corte dito normal) poderiam ter valor preditivo de morbimortalidade cardiovascular 4,5. Pickering em 1988, procurando explicar porque encontrava um grupo de indivíduos com níveis tensionais elevados, porém sem LOA, sugeriu que provavelmente a medida de PA aferida não representava a verdadeira PA daqueles indivíduos e assim, definiu a Hipertensão de Consultório ou do Jaleco Branco como a elevação da PA que ocorria somente em consultório, em presença do médico. Como esses indivíduos não apresentavam LOA, acreditou-se nesta época, que esta nova entidade fosse totalmente benigna (Figura 1) 6. Talvez neste momento tenha se dado o grande marco no desenvolvimento da MAPA, já que se

Revista da SOCERJ - Out/Nov/Dez 2002 235 desenvolvia um método que excluiria indivíduos erroneamente diagnosticados como hipertensos, o que abrange cerca de 20-30% da população portadora de HAS leve a moderada. Na década de 90, novos estudos observaram que cerca de 15% dos indivíduos com HAS limítrofe também apresentavam PA normal ao realizarem a MAPA. Alguns estudos demonstram que uma única medida de PA em consultório parece superestimar o valor verdadeiro da PA e que a presença de HAS sustentada, ou seja níveis consistentemente elevados em várias ocasiões, representa um terço do total de hipertensos quando se faz o diagnóstico pelas medidas casuais, configurando a denominada hipertensão do jaleco branco, cuja prevalência varia em diferentes estudos de 5% a 70%, na dependência do tipo de HAS, método utilizado para análise, entre outros fatores. Atualmente, sabe-se que a prevalência da elevação anormal da PA em consultório é em torno de 21% na HAS limítrofe, aumentando cerca de 5% em HAS mais severa e sendo ainda mais prevalente em idosos e portadores de hipertensão sistólica isolada 7. Entretanto, trabalhos posteriores demonstraram que esta hipertensão de consultório provavelmente não era uma entidade tão benigna assim, pois foram evidenciadas correlações com níveis mais elevados de albuminúria, maior excreção de sódio, maior índice de massa ventricular esquerda, sugerindo-se até que fosse um fator preditor de HAS sustentada no futuro. A MAPA muitas vezes previne o diagnóstico de HAS baseado na elevação da PA observada em medidas isoladas em consultório e parece ser o método mais acurado e de melhor correlação com LOA. Estudos consistentes demonstram menores valores dos níveis de PA baseados em medições ambulatoriais quando comparados a medições em consultório. Outro fato que foi notado é que mesmo indivíduos portadores de HAS poderiam apresentar elevação dos níveis tensionais durante as 24 horas de monitoração e ainda apresentarem uma reação de alarme durante o momento de instalação do monitor, caracterizando o denominado Efeito do Jaleco Branco (Figura 2). Entretanto, o que talvez Figura 1 Hipertensão de consultório ou do jaleco branco Figura 2 Efeito do jaleco branco

236 Vol XV N o 4 seja de menor conhecimento seja um percentual de indivíduos hipertensos (cerca de 10-20%) que apresentam a denominada Normotensão de Consultório e que são considerados normotensos em avaliações de rotina ambulatoriais. Nesta mesma época, demonstrou-se maior correlação do nível de estresse físico (através de teste ergométrico) e estresse emocional (a partir de relato dos pacientes) com as médias de PA obtidas pela MAPA, enfatizando-se que os maiores valores de PA eram obtidos durante atividade profissional e durante estresse emocional e que esses valores eram os que melhor se correlacionavam com a presença de LOA. Diversos estudos transversais relacionam níveis de PA pela MAPA com presença de LOA, tendo sido Sokolow quem primeiro descreveu a maior associação de LOA com a PAS de vigília (r=0,63) e PAD de vigília (r=0,65), quando comparada com valores obtidos em consultório 3. Neste estudo, a avaliação de LOA foi realizada pela análise de HVE no eletrocardiograma, aumento do diâmetro do coração ao raio X e fundoscopia. A partir deste trabalho, outros incluindo o de Parati e col demonstraram melhor correlação de LOA com a PA de 24 horas, em comparação à PA de vigília. A melhor correlação de LOA com a MAPA do que com medidas de consultório é devido à combinação de dois fatores: primeiro, devido ao fato de um maior número de medições se correlacionar mais com LOA, como demonstrado por Prisant e Carr na avaliação de HVE onde múltiplas medidas tinham correlação mais forte quando comparadas a uma única medida e que a exclusão de parte do período da monitoração tornava a correlação mais fraca quando comparada ao período completo de 24 horas; segundo, o fato de que a MAPA representa muito mais as variações tensionais reais de cada indivíduo. Embora a maioria dos estudos demonstre uma maior correlação de LOA com as médias de PA de vigília ou de 24 horas do que com as médias de PA obtidas durante o período de sono, um significativo percentual de indivíduos permanece com PA elevada à noite, não satisfazendo o descenso fisiológico noturno esperado em indivíduos normais. Nestes indivíduos, os pioneiros trabalhos de Verdeccia demonstraram que a permanência de PA elevada durante o sono se correlacionava mais com HVE do que aqueles com descenso noturno mais acentuado dos níveis tensionais, independente de seus valores obtidos no período de vigília 8,9 (Figura 3). Portanto, a maior correlação de LOA na MAPA é feita com as médias de PA obtidas em vigília ou em 24 horas, desde que o indivíduo apresente um ritmo circadiano fisiológico caracterizado por maiores valores de PA em vigília e presença de descenso noturno satisfatório. Naqueles indivíduos em que ocorre ausência de descenso ou mesmo inversão do ritmo circadiano, a melhor correlação com LOA é apresentada com as médias de PA obtidas no período de sono. A indicação da MAPA para estudo de eficácia terapêutica anti-hipertensiva de casos nãocomplicados já tem sido muito utilizada e discutida, embora, com o advento da monitoração residencial da PA (MRPA) mais recentemente, que é um exame de menor custo e alta reprodutibilidade, esta indicação tenha sido mais reservada para casos de HAS refratária 10. Entretanto, a aplicação da MRPA fica restrita à avaliação exclusiva de valores isolados de níveis tensionais, não permitindo uma avaliação mais Figura 3 Ausência de descenso noturno

Revista da SOCERJ - Out/Nov/Dez 2002 237 pormenorizada de determinados aspectos de extrema relevância em pacientes hipertensos como: o estudo do ritmo circadiano, descenso fisiológico do sono, a ascensão matinal ao redor do despertar, escapes tensionais em momentos de estresse profissional ou emocional, fatores estes já comprovadamente relacionados a maior morbimortalidade por eventos cardiovasculares. Alguns trabalhos são desenvolvidos na tentativa de se avaliar a eficácia terapêutica de novas drogas antihipertensivas; no entanto, a necessidade de utilização de placebo em alguns estudos e/ou a rigidez em protocolos que analisam a relação valepico de drogas, segundo determinações da FDA, tornaram esta indicação menos utilizada na prática individual, reservando-a para protocolos em estudos clínicos 11,12. Mais recentemente e, corroborando os dados do estudo de Framingham, a pressão de pulso (PP) tem sido relacionada como um importante marcador de risco cardiovascular. A elevada PP também parece refletir doenças dos grandes vasos com grave implicação no acometimento de órgãos-alvo, de valores prognósticos potenciais. Alguns estudos demonstram uma correlação direta da PP com aterosclerose carotídea, massa do ventrículo esquerdo, microalbuminúria e lesões lacunares cerebrais; outros demonstram associação da PP com risco de eventos mórbidos cardiovasculares como doença coronariana aguda e insuficiência cardíaca, independente dos valores de PAS e PAD. As primeiras evidências do valor prognóstico da PP vieram de dados indiretos do Multiple Risk Factor Intervention Trial (MRFIT), no qual a PAS foi a variável com melhor capacidade de predizer mortalidade por todas as causas, acidente vascular encefálico e evento coronariano para qualquer nível de PAD. Segundo Verdecchia et al, a associação da PP com um evento cardiovascular é independente de outros marcadores de risco cardiovascular como a massa do VE no ecocardiograma e a hipertensão de consultório 7. Outro aspecto de extrema relevância é a utilização da MAPA para avaliação de hipotensão arterial (Figura 4); mas, é importante ressaltar que não há critérios diagnósticos de hipotensão arterial pela MAPA. Portanto, sua aplicabilidade ficará restrita a casos sintomáticos onde a correlação de sintomas apresentados com alterações dos níveis tensionais poderá ser útil na avaliação da terapêutica a ser instituída ou reajustada. Análise crítica para interpretação do método Durante a interpretação de um exame de MAPA deve-se levar em consideração alguns aspectos de importância primordial para a valorização dos dados obtidos: 1. Tipo de equipamento e manguito que foi utilizado: Os primeiros monitores ambulatoriais portáteis foram desenvolvidos na década de 70, eram automáticos e de alto peso. A partir destes, surgiram diversos outros com diferentes metodologias de uso (auscultatórios e/ou oscilométricos) e cada vez com tecnologia mais avançada na sua confecção, de tal sorte que a Sociedade Britânica de Hipertensão em conjunto com a Associação Americana para Instrumentos Médicos determinaram critérios para validação desses aparelhos. No momento, dispomos de mais de 50 aparelhos para MAPA, porém menos da metade tem sua validação garantida por uma das duas entidades 10,11. Figura 4 Episódio de hipotensão arterial

238 Vol XV N o 4 2. Experiência do médico que interpretou o exame, garantindo adequada interpretação de picos tensionais, correlação de sintomas, interpretações de ascensão matinal, PP, descenso noturno, entre outros dados minuciosos que até o momento não estão disponíveis em diretrizes. 3. Reprodutibilidade das atividades habituais do paciente: dia de realização da monitoração deve ser um dia representativo das atividades habituais do paciente, especialmente em indivíduos com atividade profissional. 4. Preenchimento adequado de um diário de suas atividades, para correlação com as variações eventuais dos níveis tensionais, qualidade do sono, horário de medicações, entre outras. 5. Orientações satisfatórias fornecidas durante instalação do monitor para garantir adequada qualidade do exame, como posicionamento do braço durante as insuflações, reposicionamento do manguito caso necessário, acionamento de medições extras em caso de sintomas. 6. Garantia da qualidade do exame a partir de um número de leituras que julgamos satisfatório não inferior a 3 a cada hora durante o período de vigília e 2 a cada hora durante o período de sono, o que nos fornece ao fim de 24 horas em torno de 70 medições, embora as últimas diretrizes não contenham esta recomendação 10,13,14. 7. Valores de normalidade: levando-se em consideração que os critérios de normalidade são arbitrários, valoriza-se cada vez mais cada um dos itens considerados acima. Para indivíduos com idade superior a 18 anos considera-se para interpretação, os valores médios dos níveis tensionais recomendados pela tabela 1, enfatizando-se que um descenso noturno fisiológico satisfatório é considerado aquele compreendido entre 10 a 20% da média obtida em período de vigília 4,10,11,15,16,17 (Figura 5). Entretanto, julgamos que estudos são necessários para se determinar novos critérios de normatização, considerando-se desde o número de medições satisfatórias para análise de um exame até critérios para interpretação de novos e possíveis marcadores de risco cardiovascular, como a PP, ascensão matinal exacerbada, entre outros. Tabela 1. Valores recomendados para avaliação da média dos níveis tensionais Média da Pressão Arterial (mmhg) Normal Intermediário Anormal Sistólica Vigília < 135 135-140 > 140 Sono < 120 120-125 > 125 24 horas < 130 130-135 >135 Diastólica Vigília < 85 85-90 > 90 Sono < 75 75-80 > 80 24 horas < 80 80-85 > 85 Figura 5 Descenso noturno fisiológico

Revista da SOCERJ - Out/Nov/Dez 2002 Limitações da utilização da MAPA As limitações da MAPA podem ser divididas em limitações relacionadas ao próprio método de avaliação, ao procedimento de realização ou à análise do exame, como descritas a seguir: 1. Dificuldade na interpretação de dados em pacientes portadores de arritmias com alta frequência ventricular, em pacientes com síndromes hipercinéticas ou na presença de hiato auscultatório; 2. Dificuldade de instalação e ajuste de manguito em pacientes com circunferência de braço superior a 50 cm; 3. Bradicardia importante com níveis de PA muito elevados, dificultando aferição pelo método auscultatório; 4. Impossibilidade do paciente de permanecer com o manguito por incômodo excessivo durante as insuflações, critério este subjetivo e muito dependente dos níveis tensionais, do grau de estresse e do limiar de dor; 5. Dificuldade de interpretação de dados por falta de informações adequadas do paciente durante o período de monitoração, período de sono não adequado ou satisfatório, dia não representativo de atividades habituais, não tomada da medicação preconizada quando a indicação é avaliação terapêutica, entre outros; 6. Equipamento utilizado não validado pela Associação Americana para Instrumentos Médicos e/ou pela Sociedade Britânica de Hipertensão Arterial; 7. Períodos de interrupção do exame com número insuficiente de medições para análise satisfatória, requerendo sua repetição para garantia de reprodutibilidade e fidedignidade na sua interpretação; 8. Falta de normatização de dados para interpretação, especialmente considerando-se grupos populacionais especiais como crianças, gestantes e idosos. Considerações finais Diversos trabalhos têm sido desenvolvidos na tentativa de demonstração da real correlação entre as medidas de PA ambulatoriais, a incidência de complicações cardiovasculares e a existência de fatores prognósticos potenciais nos dados obtidos através deste método. 239 Diversas diretrizes e consensos internacionais e nacionais, além de comitês de indicações clínicas têm sido realizados nos últimos 10 anos para definir a aplicação clínica da MAPA 10-13,17. Atualmente, a MAPA é um método de reconhecida utilidade clínica, porém por existirem limitações especialmente em relação à falta de normatização de dados, requer acima de tudo um profissional experiente para sua realização e interpretação. A sua indicação e interpretação adequadas fazem do método um instrumento valioso no acompanhamento de diversas patologias, especialmente a HAS. Referências bibliográficas 1. Guidelines Subcommittee. World Health Organization International Society of Hypertension guidelines for the management of hypertension. J Hypertens 1999; 17: 151-183. 2. Joint National Committee on Prevention, Detection, Evaluation, and Treatment of High Blood Pressure. The Sixth Report (JNC VI) Arch Intern Med 1997; 157: 2413 2446. 3. Perloff D, Sokolow M, Cowan R. The prognostic value of ambulatory blood pressure. JAMA 1983; 249: 2792-2798. 4. Staessen JA, Bieniaszwski L, O Brien ET et al. What is a normal on ambulatory monitoring? Nephrol Dial Transplant 1996; 11: 241-245. 5. Staessen JA, Thijs L, Fagard R et al, for the Systolic Hypertension in Europe Trial Investigators. Predicting cardiovascular risk using conventional vs. ambulatory blood pressure in older patients with systolic hypertension. JAMA 1999; 282: 539-546. 6. Pickering TG, James GD, Boddie C et al. How common is white coat hypertension? JAMA 1988; 259: 225-228. 7. Verdecchia P. Prognostic value of ambulatory blood pressure: current evidence and clinical implication. Hypertension 2000; 35: 844-851. 8. Verdecchia P, Gatteschi C, Benemio G. Circadian blood pressure changes and left ventricular hypertrophy in essential hypertension. Circulation 1990; 81: 528-536. 9. Verdecchia P, Schillaci G, Porcellati C. Dippers versus non-dippers. J Hypertens 1991; 9 (Suppl.8), S42-S44. 10. III Diretrizes para o uso da monitoração ambulatorial da pressão arterial. Rev Bras Hipertens 2001 vol 8(1): jan-mar.

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