CUIDAR E EDUCAR Perspectivas para a prática pedagógica na educação infantil



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ICPG Instituto Catarinense de Pós-Graduação www.icpg.com.br 1 CUIDAR E EDUCAR Perspectivas para a prática pedagógica na educação infantil Resumo Nilza Aparecida Forest 1 (Pós-Graduanda em Psicopedagogia) Silvio Luiz Indrusiak Weiss (Professor orientador) Esse trabalho tem por objetivo apresentar discussões sobre as relações e interfaces do cuidar e do educar, pois a realidade tem revelado a confusão e as dificuldades instaladas ao longo de décadas de uma prática nas instituições de educação infantil, em que cuidar remete à idéia de assistencialismo e, educar à de ensino/aprendizagem. Diante disso, prevalece a tendência de compreender o cuidar e educar como mera associação de duas diferentes funções: uma relativa ao zelo por boa alimentação, segurança física e cuidados com higiene e saúde; outra, preocupada com o repasse de conhecimentos e normas de comportamento, além do cumprimento de regras pelos futuros cidadãos. No entanto, a função destes dois termos parece distante das reflexões que culminam na declaração do cuidar e educar como princípios indissociáveis, ficando aquém da compreensão e promoção do ideal almejado. Cuidar e educar é impregnar a ação pedagógica de consciência, estabelecendo uma visão integrada do desenvolvimento da criança com base em concepções que respeitem a diversidade, o momento e a realidade peculiares à infância. Desta forma, o educador deve estar em permanente estado de observação e vigilância para que não transforme as ações em rotinas mecanizadas, guiadas por regras. Palavras-chave: Educação infantil. Educar. Cuidar. Prática pedagógica. 1. INTRODUÇÃO Quando se propõe a trabalhar com crianças bem pequenas, deve-se ter como princípio, conhecer seus interesses e necessidades. Isso significa saber verdadeiramente quem são, saber um pouco da história de cada uma, conhecer a família, as características de sua faixa etária e a fase de desenvolvimento em que se encontra, além de considerar o tempo que permanecem na escola. Só assim pode-se compreender quais são as reais possibilidades dessas crianças, lembrando que, para elas, a classe inicial é a porta de entrada para uma vida social mais ampla, longe do ambiente familiar. Antigamente, a escola de educação infantil tinha uma conotação assistencial, onde as crianças ali passavam o dia todo para que seus pais pudessem trabalhar. As monitoras passavam os dias olhando as crianças brincarem e era o professor quem ficava com o desenvolvimento intelectual planejado (quando havia planejamento). Nesse período, os papéis, dentro da instituição infantil eram bem claros: um cuidava e o outro educava. Para o 1 e-mail: izaforest@bol.com.br

leigo em educação infantil pode soar estranho, ouvir que a instituição infantil é um direito da criança, como um espaço que ela sente prazer em freqüentar. Quem pensa assim vê esse ambiente como tendo mero caráter assistencialista, no qual apenas o cuidar é focalizado; considera a instituição infantil freqüentada apenas por crianças que foram deixadas lá pela família. Tal visão deve ser superada porque se revela preconceituosa e sem fundamentação diante da realidade em que se encontra e que, cada vez, mais se procura trilhar, que é a de garantir espaço para que a criança possa ter os seus direitos respeitados e, entre eles, o de viver a infância. Cuidar e educar é impregnar a ação pedagógica de consciência, estabelecendo uma visão integrada do desenvolvimento da criança com base em concepções que respeitem a diversidade, o momento e a realidade peculiares à infância. Desta forma, o educador deve estar em permanente estado de observação e vigilância para que não transforme as ações em rotinas mecanizadas, guiadas por regras. Consciência é a ferramenta de sua prática, que embasa teoricamente, inova tanto a ação quanto à própria teoria. Cuidar e educar implica reconhecer que o desenvolvimento, a construção dos saberes, a constituição do ser não ocorre em momentos e compartimentados. A criança é um ser completo, tendo sua interação social e construção como ser humano permanentemente estabelecido em tempo integral. Cuidar e educar significa compreender que o espaço/tempo em que a criança vive exige seu esforço particular e a mediação dos adultos como forma de proporcionar ambientes que estimulem a curiosidade com consciência e responsabilidade. Portanto, neste artigo faz-se uma reflexão sobre o que consiste o cuidar e o educar, bem como, discute-se as bases do significado de cuidar e educar, ressaltando seu caráter de unicidade, ao invés de dupla tarefa. 2 2. O EDUCAR E O CUIDAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL Embora existam situações na qual o modelo antigo ainda ocorra, que em determinados momentos há um responsável para cuidar e outro para educar, atualmente a discussão vai muito além dessa análise simplificada. Cuidar e educar, de acordo com as novas diretrizes, devem caminhar juntos. Percebe-se nos dias de hoje e apoiado nos paradigmas emergentes da complexidade (DEMO, 2002; MORIN, 2002) e da visão sistêmica relacionada ao ser vivo (CAPRA, 2001; CAPRA, 2002; MATURANA & VARELA, 2001), o indivíduo como ser global, não fragmentado e não linear, em todos os momentos e em todas as situações, ou seja, cuidar e educar, contemplando de forma democrática todas as diferenças e, ao mesmo tempo, a natureza complexa do indivíduo. Plenamente entendidas e aplicadas, cuidar e educar caminham simultaneamente e de maneira indissociável, possibilitando que ambas as ações construam na totalidade, a identidade e a autonomia da criança. A ação conjunta dos educadores e demais membros da equipe da instituição é essencial para garantir que o cuidar e o educar aconteçam de forma integrada. Essa atitude deve ser contemplada desde o planejamento educacional até a realização das atividades em si. Nesse constante fazer dentro da instituição educacional, há momentos em que uma ação pedagógica incisiva se faz necessária, pois o educador, em algumas situações, necessita cobrar dos pais e demais profissionais, atitudes que visam ao melhor desenvolvimento da criança. Essa ação, por vezes, não é bem aceita. A família se sente invadida na sua intimidade, recusando-se a enxergar o que não dá mais para esconder e, nesse momento, o educador incomodado com o descaso por parte da família, se pergunta: Afinal, quem cuida? Quem educa?

Torna-se necessária uma parceria de todos para o bem-estar do educando. Cuidar e educar envolve estudo, dedicação, cooperação, cumplicidade e, principalmente, amor de todos os responsáveis pelo processo, que se mostra dinâmico e em constante evolução. Por outro lado, é imprescindível conhecer a natureza e as raízes históricas da educação infantil, os desdobramentos da prática educacional nas instituições responsáveis e as influências que exerceram e ainda exercem nas diretrizes pedagógicas dessa área. Além disso, há necessidade de caracterizar amplamente o conceito, a especificidade e as peculiaridades do cuidar e do educar no contexto contemporâneo da prática pedagógica, baseando-se nos autores que discutem essa questão e na legislação atual. 3 2.1. HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO INFANTIL As instituições de educação infantil nasceram na França, no século XVIII, em resposta à situação de pobreza, abandono e maus-tratos de crianças pequenas, cujos pais trabalhavam em fábricas, fundições e minas, criadas pela Revolução Industrial. Todavia, os objetivos e formas de tratar as crianças dos extratos sociais mais pobres da sociedade não eram consensuais. Setores da elite defendia a idéia de que não seria bom para a sociedade como um todo, que se educasse as crianças pobres, era proposta a educação da ocupação e da piedade (OLIVEIRA, 1995). Durante muito tempo, as instituições infantis, incluindo as brasileiras, organizavam seu espaço e sua rotina diária em função de idéias de assistência, de custódia e de higiene da criança. A década de 1980 passou por um momento de ampliação do debate a respeito das funções das instituições infantis para a sociedade moderna, que teve início com os movimentos populares dos anos 1970 (WAJSKOP, 1995). A partir desse período, as instituições passaram a ser pensadas e reivindicadas como lugar de educação e cuidados coletivos das crianças de zero a seis anos. A abertura política permitiu o reconhecimento social desses direitos manifestados pelos movimentos populares e por grupos organizados da sociedade civil. A Constituição de 1988 (art. 208, inciso IV), pela primeira vez na história do Brasil, definiu como direito das crianças de zero a seis anos se idade e dever do Estado o atendimento à infância. Muitos fatos ocorreram de forma a influenciar essas mudanças: o desenvolvimento urbano, as reivindicações populares, o trabalho da mulher, a transformação das funções familiares, as idéias de infância e as condições socioculturais para o desenvolvimento das crianças. Constituir-se em um equipamento só para pobres, principalmente no caso das instituições de educação infantil, financiadas ou mantidas pelo poder público, significou, em muitas situações, atuar de forma compensatória para sanar as supostas faltas e carências das crianças e de suas famílias. A tônica do trabalho institucional foi pautada por uma visão que estigmatizava a população de baixa renda. A concepção educacional era marcada por características assistencialistas, sem considerar as questões de cidadania ligadas aos ideais de liberdade e igualdade. Modificar essa concepção de educação assistencialista significa atentar para várias questões que vão além dos aspectos legais. Envolve, principalmente, assumir as especificidades da educação infantil e rever concepções sobre a infância, as relações entre classes sociais, as responsabilidades da sociedade e o papel do Estado diante de crianças pequenas.

Embora haja um consenso sobre a necessidade de que a educação para as crianças pequenas deva promover a integração entre os aspectos físicos, emocionais, afetivos, cognitivos e sociais da criança, considerando que esta é um ser completo e indivisível, as divergências estão exatamente no que se entende sobre o que seja trabalhar com cada um desses aspectos. Polêmicas sobre cuidar e educar, sobre o papel do afeto na relação pedagógica e sobre educar para o desenvolvimento ou para o conhecimento, tem se constituído no pano de fundo sobre o qual se constroem as propostas em educação infantil. 4 2.2. CUIDAR Na educação infantil o cuidar é parte integrante da educação, embora possa exigir conhecimentos, habilidades e instrumentos que exploram a dimensão pedagógica. Cuidar de uma criança em um contexto educativo demanda a integração de vários campos de conhecimento e a cooperação de profissionais de diferentes áreas. O mais importante, no cuidado humano, é compreender como ajudar o outro a se desenvolver como ser humano. Cuidar, significa valorizar e ajudar a desenvolver capacidades. O cuidado é um ato em relação ao outro e a si próprio, que possui uma dimensão expressiva e implica em procedimentos específicos (SIGNORETTE, 2002). Para um desenvolvimento integral depende tanto dos cuidados relacionais que envolvem a dimensão afetiva e dos cuidados com os aspectos biológicos do corpo, como a qualidade da alimentação e dos cuidados com a saúde, quanto da forma como esses cuidados são oferecidos e das oportunidades de acesso a conhecimentos variados. A forma de cuidar, muitas vezes, são influenciadas por crenças e valores em torno da saúde, da educação e do desenvolvimento infantil, embora as necessidades humanas básicas sejam comuns como, alimentar-se, proteger-se, etc. As formas de identificá-las, valorizá-las e atendê-las são construídas socialmente. As necessidades básicas, podem ser modificadas e acrescidas de outras de acordo com o contexto sociocultural. Pode-se dizer que além daquelas que preservam a vida orgânica, as necessidades afetivas são, também, base para o desenvolvimento infantil. O cuidado precisa considerar, principalmente, as necessidades das crianças, que quando observadas, ouvidas e respeitadas, podem dar pistas importantes sobre a qualidade do que estão recebendo. Os procedimentos de cuidado também precisam seguir os princípios de promoção da saúde. Para se atingir os objetivos dos cuidados com a preservação da vida e com o desenvolvimento das capacidades humanas, é necessário que as atitudes e procedimentos estejam baseadas em conhecimentos específicos sobre desenvolvimento biológico, emocional, e intelectual das crianças, levando em conta diferentes realidades sócio-culturais (BRASIL, 1998, p. 25). As ações relativas ao cuidar, por sua vez, são apresentadas de forma a ressaltar o desenvolvimento integral da criança, envolvendo aspectos afetivos, relacionais, biológicos, alimentares e concernentes à saúde. O contexto sociocultural aparece como determinante nas construções humanas e nas necessidades básicas de sobrevivência, diferentes em cada cultura, com isso, fica claro, no papel designado ao cuidar, a necessidade de envolvimento e comprometimento do professor com a criança em todos os seus aspectos, e a compreensão sobre o que ela sente e pensa, o que traz consigo, a sua história e seus desejos.

Para cuidar é preciso um comprometimento com o outro, com sua singularidade, ser solidário com suas necessidades, confiando em suas capacidades. Disso depende a construção de um vínculo entre quem cuida e quem é cuidado. É preciso que o professor possa ajudar a criança a identificar suas necessidades e priorizá-las, assim como atendê-las de forma adequada. Deve-se cuidar da criança como pessoa que está num contínuo crescimento e desenvolvimento, compreendendo sua singularidade, identificando e respondendo às suas necessidades. Isso inclui interessar-se sobre o que a criança sente, pensa, o que ela sabe sobre si e sobre o mundo, visando à ampliação desse conhecimento e de suas habilidades, que, aos poucos, a tornarão mais independente e mais autônoma. 5 2.3. EDUCAR É de suma importância que as instituições de educação infantil incorporem de maneira integrada as funções de cuidar e educar, não mais diferenciando, nem hierarquizando os profissionais e instituições que atuam com crianças pequenas ou àqueles que trabalham com as de mais idade. As novas funções da educação infantil devem estar associadas a padrões de qualidade. Essa qualidade advém de concepções de desenvolvimento que consideram as crianças nos seus contextos sociais, ambientais, culturais e, mais concretamente, nas interações e práticas sociais que lhes fornecem elementos relacionados às mais diversas linguagens e ao contato com os mais variados conhecimentos para a construção da autonomia. A instituição de educação infantil deve tornar acessível a todas as crianças que a freqüentam, indiscriminadamente, elementos da cultura que enriquecem o seu desenvolvimento e inserção social. Cumpre um papel socializador, propiciando o desenvolvimento da identidade das crianças, por meio de aprendizagens diversificadas, realizadas em situações de interação (BRASIL, 1998, p. 23). Pode-se oferecer às crianças, condições para as aprendizagens que ocorrem nas brincadeiras e àquelas advindas de situações pedagógicas intencionais ou aprendizagens orientadas pelos adultos. Contudo, e importante ressaltar que essas aprendizagens, de natureza diversa, ocorrem de maneira integrada no processo de desenvolvimento infantil. Educar significa, portanto, propiciar situações de cuidados, brincadeiras e aprendizagens orientadas de forma integrada e que possam contribuir para o desenvolvimento das capacidades infantis de relação interpessoal, de ser e estar com os outros em uma atitude básica de aceitação, de respeito e confiança, e o acesso, pelas crianças aos conhecimentos mais amplos da realidade social e cultural. Nesse processo, a educação infantil poderá auxiliar o desenvolvimento das capacidades de apropriação e conhecimento das potencialidades corporais, afetivas, emocionais, estéticas e éticas, na perspectiva de contribuir para a formação de crianças felizes e saudáveis. O processo educativo é realizado de várias formas: na família, na rua, nos grupos sociais e, também, na instituição. Educar, nessa primeira etapa da vida, não pode ser confundido com cuidar, ainda que crianças (especialmente as de zero a 3 anos) necessitem de cuidados elementares para garantia da própria sobrevivência. O que deve permear a discussão não são os cuidados que as crianças devem receber, mas o modo como elas devem recebê-los, já que se alimentar, assear-se, brincar, dormir, interagir são direitos inalienáveis à infância (GARCIA, 2001).

Para educar, faz-se necessário que o educador crie situações significativas de aprendizagem, se quiser alcançar o desenvolvimento de habilidades cognitivas, psicomotoras e socioafetivas, mas e, sobretudo, fundamental que a formação da criança seja vista como um ato inacabado, sempre sujeito a novas inserções, a novos recuos, a novas tentativas. 6 2.4. FORMAÇÃO DO EDUCADOR INFANTIL As funções do profissional de educação infantil estão passando por reformulações profundas. O que se esperava dele há algumas décadas, não corresponde mais aos dias atuais. Nessa perspectiva, os debates estão indicando a necessidade de uma formação mais abrangente e unificadora para educadores infantis e de uma reestruturação dos quadros de carreira que levem em consideração os conhecimentos já acumulados no exercício profissional, bem como possibilite a atualização profissional. A LDB (Lei de Diretrizes e Bases) dispõe, no título VI, art. 62: A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade normal. Isso significa que as redes de ensino deverão colocar-se a tarefa de investir de maneira sistemática na capacitação e atualização permanente e em serviço de seus educadores, aproveitando as experiências acumuladas daqueles que já vêm trabalhando com crianças há mais tempo e com qualidade. Nessa perspectiva, faz-se necessário que os profissionais, nas instituições de educação infantil, tenham ou venham a ter uma formação inicial sólida e consistente, acompanhada de adequada e permanente atualização em serviço. Assim, o diálogo, no interior da categoria, tanto quanto os investimentos na carreira e formação do profissional pelas redes de ensino, é, hoje, desafio presente, com vista à profissionalização do decente de educação infantil. O trabalho direto com as crianças pequenas exige que o educador tenha uma competência polivalente. Ser polivalente significa que ao educador cabe trabalhar com conteúdos de naturezas diversas que abrangem desde cuidados básicos essenciais até conhecimentos específicos provenientes das diversas áreas do conhecimento. Este caráter polivalente demanda, por sua vez, uma formação bastante ampla e profissional que deve tornar-se, ele também, um aprendiz, refletindo constantemente sobre sua prática, debatendo com seus pares, dialogando com as famílias e a comunidade e buscando informações necessárias para o trabalho que desenvolve. São instrumentos essenciais para reflexão sobre a prática direta com as crianças a observação, o registro, o planejamento e a avaliação (BRASIL, 1998, p. 41). Para que os projetos educativos das instituições possam, de fato, representar esse diálogo e debate constante, é preciso ter educadores que estejam comprometidos com a prática educacional, capazes de responder às demandas familiares e das crianças, assim como às questões específicas relativas aos cuidados e aprendizagens infantis.

A formação do educador infantil deve estar baseada na concepção de educação infantil. Deve buscar a superação da dicotomia educação / assistência, levando em conta o duplo objetivo da educação infantil de cuidar e educar. A formação deve ser entendida como direito do profissional, o que implica a indissociabilidade entre formação e profissionalização. Diferentes níveis e estratégias de formação devem ser geradores de profissionalização, tanto em termos de avanço na escolaridade, quanto no que se refere à progressão na carreira (GARCIA, 2001). Para responder à diversidade de situações hoje existentes nas instituições infantis e à multiplicidade de profissionais que atuam na área, torna-se necessário elaborar e avaliar propostas diferenciadas de formação. É necessário também aprofundar os estudos sobre especificidades do trabalho com crianças de diferentes idades dentro da faixa etária de zero a 6 anos. 7 2.5 O TRABALHO PEDAGÓGICO DO EDUCADOR INFANTIL O educador percebe que, desde bem pequenas, as crianças apresentam atitudes de interesse em descobrir o mundo que as cerca, elas são curiosas e querem respostas a seus porquês, o trabalho do educador é estimular e orientar as experiências por elas vividas e trazidas de casa, para que, no seu dia-a-dia, elas possam construir seu próprio conhecimento. O educador deve conhecer e considerar as singularidades das crianças de diferentes idades, assim como a diversidade de hábitos, costumes, valores, crenças, etnias das crianças com as quais trabalha respeitando suas diferenças e ampliando suas pautas de socialização. O educador é o mediador entre crianças e os objetos de conhecimento, organizando e propiciando espaços e situações de aprendizagens que articulem os recursos e capacidades afetivas, emocionais, sociais e cognitivas de cada criança aos seus conhecimentos prévios e aos conteúdos referentes aos diferentes campos de conhecimento humano (MONTEIRO, 2002, p. 5). Os aspectos inerentes à educação infantil saúde, afeto, segurança, interação, alimentação, estimulação, brincadeira, entre outros devem integrar o cuidar/educar de forma dinâmica. Assim, a saúde está presente na hora da higiene, na escolha do alimento adequado e na discussão. O afeto perpassa toda as ações, demonstrando para a criança, através da própria ação, como estabelecer vínculos afetivos nas relações sociais. A brincadeira deve permear todas as ações como jogo simbólico, através do qual a criança compreende a si e ao outro, tendo todo seu corpo e alma interagindo de forma a construir a si, ao outro e ao meio. Para todos esses aspectos é possível estabelecer elos, interações, relações desde que a ação pedagógica esteja em permanente e total vigilância, fazendo do cuidar/educar presença constante na realidade dos espaços de educação infantil. O agir pedagógico deve atender às reais necessidades das crianças, deve ser criativo, flexível, atendendo à individualidade e ao coletivo. Será o eixo organizador da aquisição e da construção do conhecimento, a fim de que a criança passe de um patamar a outro na construção de sua aprendizagem (OSTETTO, 2000). Pensar sobre isto implica reinventar o espaço de salas para que neles se dêem as interações do sujeito com o mundo físico e social, oportunizando-lhe vivências e situações de troca de ponto de vista, tomadas de decisões, sendo promovido, assim, sua autonomia e cooperação, tão importantes para a formação de um novo cidadão.

8 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS As instituições de educação infantil são equipamentos educacionais e não apenas de assistência. Nesse sentido, uma das características da nova concepção de educação infantil reside na integração das funções de cuidar e educar. Toda educação visa levar o indivíduo ao progresso, ao pleno desenvolvimento de suas capacidades inatas e adquiridas de forma constante e dialética. As instituições infantis são um dos contextos de desenvolvimento da criança. Além de prestar cuidados físicos, ela cria condições para o seu desenvolvimento cognitivo, simbólico, social e emocional. O importante é que a instituição seja pensada não como instituição substituta da família, mas como ambiente de socialização diferente do familiar. Nela se dá o cuidado e a educação de crianças, que aí vivem, convivem, exploram, conhecem, construindo uma visão de mundo e de si mesmas, constituindo-se como sujeito. A todo instante em que se relaciona com outras pessoas, se é educador e educando, pois se ensina e aprende-se trocando experiências e pratica-se o cuidar e o educar nas mais diversas atividades rotineiras. As crianças pequenas ainda estão desvendando o mundo, tudo é novo, deve ser trabalhado e aprendido, não são independentes e autônomas para os próprios cuidados pessoais, precisam ser ajudadas e orientadas a construir hábitos e atitudes corretas, estimuladas na fala e aprimoradas em seu vocabulário. A parceria com a família e os demais profissionais que se relacionam de forma direta e indireta com a criança é que vai ser o diferencial na formação desse educando. A vida na instituição infantil deve funcionar com base na tríade pais-educadorescrianças. O bom relacionamento entre esses três personagens é fundamental durante o processo de inserção da criança na vida escolar, além de representar a ação conjunta rumo à consolidação de uma pedagogia voltada para a infância. Separar o que é dever dos pais e o que é dever do educador pode significar a perda de certos momentos de formação e aperfeiçoamento do indivíduo que, em alguns casos, poderão jamais ser vivenciados novamente e acarretar danos em sua vida para sempre. O educador não pode trabalhar somente com o intelectual da criança, não são máquinas sem sentimentos. Em todo momento deve sentir e proporcionar às crianças momentos que lhes façam crescer, refletir e tomar decisões direcionadas ao aprendizado com coerência e justiça, o que não é tarefa fácil. 4. REFERÊNCIAS

BRASIL. REFERENCIAL CURRICULAR PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL. v. 1, Brasília: MEC/SEF, 1998. CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 2002.. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. 22. ed. São Paulo: Cultrix, 2001. DEMO, Pedro. Complexidade e aprendizagem: a dinâmica não linear do conhecimento. São Paulo: Atlas, 2002. GARCIA, Regina Leite. Em defesa da educação infantil. Rio de Janeiro: DPLA, 2001. KRAMER, S. A política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce. 5. ed. São Paulo: Cortez, 1995. MATURANA, H. & VARELA, F. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. 2. ed. São Paulo: Palas Athena, 2002. MORIN, Edgar. Ciência com consciência. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. OLIVEIRA, Z. de M. R. Educação infantil: muitos olhares. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1995. OSTETTO, Luciana Esmeralda. Encontros e encantamentos na educação infantil. Campinas: Papirus, 2000. PALHARES, S. M. Educação infantil pós-ldb: rumos e desafios. 2. ed. Florianópolis: UFSC, 2000. SIGNORETTE, A. E. R. S. et al. Educação e cuidado: dimensões afetiva e biológica constituem o binômio de atendimento. Revista do Professor. Porto Alegre, n. 72, p. 5-8,out./dez. 2002. WAJSKOP, G. Creches: atividades para crianças de zero a seis anos. São Paulo: Moderna, 1995. 9