UNIVERSIDADE FUMEC FCH CURSO: PUBLICIDADE E PROPAGANDA DISCIPLINA: ANÁLISE DA IMAGEM PROFESSOR: RODRIGO FONSECA E RODRIGUES CADERNO DE ESTUDOS



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Transcrição:

1 UNIVERSIDADE FUMEC FCH CURSO: PUBLICIDADE E PROPAGANDA DISCIPLINA: ANÁLISE DA IMAGEM PROFESSOR: RODRIGO FONSECA E RODRIGUES CADERNO DE ESTUDOS SUMÁRIO Introdução...02 1- Os conceitos filosóficos de imagem...02 1.1 Alguns conceitos sobre sensação, percepção, memória e consciência...06 1.2 - A Imagem do Pensamento...07 2 Resumo da Semiótica peirceana...09 2.1 O que é signo?...10 2.2 - Primeiridade, Secundidade, Terceiridade...11 3 Vida e morte da imagem...14 3.1 As três idades do olhar...15 3.2 Os paradoxos da videosfera: o arcaísmo pós-moderno...16 4 A imagem digital...18 4.1 A realidade virtual...19 4.2 - A imagem do sujeito nos ambientes cibernéticos...21 Referências...26

2 Introdução De dois séculos para cá (pós-revolução industrial), as invenções de máquinas capazes de produzir, armazenar e difundir linguagens (a fotografia, o cinema, os meios de impressão gráfica, o rádio, a TV, as fitas magnéticas etc.) povoaram nosso cotidiano com mensagens e informações que nos espreitam e nos esperam. Para termos uma ideia das transmutações que estão se operando no mundo da linguagem, basta lembrar que, ao simples apertar de botões, imagens, sons, palavras. E claro que no sistema social em que vivemos estamos fadados a apenas receber linguagens que não ajudamos a produzir, que somos bombardeados por mensagens que servem à inculcação de valores que se prestam ao jogo de interesses dos proprietários dos meios de produção de linguagem e não aos usuários. Considerando-se que todo fenômeno de cultura só funciona culturalmente porque é também um fenômeno de comunicação, e considerando-se que esses fenômenos só comunicam porque se estruturam como linguagem, pode-se concluir que todo e qualquer fato cultural, toda e qualquer atividade ou prática social constituem-se como práticas sígnificantes, isto é, práticas de produção de linguagem e de sentido. 1 - Os conceitos filosóficos de imagem Para o célebre filósofo escocês David Hume (1711-76), os homens são como uma coleção de diferentes percepções que se sucedem umas às outras com uma rapidez inconcebível, em perpétuo fluxo. Estes estados perceptivos passam, repassam, esvaemse, e se misturam, em uma infinidade de situações fluentes. No início do século XX, foi o filósofo francês Henri Bergson (1859-1941) quem impulsionou uma reviravolta na concepção da imagem. O autor concebe o termo "imagem" como uma palavra polissêmica. O autor repensa a própria imagem conceitual que se tem usualmente da sua noção: a imagem não pressupõe apenas aquilo que possui forma, contorno, volume, espaço, dimensão, cor, perspectiva. Dizia ele que, por meio de uma educação da memória, trabalhada ao longo da vida, aprendemos a criar cinematografias mentais pelas quais projetamos imagens que abstraímos como

3 representações internas, personalizadas. Essas imagens, no entanto, já chegam repletas de imagens previamente fixadas por nossos repertórios da lembrança (ou, em outros termos, o imaginário ). 1 Se por exemplo, eu olhar para um copo, há o pressuposto de que uma imagem deste copo se constitua em mim. O cego não veria este copo porque ele não tem uma imagem dele. Não importa se esta imagem é uma criação minha ou se ela é deste copo, no momento em que eu disser que ela veio deste copo existem duas coisas: a imagem que eu tenho e o copo que mandou a imagem. Eu também posso dizer que esta imagem não tem um copo real na frente, só a imagem. Mas isto não importa para mim, o que importa para a compreensão é que esta imagem emerge, enviada pelo copo, e que eu não teria esta imagem se fosse cego ou uma pedra. Eu agora vou dizer que a imagem tem uma existência psicológica, que ela está no meu psiquismo. E que o copo tem uma existência física, real e independente de mim; enquanto a imagem do copo depende inteiramente de mim. Teríamos um duplo tipo existencial: alguma coisa que existe por representação, que é a imagem no meu psiquismo, e alguma coisa que existiria independente de mim. Eu vou chamar a existência deste copo independente do meu psiquismo de existência ontológica. 2 Os objetos que eu apreendo são primeiro reais e depois imagens em mim. Alguém pode questionar isto, pois eu tenho a imagem do centauro sem que ele exista no real. Acontece que todas as imagens da minha subjetividade tem origem no real, enquanto que a subjetividade divina tem as imagens para depois originar o real - esta é a tese da teologia tradicional. Eu constituo uma imagem, por exemplo de uma árvore, depois de ver esta imagem no real, enquanto em Deus é o contrário, ele primeiro forma a imagem na subjetividade dele para depois aparecer a imagem no real. Esta é a diferença entre a subjetividade divina e subjetividade humana, pois nós os humanos conhecemos por experimentação - primeiro experimentamos as coisas para depois formamos as ideias delas - enquanto Deus primeiro tem as ideias e produz as coisas. 1 A imaginação é da ordem da phantasia. O termo phantasma refere-se à posse de imagens mentais, internas: phantom. Estes são significados diferentes das imagens como impressões, que são da ordem da graphè. 2 Ontológico quer dizer aquilo que existe independente da representação que eu faço dele, enquanto a imagem - que é a representação que eu faço em mim e tem uma existência dependente da minha subjetividade - é uma existência psicológica.

4 Tudo que existe está em processo, o que é fácil de ser entendido, pois quando você começou a leitura desta frase, era alguns segundos mais novo. Tudo que esta aqui não esta em repouso, tudo esta passando, tudo devindo, tudo mudando. Estão de acordo? Isto é de uma radicalidade excessiva, pois não há um só instante de repouso, não há nem mesmo o instante: o instante não passa de uma trapaça do relógio produzindo segundos, minutos e horas. Nós sabemos pela psicologia, que a apreensão que nós fazemos das coisas que estão diante de nós é feita pela percepção. Mas nós somos capazes de apreender também aquilo que não está mais presente mediante nossa memória. Eu me lembro de algo que aconteceu há uma hora atrás, e isto é uma prática da minha memória. Então eu apreendo pela memória aquilo que não está mais presente. Acontece que tudo que existe está em processo, então o ato de eu apreender alguma coisa é simultaneamente presente e passado, pois não há nada estático. Não há como fazer um corte na natureza como se existisse um instante presente e um instante passado; já que a natureza é um devir o que se apreende do mundo é simultaneamente presente e passado. O que acontece é que no ato de apreensão de qualquer coisa nós apreendemos as coisa pela percepção e pela memória. Ou seja, a mesma coisa é simultaneamente presente e passado. Ficou difícil? é porque é um paradoxo! Há uma prática chamada de dejá vu (voce chega em lugar e diz - eu já vi isto) que é justamente isto - a percepção e a memória estão simultaneamente vendo isto. Nós não somos um olho parado que apreende um instante do mundo, nós somos um movimento dentro de um movimento; é um processo que não há possibilidade de interrupção, o que é uma maldição para alguns. Isto é que é o presente, o que não pára de passar. Para Bergson, o presente é um devir, o que não pára de passar. Tudo se move, não há como deter o devir universal. Todos os que tentaram parar o mundo para compreendê-lo tiveram que criar um outro mundo. E pensar este mundo como passagem gera um paradoxo, pois eu tenho a memória de alguma coisa que eu nunca vi. A idéia de memória que nós temos é a reatualização da nossa percepção, enquanto que aqui ele está criando a memória de algo que nunca foi visto. A vida quando apareceu no planeta ela criou um instrumento para dar conta da matéria que ela tinha diante dela. Este instrumento é o instinto, que todos os animais teriam esta força instintiva, e com esta força os animais passavam a vida deles até permitia a

5 evolução da espécie. Num determinado instante o instinto se tornou insuficiente, e começou a aparecer na natureza a inteligência. A função da inteligência seria a mesma do instinto: dar conta da matéria. Diz Bergson: se a inteligência não aparecesse a vida estaria fadada a desaparecer, porque o instinto que durante muitos milênios servia à vida se tornou um obstáculo. A inteligência que serviu à vida como o instinto, também ela, se tornou um obstáculo. Aparece uma terceira instância que é a intuição, que seria um novo instrumento para dar conta da vida. É preciso então para pensar um esforço imenso, senão nós ficamos presos aos modelos da inteligência. Nós só temos uma ideia de memória, a reatualização da percepção - "para lembrar daqueles tempos bons". Ele está dizendo: não, a memória também tem uma prática ontológica, ela aprende alguma coisa não representada. Ela apreende alguma coisa fora da representação, porque a percepção apreende alguma coisa no mundo e a memória apreenderia alguma coisa na subjetividade. Primeiro a percepção apreende e transforma em imagem, a memória não recupera o acontecimento, recupera a imagem do acontecimento. O mundo, para Bergson, é um conjunto, um sistema de imagens e é em função delas que devemos colocar o problema da realidade. Há imagens da percepção e imagens internas. Nós conhecemos as imagens não apenas de fora, mediante as percepções, mas também interiormente, mediante as nossas imagens internas. O corpo captura vibrações que se tornam imagens ao serem processados pelo sistema sensório-motor e o cérebro. O nosso corpo é, por sua vez, como um participante de todo o mundo, no entanto, ele também não é mais que uma imagem. Ele se cria e atua como todas as demais imagens. O corpo transforma-se num lugar de passagem dos movimentos recebidos e devolvidos. Esta é uma idéia central bergsoniana, que ele nomeia como imagem-movimento. São imagens criadas pelo corpo a partir das sensações e estremecimentos que o afetam. Há, com efeito, infinitos movimentos, vibrações, intensidades, aos quais o corpo permanece absolutamente indiferente. Isso se dá porque o processo da percepção retém apenas o que interessa ao corpo. Ou seja, ele só retém certas longitudes de ondas e certas freqüências assimiláveis sensorialmente, sempre deixando escapar infinitas

6 vibrações do mundo. Entre isto e aquilo que a percepção destaca há insondáveis mudanças na realidade, movimentos que lhe escapam completamente. As imagens percebidas e as imagens lembradas agem e reagem umas às outras. A imagem continua-se nas que a seguem, assim como se prolonga naquelas que a precedem. As imagens anteriores costumam prolongar-se, gerando assim a imagem como um movimento percebido. Isto significa que, aos dados imediatos captados pelos nossos sentidos, nós misturamos milhares de detalhes de nossa experiência passada. Essa sobrevivência das imagens irá se misturar, constantemente, à nossa percepção do presente vivido e poderá, inclusive, substituí-la. A nossa percepção do mundo é, por isto, muito pouca coisa em comparação com tudo o que a nossa memória nele acrescenta. Não há, absolutamente, nenhuma percepção que já não esteja impregnada de lembranças. Esta "imagem-lembrança" insinua-se a tal ponto em nossas percepções que não mais podemos sequer discernir o que é realmente percepção e o que é lembrança. Toda percepção já é memória, ou melhor, a percepção nada mais é do que a estabilização de uma incalculável multiplicidade de rememorações. A memória e a percepção vão juntas construindo o movimento à nossa volta. É a memória que vai prolongar uma pluralidade de momentos, uns nos outros. 1.1 Alguns conceitos sobre sensação, percepção, memória e consciência A sensação surge de uma multiplicidade de outras impressões. É apenas uma impressão de certa espécie e, nessa medida, não é representação, mas apenas a qualidade material de uma representação. Não há impressão que não seja representação, predicado de alguma coisa determinada logicamente pelas impressões que a precedem. A própria sensação existencial do tempo é também um efeito de linguagem. Na medida em que representa algo, a sensação é determinada por cognições prévias. Essas cognições determinam que existirá uma sensação. Sempre há uma sensação em conseqüência de outras. Na percepção, onde uma coisa nos é dada como existente, há um juízo afirmando que a coisa existe, uma vez que o mero conceito não envolve a cognição. Ainda não temos

7 imagens, mesmo na percepção atual: a imagem daquilo que está diante de nós é uma construção da mente sugerida por sensações anteriores. E não há cognição ou representação em um estado mental, mas na relação entre os estados em instantes. Ver, por exemplo, é promover uma espécie de varredura semiósica do golpe de vista que passeia e trama suas impressões, espécie de vistoria, travelling que começou no passado para iluminar o presente. Se temos tal imagem ou quadro mental, devemos possuir na mente a representação de uma superfície que é apenas parte de cada uma das superfícies que virmos: é o olho educado. A atenção é a capacidade através da qual um pensamento se liga ao outro situado em ponto diferente do tempo: é um ato indutivo; um hábito que produz efeitos no sistema nervoso. E, de fato, a atenção afeta grandemente o pensamento subsequente; em primeiro lugar, afeta a memória; um pensamento é lembrado por mais tempo quanto maior a atenção lhe dedicada. Um ato só pode consistir na capacidade da cognição enfatizada possui para produzir um efeito na memória, ou por outro lado influenciar o pensamento subsequente. Quanto maior a atenção, maior a conexão e mais precisa a sequência lógica do pensamento. Toda a modificação da consciência - atenção, sensação e entendimento - é uma inferência: para atribuir alguma característica a um objeto é preciso compará-lo a outro. A todo momento dispomos de informação constituída por cognições logicamente derivadas por indução e hipótese de cognições anteriores. E toda associação processa-se por signos. Nada mais é do que inferência. Todo o conteúdo da consciência é um signo-resultante de inferência. Toda a modificação da consciência - atenção, sensação e entendimento é, por fim, uma inferência. 1.2 - A Imagem do Pensamento Pode parecer estranho de se dizer, mas o pensamento possui uma imagem. E é por tal imagem que nos orientamos em toda a atividade do pensar. O pensamento se desenvolve acompanhado da representação de imagens nascentes. Imaginemos um fenômeno, uma coisa, um raciocínio, uma ideia, um objeto: isso tudo não parece ter uma imagem, mas quantas imagens não podem nascer de uma palavra, de um conceito, de uma ideia, de uma articulação de elementos abstratos? Ao que nos parece, o

8 pensamento se construiu, ao longo da história, intimamente ligado à realidade das sensações que afetam o nosso corpo e aos signos que criamos para lhes dar alguma forma, estabilidade e sentido. Em um de seus primeiros textos, Michel Foucault (2002) apresenta uma ideia insólita a respeito da obscura gênese do pensamento: aprendemos a pensar porque desenvolvemos, desde os primórdios de nossa existência, uma aptidão mnemônica para nos lembrarmos de nossos sonhos! A explicação que ele nos dá é a seguinte: os sonhos possuem uma dinâmica plástica, em seu destino episódico e, principalmente, imaginativo. Isto quer dizer que a imaginação, ainda no sonho, é uma tarefa absolutamente criativa. Ao contrário, a percepção é meramente recognitiva. O sonho imagina, cria imagens, e a percepção, apenas as reconhece. Assim pensado, é ao sonho que todo ato de imaginação remete. O sonho não é somente uma modalidade da imaginação, ele é a sua condição primeira. Foucault afirma que foi no trabalho dinâmico da imaginação onírica, no caráter de seu movimento, engendrado pelo sonhar, que nasceu a nossa aptidão para conectarmos imagens numa progressão, com um certo ritmo distinto dos ritmos da percepção e da memória, quando estamos em vigília. Quando a consciência, no mundo já constituído pelas percepções, tenta reapreender esse movimento, ela o interpreta em termos de encadeamentos lineares de imagens que vão sendo injetadas de sentido. Concluindo, Foucault assinala: A frase (linguística) se oferece, de imediato, com um sentido trivial: os caminhos da percepção estariam fechados ao sonhador, isolado pelo desabrochar interior de suas imagens. ( FOUCAULT: 2002, p. 99 ) Há, contudo, um fato deveras intrigante, que envolve a nossa realidade vivida e que afeta toda a realidade do pensamento: o quanto a nossa linguagem é atravessada de todo um modo de ver. Essa relação simbiótica entre o olhar e a linguagem o ver e o dizer - condiciona a maioria dos nossos modos de imaginar, de lembrar, de sentir, de escutar, de criar e, naturalmente, de pensar etc. O ato de "ver mentalmente" enquanto se está pensando, tem sido uma espécie de vício que, no longo processo de construção do pensamento, toma o domínio do sentido da visão como o próprio paradigma do conhecimento, modelo este que sempre nos mantém nos limites e na inércia de um horizonte espacial e homogêneo. Em suma: o nosso saber ocidental consiste em entrelaçar o visível e o enunciável, entre o ver e o falar. Esta prática conforma-se persistentemente pela prevalência histórica do pensamento apoiado no trabalho espacializador da retina sobre a linguagem.

9 Toda precaução a este respeito deve-se simplesmente a uma necessidade que se tem de começar concebendo a ocasião do pensar não a partir de associações óptico-lingüísticas, nesse mútuo condicionamento que liga a gênese da linguagem ao horizonte da visão. É preciso igualmente evitar nos orientarmos no pensamento pautando-nos sob hábitos de espacializar o mundo e de tomar o tempo como um conjunto de dramas visuais narrativizados. A formação linguística do nosso pensamento tem sido igualmente vinculada ao processo de geração de imagens mentais episódicas. Há sim essa persistente tendência que parece imperar nas orientações do ato de pensar. 3 2 Resumo da Semiótica peirceana Estamos no mundo, mas o nosso contato sensível com ele é mediado por um véu semiótico que, embora nos forneça o meio de compreendê-lo, transformá-lo, programá-lo, ao mesmo tempo usurpa de nós uma existência direta, imediata, virgem, palpável, corpo-a-corpo e sensual com o real concreto e sensível. As coisas, quando nos aparecem, já surgem numa miríade de formas, enoveladas numa multiplicação de sensações, além de se enredarem às malhas das nossas interpretações. Nos comunicamos e nos orientamos através de imagens, gráficos, sinais, setas, números, luzes, objetos, sons, gestos, expressões, cheiro e tato, olhares, do sentir e do apalpar. Há outras formas de codificação escrita, diferentes da linguagem alfabeticamente articulada, tais como hieróglifos, pictogramas, ideogramas, formas estas que se limitam com o desenho. Há linguagem dos ruídos, dos sinais de energia vital emitidos pelo corpo e, até mesmo, a linguagem do silêncio. 3 No que diz respeito às questões metafilosóficas que Gilles Deleuze e F. Guattari (1997) nos propõem, uma das primeiras às quais eles se dedicam é a de se pensar os modos pelos quais o pensamento pensa. Para os dois autores, o pensamento ocidental deveria se investir de poderes libertários para despir-se de suas imagens abstratas, encorajando a proposta de um pensamento destituído dessas imagens. Para tanto, eles priorizam a questão dos ritmos de forças não formadas que fazem o pensamento viver e se criar. Os autores adotam a defesa de um pensamento que esteja em imediata correlação com potências e ritmos para aquém de qualquer semiose. O pensamento criativo, problematizador, começa pela recusa do pensar como mero exercício da recognição. Pensar é criar, porque é um gesto que faz nascer um problema que ainda não existe e que nos dá o que pensar -, de apresentar uma imagem conceitual singular, ao invés de simplesmente representar o que já está dado. As questões acerca das condições sob as quais o pensamento pode se exercer, devem, contudo, ser problematizadas, saltando, muitas vezes, por entre as fronteiras que separam o pensamento do ainda não pensado e o imaginário da imaginação.

10 A proliferação histórica crescente das linguagens e códigos, dos meios de reprodução e difusão de informações vieram gradativamente fazendo emergir uma "consciência semiótica". Não foi senão essa consciência de linguagem em sentido amplo que gerou a necessidade do aparecimento de uma ciência capaz de criar dispositivos de indagação aptos a desvendar o universo multiforme dos fenômenos de linguagem. E a semiótica cuida de estudar os processos de produção de sentido: o corpo e seus signos, a comunicação interpessoal e entre máquinas, os meios de comunicação de massa e as tecnologias interativas, tais como a internet, são o foco dos estudos semióticos mais avançados. I O que é o signo? O signo é uma coisa que representa uma outra coisa: seu objeto. Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de representar, substituir uma outra coisa diferente dele. Portanto, ele só pode representar esse objeto de um certo modo e numa certa capacidade. Ora, o signo só pode representar seu objeto para um intérprete, e porque representa seu objeto, produz na mente desse intérprete alguma outra coisa (um signo ou quase-signo) que também está relacionada ao objeto não diretamente, mas pela mediação do signo. Para o pensamento semiótico de Peirce, um signo não tem necessariamente de ser uma representação mental, mas pode ser uma ação ou experiência, ou mesmo uma mera qualidade de impressão. A noção de interpretante é, para Peirce, um processo relacionai que se cria na mente do intérprete. A partir da relação de representação que o signo mantém com seu objeto, produz-se na mente interpretadora um outro signo que traduz o significado do primeiro (é o interpretante do primeiro). Portanto, o significado de um signo é outro signo seja este uma imagem mental ou palpável, uma ação ou mera reação gestual, uma palavra ou um mero sentimento, uma idéia. Há signos que são interpretáveis na forma de qualidades de sentimento; há outros que são interpretáveis através de experiência concreta ou ação; outros são passíveis de interpretação através de pensamentos numa série infinita. Daí decorre o interpretante dinâmico, isto é, aquilo que o signo produz na sua, na minha

11 mente, em cada mente singular. E isso ele produzirá dependendo da sua natureza de signo e do seu potencial como signo. Os signos podem ser, segundo a semiótica peirceana, icônicos: qualidades que não representam nada, apenas se apresentam. Ora, se não representa, o ícone é um quasesigno. Uma pintura não figurativa, por exemplo, desconsiderando o fato de que é um quadro que está lá, o que já faria dela um existente singular e não uma pura qualidade, mas considerando-a apenas no seu caráter qualitativo (cores, luminosidade, volumes, textura, formas) é um ícone. O objeto do ícone, portanto, é sempre uma simples possibilidade, isto é, possibilidade do efeito de impressão que ele está apto a produzir ao excitar nosso sentido. O índice, por sua vez, é sempre dual: a ligação de uma coisa com outra. O índice representa ou evoca, tem relação direta com o objeto que assinala, por contiguidade. Quando, em si mesmo, o signo é de lei, por convenção ou pacto coletivo e determina que aquele signo represente seu objeto, é um símbolo. As palavras são exemplos destes signos gerais. Desse modo, o objeto de uma palavra é uma ideia abstrata. O símbolo é um signo que representa o objeto de maneira arbitrária e intuitiva, ou evoca um conceito. Símbolos, entretanto, trazem embutidos em si caracteres icônicos e indicais. O que seria de uma frase, por exemplo, sem a ordem das palavras e o padrão de sua estrutura, justamente seu caráter icônico e indicial que nos leva a compreendêla? 4 2. 1 - Primeiridade, secundidade, terceiridade A primeiridade refere-se ao campo do sensível; o modo de ser daquilo tal como é, sem referência a qualquer outra coisa; o modo mais imediato do sentir; presentidade imediata; pregnância que a consciência transforma em qualidade. A secundidade é ação e reação em binaridade pura, sem o governo da camada mediadora da intencionalidade, razão ou lei. A terceiridade é a camada de inteligibilidade ou pensamento em signos, através dos quais representamos e interpretamos o mundo. SEKEFF 4 Há ainda o qualissigno, que é uma qualidade sensível considerada como signo ou veículo (uma cor, um som); o sin-signo é um objeto ou evento (organograma, desenho) e o legi-signo, que é uma norma.

12 A primeiridade é uma consciência imediata. Nenhuma outra coisa senão pura qualidade de ser e de sentir. Tudo que está imediatamente presente à consciência de alguém é tudo aquilo que está na sua mente no instante presente. Nossa vida inteira está no presente. Mas, quando perguntamos sobre o que está lá, nossa pergunta vem sempre muito tarde. O presente já se foi, e o que permanece dele já está grandemente transformado, visto que então nos encontramos em outro presente, e se pararmos, outra vez, para pensar nele, ele também já terá voado, evanescido e se transmutado num outro presente. O sentimento como qualidade é, portanto, aquilo que dá sabor, tom, matiz à nossa consciência imediata, mas é também paradoxalmente justo aquilo que se oculta ao nosso pensamento, porque para pensar precisamos nos deslocar no tempo, deslocamento que nos coloca fora do sentimento mesmo que tentamos capturar. A qualidade da consciência, na sua imediaticidade. A primeiridade é presente e imediata, de modo a não ser segundo para uma representação. Ele é fresco e novo, porque, se velho, já é um segundo em relação ao estado anterior. Ele é iniciante, original, espontâneo e livre, porque senão seria um segundo em relação a uma causa. Ele precede toda síntese e toda diferenciação; ele não tem nenhuma unidade nem partes. Ele não pode ser articuladamente pensado; afirme-o e ele já perdeu toda sua inocência característica, porque afirmações sempre implicam a negação de uma outra coisa. Pare para pensar nele e ele já voou. O que é o mundo para uma criança em idade tenra, antes que ela tenha estabelecido quaisquer distinções, ou se tornado consciente de sua própria existência? Isso é primeiro, presente, imediato, fresco, novo, iniciante, original, espontâneo, livre, vivido e evanescente. Qualidades de sentimento estão, a cada instante, lá, mesmo que imperceptíveis. Essas qualidades não são nem pensamentos articulados, nem sensações, mas partes constituintes da sensação e do pensamento, ou de qualquer coisa que esteja imediatamente presente em nossa consciência. Há instantes fugazes, entretanto, e nossa vida está prenhe da possibilidade desses instantes, em que a qualidade de sentir assoma como um lampejo, e é como se nossa consciência e o universo inteiro não fossem, naquele lapso de instante, senão uma pura qualidade de sentir. Primeiridade é a qualidade de sentimento só pode se dar no instante mesmo de uma impressão não analisável e incapturável, ou seja, num simples átimo, esse momento de impressão.

13 Levantemos, por exemplo, algumas instâncias de qualidades de sentir ao imaginarmos um estado mental caracterizado por uma simples qualidade: o sabor do vinho, a qualidade de sentir amor, perfume de rosas, uma dor de cabeça infinita que não nos permite pensar nada, sentir nada, a não ser a qualidade da dor. Um instante eterno, sem partes, indiscernível de prazer intenso ou a sutil qualidade de sentir quando vamos gentilmente acordando, dóceis, ao som de uma música. Qualidade de sentir é o modo mais imediato, mas já imperceptivelmente medializado de nosso estar no mundo, nossa primeira forma rudimentar, vaga, imprecisa e indeterminada de predicação das coisas. Esse estado-quase, aquilo que é ainda possibilidade de ser, deslancha irremediavelmente para o que já é. Entramos no universo do segundo. Há um mundo real, reativo, um mundo sensual, independente do pensamento e, no entanto, pensável, que se caracteriza pela secundidade. Esta é a categoria que a aspereza e o revirar da vida tornam mais familiarmente proeminente. É a arena da existência cotidiana. Estamos continuamente esbarrando em fatos que nos são externos, tropeçando em obstáculos, coisas reais, factivas que não cedem ao mero sabor de nossas fantasias. Enfim: "a pedra no meio do caminho" de que nos fala Carlos Drummond de Andrade. O simples fato de estarmos vivos, existindo, significa, a todo momento, consciência reagindo em relação ao mundo. Existir e sentir a ação de fatos externos resistindo à nossa vontade. Existir ó estar numa relação, tomar um lugar na infinita miríade das determinações do universo, resistir e reagir, ocupar um tempo e espaço particulares, confrontar-se com outros corpos. Sintetizando: três elementos constituem todas as experiências. Eles são as categorias universais do pensamento e da natureza. Primeiridade é a categoria que dá à experiência sua qualidade distintiva, seu frescor, originalidade irrepetível e liberdade. Não a liberdade em relação a uma determinação física, pois que isso seria uma proposição metafísica, mas liberdade em relação a qualquer elemento segundo. O azul de um certo céu, sem o céu, a mera e simples qualidade do azul, que poderia também estar nos seus olhos, só o azul, é aquilo que é tal qual é, independente de qualquer outra coisa. Mas, ao mesmo tempo, primeiridade é um componente do segundo. Secundidade é aquilo que dá à experiência seu caráter factual, de luta e confronto. Ação e reação ainda em nível de binariedade pura, sem o governo da camada mediadora da intencionalidade, razão ou lei. A terceiridade, que aproxima um primeiro e um segundo numa síntese intelectual,

14 corresponde à camada de inteligibilidade, ou pensamento em signos, através da qual representamos e interpretamos o mundo. Por exemplo: o azul, simples e positivo azul, é um primeiro. O céu, como lugar e tempo, aqui e agora, onde se encarna o azul, é um segundo. A síntese intelectual, elaboração cognitiva o azul no céu, ou o azul do céu, é um terceiro. 3 Vida e morte da imagem Para se estudar o universo de imagens percebidas, lembradas ou inventadas - que compõe a nossa vida subjetiva e social, é preciso antes contar com os códigos invisíveis que constroem o mundo visível e que, muitas vezes, são posturas de crença visual. Uma imagem nunca extrai o seu poder de si mesma, mas da comunidade de que é símbolo. E o impacto de uma imagem ou a intensidade com a qual ela nos afeta variam com o tempo. O que as imagens exercem sobre nós varia com o campo de gravitação em que se inscreve nosso olho coletivo, esse inconsciente compartilhado que modifica suas projeções de acordo com nossas técnicas de representação. Nosso olho tornou-se, na atualidade, um tanto agnóstico, está saturado. A dinâmica do olhar não é mais a mesma. Terá perdido o mistério a força ativa da imagem? Para uma compreensão do problema é importante, primeiramente, distinguir a imagem recebida da imagem fabricada, porque uma condição sine qua non para que haja imagem é a alteridade. Apoiados na semiótica peirceana, podemos afirmar que o ícone é todo signo que se parece a coisa sem ser a coisa; motivado por uma identidade de proporção ou forma. O índice é um fragmento de um objeto ou algo contíguo a ele, parte de um todo tomado pelo todo. O símbolo, por sua vez não tem relação analógica com o objeto, mas é simplesmente convencional; arbitrário. O símbolo se decifra com ajuda de um código. Por conseguinte, a imagem-ícone inspira o prazer, tem um valor artístico; a imagemíndice fascina, tem valor mágico; e a imagem-símbolo requer certa distância, tem um valor sociológico, como marcador de pertencimento.

15 3.1 As três idades do olhar Como compreender a atualidade dos meios audiovisuais sem retroceder ao menos doze séculos? Somos historicamente cercados de mitos, mas também dotados de utensílios, e nossa cultura é uma transação negociada entre nossa herança mitológica e nosso meio técnico. Como o sujeito cognitivo em si mesmo, o sujeito crente é também um sujeito técnico, porque antes de tudo é um homem imaginário, só que com um imaginário cada vez mais equipado. Distinguem-se na história humana três mediasferas da imagem: a escritura, a imprensa e a audiovisual. A primeira, chamada de logosfera, vem do tempo dos ídolos, da escrita até à imprensa. A grafosfera corresponde à era da imprensa até á TV em cores. E a videosfera é esta era presente, da hegemonia do audiovisual tecnológico. Nestes termos históricos, ocorreu uma ampliação dos espaços de circulação da imagem: o ídolo é autóctone; a arte é ocidental e o visual midiático é mundial, ou seja, concebido desde a fabricação para uma difusão planetária. O ídolo apela ao temor; a arte ao amor; o visual ao interesse. E cada era é uma hierarquização dos prestígios do fabricante de imagens; carismas diferentes que vêm do alto (piedade), de dentro (genialidade) ou de fora ( publicidade ). Em cada estágio há um tipo de organização profissional: para os imaginários, a corporação; para os artistas, a academia; para o publicitário, a rede. O primeiro tipo se manifesta pelo objeto religioso, de crença, de culto; o segundo, pela autonomia em relação à religião, como uma questão de juízo de gosto ou de deleite; e o terceiro tipo corresponde à esfera econômica, que decide por si só o valor, sua distribuição e a questão da capacidade de compra, como um objeto de embelezamento ou distração. A valorização dos efeitos tecnológicos na modernidade transtornou o nosso regime de visão, modificando todo modo de percepção do espaço e do tempo: as fantasmagorias de Robertson, o diorama de Daguerre (1822), a primeira exposição de fotografia, em Paris (1959), a primeira projeção de cinema (1895), a primeira película sonora (1928), o technicolor (1937), a televisão e o Eastmantcolor (filme negativo em cor) em 1951. Nos anos 70, populariza-se a TV em cores (1968). A videosfera se iniciou com esta invenção. Da fotografia (celuloide) ao cinema (película química), da televisão (tubo

16 catódico) ao vídeo (fita magnética) e ao computador (algoritmos numéricos) transcorreu-se um século e meio. Atualmente, a logística do visível passou a governar a lógica do vivido. Há uma constante vitória da linguagem sobre as coisas e do cérebro sobre o olho. Com as novas máquinas de visão, entramos na videosfera: os satélites de difusão e a onipresença hertziana, os microprocessadores, a circulação das imagens no mercado, a superprodução de espetáculos são patentes nesta era contemporânea da imagem. Podemos denominar a lógica das imagens da publicidade, do marketing, do design e do jornalismo num darwinismo midiático, no qual as melhores formas se eliminam umas às outras, selecionados pela mediasfera em virtude da sobrevivência do mais apto a fomentar o consumo. As novas imagens apresentadas nos efeitos especiais, as apresentações televisadas, de games, cinema digital, realidade aumentada, touch screen oferecem assombrosas possibilidades funcionais, lúdicas e fantásticas. Será um novo período barroco no horizonte? 5 Cada uma destas três idades da imagem tem o seu tipo de arte. E a arte, nos últimos anos, mudou de signo: de messiânica passa a ser mediática. A arte tecnologicamente mediada ganhou uma dinâmica cuja chave está nas mãos dos engenheiros, e não dos artistas; a imagem fotográfica foi superada pela imagem eletrônica. Movimento de hibridação do objeto de arte continua primando o produto sobre a obra e através de uma cooperação acentuada entre industriais, engenheiros, investigadores, artistas. A produção industrial se une por meio do computador à criação artística visual, com a infografia, a paleta infográfica. 3.2 Os paradoxos da videosfera: arcaísmos pós-modernos Corremos, no entanto, um perigo do retorno contemporâneo ao neoprimitivismo, o simples contato entre pessoas, mas sem um caráter de comunidade. O atual fetichismo 5 No período barroco o poder central da nobreza difunde recursos de imagens na persuasão ideológica: grandes monumentos, palácios, arcos, espetáculos pirotécnicos, templos, esculturas, pinturas, decorações etc.

17 da imagem tem pontos comuns com a era dos ídolos. Este é um paradoxo: a sociedade eletrônica se aproxima da sociedade primitiva. A ubiqüidade eletrônica reencanta o visível, ao suprimir as distâncias e as demoras. A história da imagem no Ocidente partiu dos ídolos (religiosos) e chegou a outros ídolos (midiáticos). Demasiadas imagens matam a imagem, numa inflação icônica. Álbuns, revistas rótulos e telas nos bombardeiam com incitações visuais, até borrar as diferenças entre obras e produtos, todos perdem intensidade. Na abundância do suporte há uma inflação vertiginosa de imagens disponíveis e um risco de desvalorização ( influência e afluência estão em razão inversa ). Com a sua onipresença, as imagens midiáticas do mundo transformam o mundo numa imagem, esse mundo será auto-suficiente. O descenso do valor das imagens está ritmado pela publicidade. Será que hoje tudo se converteu em arte (embalagem, animação, desfile de carnaval, grafismo, desenho, fotocópia, perfumaria, cozinha etc) e todos são artistas? Atualmente, uma imagem viaja muito melhor que um texto, contudo, ela já vem asseptizada, neutralizada, estetizada, em boas condições para a vitrine ou a tela. É saudável que os meios de comunicação controlem os atos do governo, mas quem controlará os controladores, se entre os quatro poderes da democracia mediática o poder mediático é o único que não admite contra-poder? A sociedade cínica e fluida se corresponde com a fluidez cínica das imagens da televisão. Num mundo integralmente mediatizado, as mediações não podem senão mediatizar-se também. Surge uma e enfermidade em nosso tempo: o narcisismo, com seu irmão pequeno, o voyerismo. Os mass media cada vez nos falam mais de si mesmos. O iconófobo e o iconófilo estão condenados então a viver, juntos, num mesmo indivíduo. A televisão certamente abriu corações e espíritos para tantos sofrimentos como as opressões outrora invisíveis, mas levou os telespectadores do arroubo ao fastio. A multiplicação da estranheza precipita um desgaste pela saturação dos olhares e a indiferença. Demasiadas novidades trivializam o novo. Anulação agradável das tensões psíquicas - e morais - dos telespectadores ou dos jogadores de videogame, assim subtraídos aos incômodos da luta de consciência. Ao trivializar o extraordinário e sublimar o trivial, ao eufemizar catástrofes e atrocidades. A miniaturização pelas

18 imagens fazem aceitáveis atrocidades que não haveríamos suportado, em tamanho natural. 6 A industrialização da imagem e do som confere aos países desenvolvidos o monopólio das representações culturais da humanidade. Nosso planeta mediático é uma determinada relação norte-sul, mediatizada por satélites, câmaras e laboratórios que estão no norte, o qual tem a exclusiva dos direitos de rodagem, montagem, produção e difusão. Resumindo: o hemisfério sul é captado nas redes do norte. Há algo mais agradável para o Norte do que ver, com suas lentes, o Sul do planeta? A percepção do século tem lugar, portanto, acima do equador, pois são os países do Norte que possuem os satélites de difusão, repetidores, cabos e câmaras. Se a imagem midiática é instrumento de sensibilização a respeito das desigualdades mundiais, é também a expressão mais sensível dessas mesmas desigualdades, entre os contempladores do sul e os do norte. O controle televisivo, por conseguinte, reduz antes as possibilidades do pluralismo, atuando mais como um fator de alienação e não de expansão das minorias. 4 - A imagem digital Desde as conquistas tecnológicas televisivas e do vídeo que o tempo eletrônico da imagem vem se sincronizando ao tempo do real das percepções. Com o advento da imagem infográfica, porém, o próprio estatuto da realidade sofreu radical transformação. Antes da imagem digital, cabia às máquinas de imagem anteriores (pintura, escultura, gravura, fotografia, cinema, vídeo) reproduzirem um real, de si para si, exterior e prévio. Nessa realidade, a imagem informática ou imagem de síntese é menos imagem que uma abstração, um produto de cálculo, de um programa que a 6 Vivemos numa sociedade do paroxismo, de se levar todas as experiências ao extremo, na busca interminável do prazer jamais atingido. A sociedade da pulsação televisiva nos narcotiza, nos torna desinteressados e desgasta nossas sensações de prazer e dor por força do excesso, do exagero, da overdose de imagens, de violência, de informação, de tecnologia, de pornografia, de tudo. Com isso, ela nos torna indiferentes a tudo, insensíveis aos traumas e apela para o hiperviolento, para o hiperradical para ainda conseguir provocar algum efeito. O resultado é um viciamento em último grau a ponto de só sentirmos prazer, dor, alegria em alto êxtase, em alta excitação. O resto é sem graça, monótono, indigno dessa televisão. Essa dinâmica alimenta uma contínua busca de preenchimento do horror ao vazio, doença cultural deste fim de século.

19 concebe, e não mais como ela sempre foi representada em superfícies pictóricas ou químicas, projetada sobre a tela ou transmitida em tubos catódicos. A performance informática de simulação audiovisual se fundamenta em algoritmos processados em velocidades sobre-humanas, cada vez mais convincentes à nossa lenta percepção. O simulacro virtual é uma invenção tecnológica poderosa sobre nossa sensibilidade, que produz, em filigranas, uma realidade perceptiva de fluxos binários ultravelozes. A imagem informatizada faz-se imaterialmente, por meio de informação quantificada, algorítmica, como matriz de número modificável a vontade e ao infinito por uma operação de cálculo. É sempre um modelo lógico-matemático provisionalmente estabilizado.tal simulação possui, por um vertiginoso coeficiente de velocidades, eficácia total para iludir os sentidos, para além da perfeição. Assim, nossos ritmos de memória e de expectativas vão sendo sutilmente pré-orientados. A imagem infográfica já não tem porque seguir imitando uma realidade exterior. O paradoxo é que, neste processo, imagem e realidade tornam-se indiscerníveis, as imagens sintéticas são imagens sem objeto. As imagens digitais não estão presentes em parte alguma, em ato. Não existem como imagens na memória do computador. Em determinado instante de sua existência, elas aparecem na tela ou em sua retina, sendo criadas no momento em que são chamadas. Com as imagens numéricas, o espírito humano se libertou da mão, o corpo inteiro se fez cálculo, as cores, liberadas dos pigmentos, podem variar à vontade, até o infinito. Numeração binária que afeta a imagem, o som e o texto agrupam-se sob um computador o engenheiro, o investigador, o escritor, o técnico e o artista. 4.1 A realidade virtual Há uma antiga noção que, se pensada com a devida cautela, poderá nos ajudar na compreensão de certas implicações sociais e criativas dos usos da internet e de softwares, tais como videogames e simuladores: esta será a idéia de "virtual". Os insistentes jargões dos porta-vozes publicitários da indústria da digitalização não cessam de se desdobrar em rótulos, revestidos de uma sonoridade sedutora, tais como: mercado virtual, banco virtual, loja virtual, amizade virtual etc. Mas a razão primeira do equívoco no uso do termo virtual, parece ter começado quando a multimídia o reivindicou, para seus fins mercadológicos. Criou-se, em torno da palavra,

20 uma atmosfera imagética cintilante ou uma eufonia retórica, de uma realidade midiática, cada vez mais conveniente às demandas do controle tecnocrático digital. Realidade virtual se tornou assim uma palavra de ordem para o consumidor dos produtos informáticos mas, freqüentemente, empregada a contra-senso. No que diz respeito às questões da "realidade virtual", o fato é que se criou, nestas últimas décadas, pela performance tecnológica de velocidades sobre-humanas de fluxos digitalizados e de multilinearidades, um espaço simulacral de "mediação imediata". O próprio desktop em nossa tela ou os videogames hiperrealistas são alguns dos exemplos mais triviais da sofisticadíssima produção técnica de universos imaginários simulados, cada vez mais convincentes à nossa percepção. Tal simulação possui, por um vertiginoso coeficiente de velocidades, uma eficácia total para iludir, para além da perfeição, os nossos sentidos corporais. Não é por acaso que tudo se joga, em investimentos econômicos, na tentativa de povoar esse novo espaço que, na expressão de Bragança de Miranda (1996), é o ambiente propício às tecnologias de "controle do imaginário". Ora, um sistema penetrante e sutilmente opressivo de controle pode imprimir ritmos constrangedores sobre os nossos corpos e sobre a nossa imaginação, podendo também reordenar os dinamismos do nosso modus vivendi. A interferência programada dessa dimensão vital que concerne à nossa maneira de perceber, de agir, de sentir, aos nossos regimes de signos habituais, constrói um perfil compósito das necessidades de consumo tecnológico e informacional, nem sempre afinadas com as nossas aspirações íntimas. Miranda também apontou corretamente, a emergência de um sintoma ligado aos usos coletivizados das máquinas virtuais. Dá-se, para ele, uma espécie de "alucinação consensual" que envolve milhões e milhões de usuários. Afinal, como argumenta Bragança, os estados em que perceber, ver imagens ou escutar sons que podem não existir em nossa realidade "natural", material, não seria o que chamamos de alucinações? É esse o ambiente que o chamado de "mundo comunicacional e informático", ostensivamente mapeado e reproduzido como um único logos, nos recobre. Obstinadamente realimentados pelas sobrecodificações hegemônicas, ainda mais agudas na internet, corremos um perigo de sucumbirmos, em nossa apreensão da realidade, a