A CRISE DA CALIFÓRNIA E OS NOVOS RUMOS DA REFORMA DO SETOR ELÉTRICO AMERICANO



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Transcrição:

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ECONOMIA MONOGRAFIA DE BACHARELADO A CRISE DA CALIFÓRNIA E OS NOVOS RUMOS DA REFORMA DO SETOR ELÉTRICO AMERICANO VICTOR COHEN ULLER Matrícula nº: 102043681 ORIENTADOR: Prof. Ronaldo Goulart Bicalho DEZEMBRO 2005

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ECONOMIA MONOGRAFIA DE BACHARELADO A CRISE DA CALIFÓRNIA E OS NOVOS RUMOS DA REFORMA DO SETOR ELÉTRICO AMERICANO VICTOR COHEN ULLER Matrícula nº: 102043681 ORIENTADOR: Prof. Ronaldo Goulart Bicalho DEZEMBRO 2005 2

As opiniões expressas neste trabalho são de exclusiva responsabilidade do autor.

"Não sou nada, não tenho nada. Tão inseparável do mundo quanto à luz e, no entanto, exilado, como a luz, deslizando à superfície das pedras e das águas, sem que nada, jamais, me prenda ou faça encalhar. Fora. Fora. Fora do mundo, fora do passado, fora de mim mesmo: a liberdade é o exílio e estou condenado a ser livre. Jean-Paul Sartre 4

AGRADECIMENTOS Agradeço a meus pais pelo incentivo e exemplo dados em todo os anos de faculdade, alguns com enormes reticências minhas, outros com a mais real certeza. A meus amigos únicos, Laura Carvalho, João Paulo Braga, Luiz Octávio Casarin e Rômulo Ely, externalidades positivas destes quatro anos e porvindouros. A todos os professores e funcionários do Instituto de Economia da UFRJ, pela excelente formação e experiência de vida proporcionados, os quais me guiarão daqui por diante. A todos os professores do Grupo de Economia da Energia, pela seriedade de seus trabalhos no ensino e na pesquisa. Um especial agradecimento às secretárias do grupo, Daisy e Joseane, por todos os problemas resolvidos com tremenda agilidade e descontração. A meu orientador, Ronaldo Bicalho, pela excêntrica, mas não obstante, sólida orientação à base de cafezinhos, tornando este trabalho menos doloroso. Igualmente, por seus conselhos ponderados, de extrema importância a mim. E, finalmente, à Agência Nacional do Petróleo, pela singular experiência proporcionada a mim e a muitos outros bolsistas através de seu Programa de Formação de Recursos Humanos (PRH - 21). Com tal apoio, adquiri formação específica na área de Economia da Energia, essencial para meu futuro e desenvolvimento profissional. 5

RESUMO Certamente a crise do desenho regulatório californiano é um dos temas mais polêmicos da literatura que abrange energia e economia das instituições. Isto se justifica pelo pioneirismo do estado da Califórnia na desregulamentação dos mercados elétricos, nos Estados Unidos, iniciada pelo impulso federal dado pela Lei PURPA, em 1979. Muito do que se debatia até o ano 2000 foi resultado das experiências nas reformas dos setores elétricos mundiais, como o britânico e o norueguês, que percorreram o mundo como padrões a serem seguidos pelos governos liberais. Assim, uma vasta literatura criada neste movimento acabou por influenciar praticamente todos os Estados Nacionais reformistas, inclusive os estados americanos. No embasamento liberal, os monopólios elétricos institucionalizados deveriam ser desmantelados para dar lugar à competição, com o apoio da regulação por incentivo. Desta forma, o viés econômico-ideológico na literatura econômica teria seu teste final ao final dos anos noventa, quando a implementação do mercado elétrico competitivo passava para a prática nos Estados Unidos. Entretanto, no mais liberalizado (e ousado) dos mercados sugeridos, o novo sistema elétrico da Califórnia, especialistas, políticos, utilities e consumidores se deparam com o pior dos mundos: total descontrole de preços, jogos de retenção de capacidade e distribuidoras centenárias em estágio de insolvência. O presente trabalho analisa as questões que determinaram a reestruturação do sistema elétrico americano, com ênfase no que se observou para o estado da Califórnia (1996). O principal foco é calcado em questões econômicas e institucionais, sem por de lado as tecnicidades do setor, no que se refere a suas implicações para o mercado em si. Igualmente, são elementos de análise desta monografia as questões relacionadas à avaliação das causas e implicações da crise do setor elétrico californiano (2000/2001), segundo diversos especialistas, além da conseqüente retomada do poder estatal em sua reorganização: a re-regulamentação. 6

SÍMBOLOS, ABREVIATURAS, SIGLAS E CONVENÇÕES AB1890 Assembly Bill 1890 AIE Agence Internationale de l Energie BANANA Build Absolutely Nothing Anywhere Near Anyone CALISO California Independent System Operator CALPX California Power Exchange CEC California Energy Comission CDWR California Departament of Water Resources CPUC California Public Utilities Comission CTC Competition Transition Charges DOE Departament of Energy EDF Electricité de France EIA Energy Information Administration FERC Federal Energy Regulatory Comission FPA Federal Power Act FPC Federal Power Comission IPP Independent Power Producer ISO Independent System Operator MSC Market Surveillance Comitee MW Megawatt MWh Megawatt-hora NIMBY Not In My Backyard NOPE Not On Planet Earth NOx Nitrogen Oxydes PUC Public Utilities Comission PUHCA Public Utility Holding Company Act PURPA Public Utility Regulatory Policies Act PG&E Pacific Gas and Electric PX Power Exchange SCE Southern Califórnia Edison SDG&E San Diego Gas and Electric SMD Stardant Market Design SRO Self Regulated Organizations TCF Thousand cubic feet TWh Terawatt-hora WSCC Western System Coordinating Council 7

ÍNDICE INTRODUÇÃO... 9 CAPÍTULO I - A ESTRUTURA TRADICIONAL E A ORIGEM DO MOVIMENTO REFORMISTA... 11 I.1 - O SISTEMA ELÉTRICO DA CALIFÓRNIA PRÉ-REFORMA...13 I.1.1 - Aspectos institucionais...14 I.1.2 - Aspectos estruturais...15 I.2. A REFORMA DO SISTEMA ELÉTRICO DA CALIFÓRNIA: 1996-1998...17 CAPÍTULO II - A CRISE DO SISTEMA ELÉTRICO DA CALIFÓRNIA E SUA RE-REGULAMENTAÇÃO : 2000/2001... 21 II. 1 A CALMARIA INICIAL E PERIGOSA: 1998-1999...21 II. 2 A CRISE: 2000-2001...24 II.3 - O ESTADO NO ACIRRAMENTO E SOLUÇÃO DA CRISE...26 II.3.1 Conflitos normativos e jurisdicionais entre as esferas federal e estadual...26 II.3.2 - A forte contribuição estatal para o fim da crise A re-regulamentação...29 CAPÍTULO III - DIAGNÓSTICOS DA CRISE E SUAS REFLEXÕES.... 34 III.1 - EXERCÍCIO DE PODER DE MERCADO E PRÁTICAS ANTICOMPETITIVAS...34 III.2 - FALHA DAS INSTITUIÇÕES DE MERCADO...36 III.3 - CONGELAMENTO DE TARIFAS E COMPETIÇÃO INSUFICIENTE NO MERCADO DE VAREJO...38 III.4 - AUSÊNCIA DE CONTRATOS DE LONGO PRAZO...39 III.5 - GARGALOS ESTRUTURAIS EM LINHAS DE TRANSMISSÃO E GASODUTOS...41 III.6 - RECRUDESCIMENTO DAS LEIS AMBIENTAIS E ATIVISMO ECOLÓGICO...42 CONCLUSÃO... 44 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...48 ANEXO I CALIFÓRNIA PRÉ-REFORMA...52 ANEXO II CALIFÓRNIA PÓS-REFORMA...53 ANEXO III EVOLUÇÃO DO PREÇO MÉDIO DA ELETRICIDADE (US$/MWH) NO MERCADO ATACADISTA DA CALIFÓRNIA...54 TABELAS TABELA 1: MATRIZ ENERGÉTICA DA CALIFÓRNIA (1999)...15 TABELA 2: PREÇOS MÉDIO E MÁXIMO NO MERCADO ELÉTRICO DA CALIFÓRNIA (1999)...23 TABELA 3: PREÇOS DAY-AHEAD NO CALPX (US$/MWH: MÉDIAS PONDERADAS 7 X 24)...25 TABELA 4: PARTICIPAÇÕES DE MERCADO NA CALIFÓRNIA PÓS-REFORMA (1999)35 8

INTRODUÇÃO A presente monografia procura delinear o caminho seguido pelo estado da Califórnia, inserido numa perspectiva internacional na busca de novos sistemas elétricos que, além de fazer parte de uma pauta de reformas administrativas de cunho liberal, almejava dar ao consumidor tarifas mais baixas e a opção de escolher seu fornecedor. Tomado como principal culpado dos complexos e ineficientes sistemas elétricos do final da década de setenta, o monopólio, que abrangia em uma só firma, geração, transmissão e distribuição havia de ser desmantelado. Em seu lugar, entrariam em cena novos agentes revitalizantes do setor, que dariam a percepção de jovem personalidade a estes sistemas centenários e aos próprios governos neoliberais: novos geradores e comercializadores privados. Com a cunha da concorrência, estes novos agentes competiriam entre si e com as velhas companhias estabelecidas, tendo como lócus um sistema de despacho independente operado por uma entidade neutra (ISO), formada por quadros representativos de todos os envolvidos no setor elétrico. Não obstante, as transações econômicas dos agentes se estabeleceriam por um sistema de leilão de energia no atacado, regido por uma bolsa para tal fim (PX). Assim sendo, o processo concorrencial incitaria preços menores neste mercado leiloeiro, via esforços de ganhos de produtividade por estas firmas lutando pelo mesmo mercado. A fim de estimular tais ganhos de eficiência, os governos reformadores optaram por igualmente adotar um sistema de regulação por incentivo, em lugar da velha tutela estatal ou, no caso americano, da desgastada modalidade por custo de serviço. Já tradicionais na presença de empresas privadas de serviço público, os estados americanos, estimulados por esse novo viés ideológico em torno dos mercados elétricos, irão contemplar a reforma seus sistemas, tal qual o modelo concorrencial incentivador, a exemplo 9

de países europeus como o Reino Unido e Noruega. Desta forma, em meados dos anos noventa, cada estado americano inicia seu processo de desregulamentação dos respectivos setores elétricos, inclusive a Califórnia. É neste estado que o presente trabalho apóia sua análise. Esta monografia é composta de três capítulos. O primeiro apresenta as transformações da estrutura tradicional de monopólio natural do suprimento de eletricidade nos Estados Unidos, dando a devida importância às mudanças estruturais e à descrença no modelo regulado por custo de serviço. Ainda, descreve-se as especificidades do sistema elétrico californiano, abordando, respectivamente, a natureza institucional e econômica naquele estado, em momento antecedente à reforma. Feito isto, o capítulo expõe a reforma do sistema elétrico da Califórnia, com enfoque no novo desenho de mercado proposto. O segundo capítulo é composto da análise descritiva da crise do sistema elétrico da Califórnia, ocorrido entre 2000 e 2001, tratando da questão da escalada de preços e os problemas que o modelo gerou no que tange aos agentes do mercado. Igualmente, são abordadas as ações estatais, de um lado na deterioração do mercado elétrico californiano, devido a disputas jurisdicionais entre as esferas estadual e federal, e de outro as ações tomadas para o contorno da crise e a re-regulamentação. Seguindo, o terceiro e último capítulo aborda as razões que levaram o novo modelo elétrico californiano a sucumbir, ressaltando as principais falhas do desenho de mercado proposto e as lições tomadas. E, finalmente, a conclusão deste trabalho ressalta a nova tendência resultante da crise do sistema elétrico californiano, sobretudo, para os órgãos normativos americanos de policiar o mercado com mãos firmes. 10

CAPÍTULO I - A ESTRUTURA TRADICIONAL E A ORIGEM DO MOVIMENTO REFORMISTA. A partir dos anos 1980, a indústria mundial de eletricidade passou para uma fase inteiramente nova, em que os reflexos do desaquecimento contínuo da demanda no decênio anterior acarretaram em expressiva capacidade ociosa e estagnação do nível de investimentos no setor. Após um período de crescimento regular e ininterrupto, vindo com a Era de Ouro do capitalismo pós-segunda-guerra, as empresas de energia elétrica amargariam perdas devido a esta paralisação na evolução do consumo, tendo de se repensar o modelo de mercado a ser adotado como alternativa aos monopólios institucionalizados. Os choques do preço do petróleo, juntamente com o esgotamento das economias de escala e a revolução monetarista foram os pivôs desta mudança de paradigma. O setor elétrico, antes um agente de importância central nas políticas de bem-estar social, tornou-se uma peça-chave do mercado livre e de políticas do neoliberalismo dos anos 90, graças a seu enorme peso nos investimentos públicos (EDF, 2004; p.16). Assim, segundo Bicalho (1997):...a partir do final dos anos setenta até o presente, a discussão acerca da reorganização da indústria de eletricidade passou a ocupar um espaço político importante, sendo tema de discussões e deliberações em várias instâncias legislativas ao redor do mundo, incorporando uma ampla gama de países que vai dos Estados Unidos ao Japão, passando por boa parte da Europa.(p.1) Junto às motivações políticas dos governos envolvidas neste processo, prevaleceram os conceitos econômicos de desverticalização do setor e privatização. Fatores como: i) o crescimento do número de consumidores conectados à rede, passando o mercado a comportar mais de uma planta eficiente, assim como uma melhor diluição dos custos fixos;

ii) a evolução e a introdução de algumas inovações no setor elétrico, como a turbina a gás e tecnologia da informação; iii) inovações acadêmicas sobre organização industrial (OLIVEIRA, 2004; p.149);. possibilitaram a crença de que esta estrutura de mercado poderia evoluir para um ambiente competitivo. Em outras palavras, a competição no mercado elétrico passou a ser contemplada. Destarte, a antiga forma de organização baseada em uma grande empresa vertical se desgastou à medida que sua estrutura tornou-se demasiada complexa e os custos destes enormes sistemas centrais era repartido com os consumidores. O repasse de custos às tarifas deveu-se, sobretudo, a uma previsão superestimada de demanda, produzindo excesso de capacidade. Tanto no caso europeu quanto no americano as tarifas eram acrescidas com o aval do Estado, sendo no segundo caso, um motivo de desgaste da regulação por custo de serviço, que será tratado em tópico seguinte. Segundo Bicalho (2004): A partir desse movimento, foi possível imputar ao monopólio a culpa por estes aumentos, reduzindo seu papel a um mero repassador de custos. Nesse enfoque, o papel desempenhado pelo monopólio na trajetória virtuosa i desapareceu, ou, na melhor das hipóteses, foi considerado ultrapassado pelos novos eventos tecnológicos e econômicos vivenciados pela indústria elétrica. Se todos os males nasciam da vigência da estrutura monopolista, era razoável supor que na sua substituição por uma estrutura competitiva poderia estar a solução para os problemas da indústria elétrica. Baseada nessa premissa, a priori bastante simples, foi construída a pauta da reforma da indústria elétrica.(p.3) Ao reestruturar o mercado elétrico, os Estados Nacionais passaram a responsabilidade do financiamento do investimento em expansão e geração de eletricidade dos antigos 12

monopólios estatais ao investidor privado, através de concessões ii. Deste modo, estas reformas impuseram ao capital privado o cálculo da alocação de quantidades e preços eficientes, impondo riscos, até então pequenos nesta atividade, aos agentes produtores do setor e aos próprios consumidores. Daí, o mote central da reestruturação seria repassar os ganhos de eficiência competitiva às tarifas, em um ambiente onde a redução de custo pela competição sobrepujaria aqueles conseguidos com a integração vertical. (BICALHO, 2004; p.4), propiciando ganhos também ao consumidor. A partir desta nova interação em torno de um serviço público, tornou-se necessária uma específica intervenção de novas instituições centralizadas (agentes reguladores), de forma a atenuar externalidades e falhas de coordenação e informação entre os agentes, além de falhas no abastecimento causadas por sub-investimentos no lado da oferta. Entretanto, a reforma do setor elétrico nos diferentes países abrangeu a necessidade de uma ampla gama de medidas que vão além da introdução de competição e regulação. A promoção de uma reforma institucional seria de suma importância ao êxito da reforma no setor como um todo. Para os estados americanos, onde uma estrutura regulatória já era forte, optou-se por uma reforma desregulamentadora, ou seja, a retirada parcial das comissões reguladoras tradicionais, visando a redução da participação estatal no mercado elétrico. I.1 - O sistema elétrico da Califórnia pré-reforma A seção presente analisa os aspectos institucionais e estruturais do sistema elétrico do Estado da Califórnia no momento anterior à reforma. Subdividida em duas subseções, de acordo com sua natureza, esta seção define como o sistema elétrico daquele estado se encontrava fortemente concentrado sob a estrutura de monopólios naturais, sendo controlados tradicionalmente por órgãos reguladores federais e estaduais. 13

I.1.1 - Aspectos institucionais Antes da reforma ocorrida na década de noventa, o modelo institucional californiano seguia a tradição americana, onde a predominância do capital privado em serviços de utilidade pública sempre foi em grande número presente. Nos Estados Unidos, o setor elétrico era composto por empresas privadas, monopolistas e verticalizadas, em que geração, transmissão e distribuição seriam atividades de uma única empresa. Contrastando com o modelo de suprimento estatal europeu surgido no Pós-Segunda Guerra, os estados americanos, desde a Public Utility Holding Company Act (PUHCA) de 1935, tinham seus serviços de gás e eletricidade supridos pelo investidor privado que poderia apenas operar num único estado, evitando assim trustes e conglomerados interestatais (EIA, 1993; p.19). Para que as o serviço de suprimento de energia elétrica fosse de boa qualidade e de preços não-abusivos, optou-se por órgãos reguladores que atuariam neste quesito: as Public Utilities Comissions (PUC), na esfera estadual, e a Federal Energy Regulatory Comission (FERC), na federal, regulando as transações interestaduais das concessionárias iii. Seguindo a natureza federalista americana, as PUC deveriam ser unicamente estaduais, com alto grau de autonomia, multi-setoriais, e de regime quasi-judicial, ou seja, possuiriam funções executivas, legislativas e judiciárias. O papel destas comissões no setor elétrico, com relação ao preço, seria garantir tarifas justas e razoáveis iv, através da regulação por custo de serviço v, ao consumidor final. 14

I.1.2 - Aspectos estruturais No Estado da Califórnia, antes da reforma de 1998, o consumo se aproximava de 250 TWh, nos quais três quartos da capacidade de geração era de produção interna, sendo o restante importado de estados vizinhos, Canadá e México (GLACHANT, 2003; p.15; JOSKOW, 2001a; p.3; WOO, 2001; p.748). A Tabela 1 classifica os tipos de energia utilizados naquele estado, discriminando as classes de consumidores no varejo. Além da geração, toda a capacidade de transmissão e distribuição era de propriedade ou controle de três utilities privadas verticalizadas: a Pacific Gas and Electric (PG&E), a Southern Califórnia Edison (SCE), e a San Diego Gas and Electric (SDG&E). O estado ainda contava com inúmeras distribuidoras municipais/rurais e produtores independentes (IPPs) vi de renováveis produzindo 50 TWh, surgidas com a Public Utility Regulatory Policies Act (PURPA), de 1978 vii. Tabela 1: Matriz energética da Califórnia (1999) Fonte Energética (%) Óleo e/ou gás 31% Energia importada 18% Hidráulica 15% Nuclear 15% Carvão 13% Fontes alternativas 8% Discriminação do Consumo (varejo) (%) Residencial 30% Comercial 36% Industrial 21% Agrícola 7% Outras categorias 6% Fonte: Besant-Jones e Tenenbaum (2001). Sujeitas à regulação por custo de serviço, estas três empresas cobravam de seus consumidores tarifas de custo médio (second best) ou próximas a isto que incluíam o retorno presente e passado de seus investimentos, como já explicitado anteriormente. O serviço elétrico era confiável e de boa qualidade, mesmo sendo a Califórnia detentora da maior tarifa dos EUA 15

(WOO, 2001; p.747), cerca de 50% mais cara que a média americana (GLACHANT, 2003; p.18). Apesar de seguro, o método de regulação por custo de serviço gerava insatisfação, pois recaia sobre os consumidores a ineficiência alocativa descrita pelo famoso trabalho de Averch e Johnson (1962). Tal deformidade produtiva, conhecida como Efeito Averch- Johnson começou a ser notado de fato ao final dos anos de 1970, quando se criou enorme capacidade ociosa graças à queda abrupta na demanda decorrente da recessão daquela década viii. Além do efeito, havia duras críticas à regulação por custo de serviço americana, de um modo geral. Assim sendo, no estado da Califórnia não podia ser diferente. Dentre as críticas estavam: i) O problema da definição dos critérios contábeis para a base de capital da empresa, inflando a base de remuneração das concessionárias; ii) O problema da captura do regulador, já que este recolhia suas informações sobre a concessão junto à empresa regulada; iii) O problema dos subsídios cruzados, penalizando pequenos consumidores de eletricidade (cuja demanda é inelástica), entre outros. Ainda, na década de 1990, somada a estes fatores críticos do modelo de regulação vigente, o estado da Califórnia passava por uma recessão, com alto desemprego, perda de indústria e empregos para outros estados. Assim, segundo Besant-Jones e Tenenbaum (2001; p.11), havia a crença do governo californiano de que o contínuo crescimento das tarifas elétricas expulsaria ainda mais indústrias para outros estados. Constata-se, portanto, que houve um viés político-ideológico na adoção do modelo de competição. Ora, era de fácil percepção uma tendência na adoção de políticas onde o mercado 16

por si só encontraria um ponto ótimo benéfico tanto para produtores, quanto para consumidores de eletricidade. Tal visão de que as falhas de mercado seriam quase nulas em relação às falhas de governo se disseminou nos Estados Unidos, de forma a diminuir o papel dos reguladores de serviços de utilidade pública locais, já que a regulação seria o grande culpado das crescentes tarifas cobradas. Sendo assim, o governo da Califórnia, alegando que o sistema elétrico vigente seria fragmentado, obsoleto, arcaico e complexo sem justificativa (BESANT-JONES ET AL., 2001; p.11) decide por adotar um modelo de economia de mercado para a eletricidade ao exemplo do modelo britânico, que já estava sendo empregado desde o inicio da década de 90. Este modelo já aparentava um relativo sucesso no que se refere à desverticalização das gigantes daquele setor elétrico e à criação de novas instituições executoras de novas tarefas (e.g. a garantia do livre acesso à rede, a proteção dos consumidores e a aplicação da lei antitruste). Para uma ilustração da estrutura industrial californiana pré-reforma, ver Anexo I. I.2. A reforma do sistema elétrico da Califórnia: 1996-1998 A reforma não encontrou dificuldade de ser implementada em nenhuma instância, sendo, segundo Glachant (2003), um objeto de consenso: A reforma californiana não foi partidária; os democratas votaram ao lado dos republicanos um projeto apresentado originalmente pelo governador republicano Wilson. O legislativo aprovou esta reforma em 1996 por unanimidade, sem nenhuma manifestação de oposição política. Nenhum grupo sentia -se, portanto, gravemente lesado: nem as utilities privadas, nem os produtores independentes, nem as associações de defesa dos consumidores, nem mesmo os sindicatos dos empregados do setor elétrico. Todos os grupos de interesse influentes haviam, aparentemente, encontrado no desenho da reforma promessas aceitáveis ou garantias suficientes. (p.15) 17

O novo modelo de mercado do setor elétrico californiano foi ditado pela Electric Utility Industry Restructuring Act, ou usualmente conhecida como Assembly Bill 1890 (AB1890), promulgada em 23 de setembro de 1996. Esta lei visava como objetivos principais a promoção de mudanças na organização do setor e a criação de novas organizações de forma a torná-lo competitivo e sustentável, à moda britânica, tais quais: i) A criação de um mercado varejista, onde consumidores poderiam escolher livremente seus fornecedores (direct access), não mais sendo consumidores cativos de uma única e fixa companhia; ii) A criação de um mercado de pool atacadista de energia, ou California Power Exchange (CALPX), onde compradores e vendedores transacionariam através de leilões de demanda e oferta ix. Poderia entrar neste mercado qualquer novo gerador que se dispusesse a investir e produzir; iii) A criação de um operador independente do sistema, ou California Independent System Operator (CALISO), que implementaria as transações do mercado atacadista (CALPX), gerenciando a rede de transmissão, propriedade das utilities, agora incumbentes (PG&E, SCE e SDG&E) x ; iv) As companhias de transmissão e distribuição (utilities) deveriam prover livre-acesso à rede a todos os usuários, estando sujeitas à regulação tarifária por price cap xi ; Ainda, a AB 1890 ordenou um congelamento de tarifas para cada classe de consumidores no nível de 10 de junho de 1996, passando a valer em 1º de janeiro de 1998, continuando até a data que os stranded costs xii fossem totalmente recuperados pelas utilities (RITSCHEL ET AL., 2003; p. 4; WOO, 2001; p.753) xiii. Assim, a proposta inicial era de que os preços se mantivessem congelados até 31 de março de 2002 (WOO, 2001; p.751) em torno 18

de US$65/MWh. Obtinha-se com esta última medida uma ilusória percepção de barganha por parte das três antigas utilities; daí, portanto, o apoio irrestrito, como observado anteriormente, destas empresas à reestruturação do modelo californiano. A cobrança das CTC (competition transition charges) xiv garantiria até o verão de 2000, quando as tarifas no CALPX ainda estavam abaixo da tarifa cobrada no varejo, relativa recuperação dos stranded costs. Porém, como será tratado posteriormente, a crise teria seu colapso em 2000, impossibilitando esta margem. Em 1995, antecipando a AB1890, a CPUC já havia ordenado as três utilities do estado que metade dos parques de geração destas firmas fosse vendido a seis novos entrantes, assim como fosse garantido o acesso a qualquer novo gerador a utilizar seus sistemas de transmissão e distribuição (WOO, 2001; p. 748). Das cidades, apenas Los Angeles optou por manter as antigas características estruturais pré-reforma, conservando também a interconexão com o estado de Nevada e, como última observação, nenhuma unidade elétrica de propriedade municipal ou cooperativa foi obrigada a participar da reforma (GLACHANT, 2003; p. 16). A grande mudança institucional que se observa é a transferência da tutela pública da CPUC, que não será extinta, para dois órgãos isolados (CALPX e CALISO) sem fins lucrativos com membros de seus conselhos vindos diretamente dos grupos de interesse (antigas companhias, novos entrantes e consumidores) (GLACHANT, 2003; p.18) do setor, nomeados pelo governo estadual. Então, sob a égide da concorrência entre produtores estabelecidos e entrantes em potencial na geração xv, nos leilões do CALPX, com o controle de despacho independente do CALISO, o consumidor final alcançaria um abastecimento de energia seguro a um menor custo, com a opção de escolha de seu fornecedor. Para uma ilustração da estrutura industrial californiana pós-reforma, ver Anexo II. 19

A partir da reorganização do mercado elétrico, citada neste capítulo, constata-se que o pioneirismo do estado da Califórnia na reestruturação elétrica se manifesta como uma experiência a ser observada e, como será tratado ulteriormente, algo a ser evitado pelos demais Estados reformistas. Um novo sistema de mercado que objetivava competição plena entre geradores transformou-se em lócus de gamings de produtores e tragédia para consumidores, como será tratado no próximo capítulo da monografia. 20

CAPÍTULO II - A CRISE DO SISTEMA ELÉTRICO DA CALIFÓRNIA E SUA RE-REGULAMENTAÇÃO : 2000/2001 O processo inicial de reforma proposto para a Califórnia, citado no capítulo anterior, tomou aproximadamente dois anos para maturar. Assim, o desenho de mercado começa a funcionar na prática em meados de 1998, tomando mais dois anos para a crise tornar-se evidente. Desta maneira, o período de análise da crise da Califórnia pode ser subdividido em dois biênios inteiramente distintos: 1998-1999 e 2000-2001. Isto se deve a um período inicial de funcionamento do mercado (1998-1999) em que os agentes ainda pareciam estar se adequando ao novo desenho institucional proposto, posto que a própria reforma ainda não havia se solidificado. Neste capítulo, além da análise da crise do sistema elétrico californiano, é contemplada a volta da atuação estatal no mercado elétrico americano. Tal reorientação no mando do mercado se dá de forma emergencial, a fim de corrigir os erros da desregulamentação, evitando, através desta tutela, novas crises futuras. Esta retomada do papel do Estado nos serviços de utilidade pública, em especial os de eletricidade, é usualmente conhecido pela literatura anglo-saxã como re-regulation, ou: a reregulamentação. II. 1 A calmaria inicial e perigosa: 1998-1999 Como aponta Woo (2001, p.752), nos primeiros dois anos, os preços no mercado atacadista foram relativamente baixos e a confiabilidade do serviço era comparável ao nível de pré-reforma. O comportamento estável dos preços em 1998-1999 demonstra a clara margem de capacidade ociosa da geração de eletricidade frente à demanda do consumo, o que 21

de certo feitio, justifica o excessivo custo da tarifa elétrica californiana em relação aos demais estados americanos. Então, como descreve Watts (2001, p.19), quando previsões de demanda no longo prazo são altamente incertas, um sistema eficiente tem uma grande quantidade de capacidade excedente, como a Califórnia possuía quando desregulamentada. De fato, antes do processo de reforma, os monopólios se deparavam com a possibilidade de estar sempre investindo em capacidade geradora, já que mesmo ociosos esses ativos teriam garantia de remuneração com o aval das PUC, acarretando nas questões que desgastaram este sistema de mercado regulado. Entretanto, o funcionamento de um mercado competitivo desregulado elimina tal prática, recaindo sobre os produtores de energia o papel de prever com exatidão a demanda, de forma a maximizar o retorno de seus ativos, havendo, inclusive, uma tendência ao sub-investimento na capacidade de geração. Porém, esta hipótese em comum de Woo (2001) e Watts (2001) entra em contradição com Glachant (2003), que salienta: A Califórnia, por sua vez, é a única a ter provado as desventuras de uma reforma competitiva introduzida com uma margem insuficiente de capacidade excedente na geração. Por sua vez, Green (2003), do mesmo modo, corrobora essa posição em parte: Na média, entretanto, o Departamento de Análise de Mercado do ISO averiguou que os preços estavam abaixo de um benchmark competitivo (baseados em lances de custo marginal), em muitos meses durante os dois primeiros anos de operação do mercado. Preços estavam 20% abaixo do benchmark durante o verão de 1998, entretanto, e também cresceram acima do nível de benchmark no verão e outono de 1999. Isto foi um sinal de aviso demanda estava crescendo rapidamente na Califórnia, e havia tido pouco investimento para a década. (p.10, tradução nossa) 22