A IMAGEM DO PROFESSOR EM CONTO DE ESCOLA DE MACHADO DE ASSIS Gisele Montoza Felicio 1



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Transcrição:

1 A IMAGEM DO PROFESSOR EM CONTO DE ESCOLA DE MACHADO DE ASSIS Gisele Montoza Felicio 1 RESUMO Este artigo pretende questionar a imagem da personagem professor dentro da Literatura Brasileira fundamentado no conceito de identidade e verificar como é estabelecida a relação professor/aluno. O texto escolhido foi Conto de Escola (1884), de Machado de Assis, no qual um aluno aprende em um único dia, com seus colegas, a corrupção e a delação. Qual é a importância do professor para este aprendizado e como a escola responde às demandas sociais são questões que tentaremos refletir assim como sobre a imagem atual do professor. Palavras-chave: professor, aluno, escola, Literatura Brasileira, Machado de Assis. RÉSUMÉ Cet article a l intention de questionner l image du personnage professeur dans la Littérature Brésilienne fondée sur le concept d identité et de vérifier comment on va établir la relation professeur/élève. Le texte choisi a été Conto de Escola (1884), de Machado de Assis, dans lequel un élève apprend en un seul jour, avec ses collègues, la corruption et la délation. Quelle est l importance du professeur pour cet apprentissage et comment l école répond aux demandes sociales ce sont les questions que nous essayerons de réfléchir ainsi que sur l image actuelle du professeur. Mots-clé : professeur, élève, école, Littérature Brèsilienne, Machado de Assis. O presente artigo intenciona discutir a imagem da personagem professor dentro da Literatura Brasileira fundamentado no conceito de identidade e, com base nele, verificar como se estabelece a relação professor/aluno. No presente texto, uma analise diacrônica permitiunos fazer um recorte cronológico a fim de caracterizar um professor-personagem do Realismo, por meio do Conto de Escola, de Machado de Assis. 1 Mestranda-bolsista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie; bacharel em Letras com habilitação em Tradução pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; graduada em História pela UNIFAI.

2 O Conto de Escola foi publicado pela primeira vez em 1884, na Gazeta de Notícias, e em 1896, em Várias Histórias. Em 2002, foi transformado em livro infantil pela editora Cosac Naify e em 2008, foi selecionado para constar na lista de referência do Ministério da Educação Nacional da França, sendo indicado para alunos de 8 a 10 anos de idade segundo notícia do jornal A Folha de São Paulo de 30/05/2008. Não podemos afirmar que a intenção do autor era a de fazer um conto dedicado ao público infantil, a bem da verdade o tema político-social que está por trás da trama descartaria esta hipótese, contudo o que se sabe é que o conto machadiano tem sido muito estudado nos cursos de letras e pedagogia em propostas diversas de análise que vão desde a formação ética e moral do indivíduo até a deficiência do sistema escolar ou ainda a violência na relação professor/aluno. O conto é narrado em primeira pessoa e possui uma narrativa datada de 1840, ano que marca o fim do período regencial no Brasil. É um conto memorialista, traço marcante da obra de Machado de Assis, em que um aluno relembra quando foi flagrado por um colega ensinando a lição a outro em troca de uma moedinha de prata, tendo sido por este motivo, punido severamente pelo professor. Conta com quatro personagens: o professor rígido, Sr. Policarpo; o narrador-protagonista, Pilar, um aluno inteligente, mas que gostaria de estar fora da escola para usufruir melhor sua infância; o aluno-filho do professor, Raimundo, com dificuldades de aprendizagem e que por meio do suborno, espera que o protagonista ajude-o com a lição; o aluno-delator, Curvelo, que presencia e denuncia o caso de suborno entre os colegas. O suborno envolvia diretamente o filho do professor e o protagonista, fazendo com que a raiva do mestre se manifestasse nas formas cruéis e aceitáveis, na época, de castigos físicos e morais. Os castigos levaram o protagonista a desejar abandonar a instituição de ensino. Fica claro assim, que a instituição escolar não conseguia resolver o problema de

3 aprendizagem de Raimundo, levando os alunos a terem atitudes antiéticas como o suborno e posterior delação e, por conseguinte, a provável evasão escolar de Pilar. O conto de Machado pode ser analisado segundo um viés socioeconômico, em que o suborno representa o poder monetário sobre as decisões éticas dos indivíduos, demonstrando o individualismo preconizado pelo capitalismo e manifesto na figura do professor que não dá a devida atenção ao processo de ensino-aprendizagem e que pode até ser responsabilizado pela atitude reprovável do filho. Contudo, antes de aprofundar estes pensamentos faz-se necessário entender melhor os conceitos de identidade e coletividade dentro da modernidade, desenvolvidos por Stuart Hall. Segundo Stuart Hall, o conceito de identidade é um conceito que na contemporaneidade vem se modificando tamanha a mobilidade socioeconômica que permeia a vida do homem moderno. Hoje em dia, podemos usar o termo identidades e não mais identidade, pois cada indivíduo assume vários papéis sociais ao longo de sua existência. A identidade pode dizer o que e como somos na sociedade em um dado momento (tempo/espaço) histórico. Sendo assim, os indivíduos tendem a ser flexíveis para poderem viver suas diversas identidades na sociedade. A coletividade exerce também sua influência na construção da identidade do sujeito. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar ao menos temporariamente (HALL, 2000:13).

4 O que se percebe então, é que o conceito clássico de identidade mudou, pois as sociedades modernas são sociedades de mudança constante, rápida e permanente, segundo as palavras de Stuart Hall. Sendo assim, o indivíduo precisa perceber estas mudanças para poder se adaptar a elas. No conto em questão, verifica-se que a construção da personagem é feita primeiro por uma descrição rápida do professor, caracterizando a sua própria identidade. Identidade esta construída pela representação coletiva da época em que está inserido. Os detalhes da vestimenta do professor não possuem tanto destaque quanto o ar imperioso da entrada do mestre à sala de aula. Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo; ele entrou na sala três ou quatro minutos depois [...] Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos (ASSIS, 2007: 326-327). Entretanto, a descrição física do professor sugere uma imagem decadente, que lia o jornal durante a aula enquanto cheirava rapé, e que ameaçava constantemente os alunos com a palmatória. Essa imagem do professor era a imagem da própria instituição escolar decadente no final do século XIX. Entrou com o andar manso do costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo e tinha perto de cinquenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta (Ibid. p. 327). O início do conto já institui a atmosfera educacional que constituirá o seu enredo. Por meio da primeira frase, sabe-se que a ambientação se dá em uma escola. A escola era na rua do Costa, um sobradinho de grade de pau (Ibid. p. 326). E quando o narrador começa a contar as suas memórias desse período manifesta uma primeira tensão: espaço livre x espaço

5 fechado. A construção dos ambientes se dá por confronto. A escola representa o espaço fechado, entre muros, a prisão enquanto que o morro ou o campo representam a liberdade, figura reforçada pelo papagaio solto no ar. O primeiro dilema se estabelece. A escola possuía atrativos suficientes para atrair seus alunos e tirá-los da rua? Diante do questionamento, Pilar optara pelo espaço fechado, pela escola. O narrador afirma ter tomado a decisão movido pela razão, contudo a razão foi movida pelas surras tomadas anteriormente pelo pai. Pilar demonstrava o seu desinteresse pela escola e seu desejo em brincar livremente pelos campos, morros e ruas do Rio de Janeiro. Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por andar lá fora e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero humano (ASSIS, 2007: 327). Pilar era um aluno inteligente e tinha facilidade em aprender os conteúdos, por isso fora procurado por Raimundo para lhe ajudar nos deveres escolares. Entretanto, não era um aluno exemplar visto que tinha o hábito de cabular as aulas sempre que possível. No inicio da narrativa, só não fora cabular a aula porque apanhara do pai que havia descoberto o fato, Na semana anterior tinha feito dois suetos, e, descoberto o caso, recebi o pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro (Ibid. p. 326). O professor Policarpo era rígido e fazia uso da palmatória nos castigos aplicados aos alunos. Notadamente a sua imagem de severidade é construída por meio das impressões subjetivas do narrador-protagonista. A rigidez do mestre era ainda maior para com o próprio filho, resultando em um sentimento de pavor do filho com relação ao pai. Podemos também considerar que a atitude de Raimundo em corromper Pilar pode ser resultado da relação conflitiva com seu pai.

6 Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retiravase antes. O mestre era mais severo com ele do que conosco (Ibid. p. 327). Essa rigidez por parte do mestre está em concordância com os parâmetros do relacionamento professor-aluno ditados em meados do século XIX. O discurso pedagógico restringia-se à função de um professor autoritário cuja imagem dominante era mantida pela detenção do poder e do saber. Não existia a preocupação com a aprendizagem do aluno. Nessa época, a rigidez era uma característica da boa educação. O professor podia usar e abusar de sua autoridade, aplicando castigos físicos e impingindo humilhações. A pedagogia empregada era a da opressão e da repressão. Entretanto, para melhor entendermos a construção da imagem desse professor, é importante contextualizarmos historicamente o conto. Toda a obra de Machado de Assis traz as marcas espaço-temporais bem explicitadas, portanto, elas implicam em uma leitura pontual ainda que trate de temas universais. O contexto do conto revela um momento conturbado da História do Brasil, em que ocorreram várias manifestações e revoltas populares ou militares, todas reprimidas pelas forças do governo. Surgiu o Clube da Maioridade, no qual os políticos apoiavam a antecipação da maioridade de D. Pedro II que estava com 14 anos. Em oposição, encontrava-se o Partido Conservador. Por fim, e com o apoio do Partido Liberal, a maioridade do Imperador foi assinada em 23 de julho de 1840. Voltemos ao conto. O narrador datou sua memória em maio de 1840. O ano era de 1840. Naquele dia uma segunda-feira, do mês de maio... (ASSIS, 2007: 326). Com certeza, um período em que os ânimos políticos estavam mais acirrados, e é nesse contexto que o professor Policarpo surge.

7 Afinal cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as ideias e as paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era grande a agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude averiguar esse ponto (Ibid. p. 328). O comportamento do professor em sala de aula ajuda a construir a sua imagem diante da coletividade. Enquanto os alunos faziam seus deveres, o mestre devorava os artigos dos jornais manifestando a sua opinião por meio de exclamações ou gestos. Uma hipótese gerada pelo próprio narrador é a de que a veemência empregada sobre os castigos pelo mestre poderia ser resultado de sua concordância ou não com os fatos políticos lidos no jornal. O pior que ele poderia ter, para nós, era a palmatória [...] Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a ponto de poupar-nos uma ou outra correção (Ibid. p. 328). Notadamente, a imagem desse professor é a de um mestre politizado e partidário. Entretanto, estava muito longe de aguçar o espírito crítico de seus alunos, uma vez que a sua própria autoridade era mantida por meio da opressão e repressão que acabavam gerando o medo e não o respeito. Ainda mais sério era o fato do professor poder pesar mais a mão se estivesse descontente com os rumos políticos que o Brasil tomava naquele período. Não se tratava de um professor consciente e crítico, que se preocupava em, imparcialmente, levar seus alunos a desenvolverem sua própria criticidade. Não tinha a visão integral de um educador. O Conto de Escola nos leva a pensar qual é a identidade do professor moderno e como a coletividade pode influenciar na construção de sua imagem. O professor Policarpo era um professor que não tinha compromisso com a aprendizagem. O seu comportamento em sala de

8 aula demonstrava uma superioridade mantida pelo autoritarismo e não pelo conhecimento. Posição bem diferente daquela almejada pelos profissionais conscientes de sua identidade. Que o conteúdo seja transmitido sim, mas com a marca do envolvimento do professor com a Educação como um todo e não com o simples dar aulas descompromissado e passivo, em total desvinculação com os objetivos mais genéricos da tarefa de educar (VASCONCELOS, 2009: 39). As lições mais importantes da vida de Pilar foram aprendidas no ambiente escolar, mas não nos conteúdos programáticos. Conto de Escola é um conto de formação da personalidade da personagem Pilar. A primeira lição é a aprendizagem pela corrupção e a segunda pela delação, E, contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação (ASSIS, 2007: 333). Embora a escola de hoje não tenha as mesmas características físicas e sociais da escola do conto de Machado, ela ainda está muito longe em considerar a subjetividade do aluno e do professor, assim como privilegiar a aprendizagem. O Policarpo do século XIX sobrevive ainda nos dias atuais em muitas instituições de ensino. A matéria lecionada no conto tratavase de leitura e gramática. Começou a lição de escrita (2007:327). Contudo percebe-se que somente os aspectos cognitivos e instrumentais eram considerados. Até os dias atuais, pais e professores fazem uso da leitura como um instrumento para se ter acesso à cultura, dispensando o lado prazeroso e enriquecedor que existe em si mesmo. E quando o prazer é colocado de lado, o que sobra é a obrigação. A mesma obrigação que fazia Pilar frequentar as aulas, mesmo não tendo dificuldades na aprendizagem. A escola não seduzia Pilar. E hoje, a escola seduz seus alunos?

9 Referências Bibliográficas ASSIS, Machado de. Conto de Escola. In: GLEDSON, John (Sel.). 50 Contos de Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 326-333. BÉRGAMO, Monica. Machado na França. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq3005200810.htm. Acesso em 15 mai. 2012. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador D.Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. VASCONCELOS, Maria Lucia M. C. A formação do professor do ensino superior. Niterói: Intertexto; São Paulo: Xamã, 2009.