RECUPERAÇÃO JUDICIAL EM CASOS DE CESSÃO FIDUCIÁRIA: A EXCLUSÃO DOS BANCOS DO PROCESSO Paulo Roberto Colombo Arnoldi Análise do Tema Questão nova mas controversa que vem se debatendo na doutrina e nos tribunais brasileiros é a referente à cessão fiduciária nos processos de recuperação judicial e falência, ou seja, se ela estaria sujeita ou não aos concursos de credores. Entende-se por garantia fiduciária aquela pela qual o devedor ou terceiro garantidor transmite ao credor a propriedade resolúvel de um determinado bem e o imuniza contra os riscos patrimoniais do devedor fiduciante, mesmo em caso de sua insolvência. A revogada Lei de Falências e Concordatas de 1945, Decreto nº 7.661/1945, era omissa quanto a essa matéria. A questão era resolvida pela jurisprudência que sufragava o entendimento de sua não sujeição ao concurso. A recente Lei de Concursos brasileira, Lei nº 11.101/05 (Lei de Falência e Recuperação de Empresas) procurou regulamentar o assunto, a nosso ver parcialmente em seu art. 49, 3º, onde expressamente exclui dos efeitos da insolvência os bens objeto de propriedade fiduciária, não se referindo, todavia, aos créditos fiduciários. Dispõe o referido artigo: 1
"Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. (...) 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial." Como se observa, tratando-se de credor titular da posição de credor proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais observada a legislação respectiva. Não se referindo, expressamente, ao crédito fiduciário. Alguns autores que defendem interesses de bancos, como Melhim Namem Chalhub e Luiz Roberto de Assis 1, têm entendido, numa interpretação mais extensiva que "a exclusão abrange todas as espécies de titularidade fiduciária, pois todas são forjadas sobre a mesma matriz da segregação patrimonial, que descola os bens transmitidos em fidúcia dos riscos patrimoniais das partes e os vincula a uma determinada finalidade". Esclarece Melhim N. Chalhub, que, vez ou outra, tem se colocado em dúvida se os créditos objeto da cessão fiduciária também estariam abrangidos pelo 1 CESSÃO fiduciária e a recuperação judicial. Jornal Valor Econômico, 24/26 jul. 2009, Legislação e Tributos. p. E.2.
referido 3º do art. 49, sob o argumento de que esse parágrafo refere-se somente a "bens móveis e imóveis", não se referindo a "créditos", de modo que, interpretando restritivamente esses últimos só seriam excluídos dos efeitos da recuperação se fossem mencionados expressamente. Sugere ainda que, enquanto objeto de garantia, os créditos fiduciários deveriam ter o mesmo tratamento legal dos créditos pignoratícios para os quais a lei prevê que "o valor eventualmente recebido em pagamento das garantias permaneceria em conta vinculada" durante o prazo de suspensão de 180 dias, conforme previsto na lei. Nesta linha de entendimento posicionam-se os Tribunais de Justiça do Mato Grosso e do Espírito Santo, ou seja, têm incluído os contratos nos créditos sujeitos à recuperação judicial e portanto, sujeitos ao plano apresentado pelo devedor. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, seguindo essa mesma linha de raciocínio em decisões anteriores sobre "travas bancárias", entendeu tratar-se de penhor, e não cessão fiduciária propriamente dita. Segundo o entendimento da 2ª Câmara Cível, essa condição não se enquadraria nas exceções previstas no 3º. Para essa Câmara o artigo em comento fala que o proprietário fiduciário não terá seus créditos submetidos aos efeitos da recuperação. Como no caso não se tratava de exceção prevista, os desembargadores liberaram 50% dos recebíveis futuros de duas empresas em recuperação judicial, levando em consideração o princípio da preservação da companhia previsto na lei 2. Melhim N. Chalhub, ressalta, todavia, que a jurisprudência majoritária dos Tribunais de Justiça de São Paulo e Paraná tem rechaçado esses argumentos, com base em quatro fundamentos legais. 2 Jornal Valor Econômico, 27 jul. 2009, Legislação e Tributos. p. E.1.
O primeiro é o art. 83, III, do CC/02 (Lei nº 10.406/02) que classifica "os direitos pessoais patrimoniais (aí estando incluídos os créditos)" como bens móveis para efeitos legais, e, na medida em que integram essa classe os créditos objeto de propriedade (titularidade) fiduciária, estando, portanto, compreendidos na norma de exclusão do 3º do art. 49. No que se refere à cessão fiduciária, esclarece que seja observada a "legislação respectiva", conforme dispõe a parte final do 3º do art. 49: 1) o contrato de cessão fiduciária opera a transferência ao credor da titularidade dos créditos cedidos, até a liquidação da dívida garantida; 2) as quantias recebidas são apropriadas pelo credor fiduciário, e não pelo devedor fiduciante; 3) é assegurado ao credor continuar recebendo os créditos mesmo em caso de falência da empresa cedente fiduciante, até a liquidação da dívida garantida - conforme dispõe o art. 63-B e parágrafos da Lei nº 4.728/65, e os arts. 18 a 20 da Lei nº 9.514/97. Deixa claro ainda que a tipificação da titularidade fiduciária afasta qualquer possibilidade de equiparação ao penhor. Para ele são garantias estruturalmente distintas e, por isso, dotadas de regimes jurídicos próprios, inconfundíveis. Pelo penhor, o devedor empenha os créditos, mas conserva-os em seu patrimônio, sendo essa razão pela qual se sujeitam aos efeitos da recuperação conforme previsto no 5º do art. 49. Já para a cessão fiduciária, o devedor fiduciário demite-se da propriedade e a transmite ao credor fiduciário e, porque estão fora do patrimônio do devedor é que os créditos cedidos não são alcançados pelos efeitos da recuperação, como prevê o 3º do art. 49. Salienta, por fim, que o 1º do art. 39 ratifica a exclusão dos créditos fiduciários ao impedir seus titulares de participarem das assembleias dos credores, em vista que elas apenas deliberam sobre os créditos vinculados ao patrimônio da empresa em processo de recuperação, o que não é o caso para ele
dos créditos fiduciários, cuja liquidação é feita com os bens atribuídos fiduciariamente ao próprio credor fiduciário 3. Paralelamente a esse entendimento, a 17ª Câmara Cível do TJRJ modificou seu posicionamento para beneficiar as instituições financeiras, decidindo pela manutenção da "trava bancária", mecanismo pelo qual o banco mantém a possibilidade de receber seus créditos, ainda que o devedor esteja em recuperação judicial. Por esse entendimento, o banco continuará com a posse dos recebíveis depositados na conta da empresa. Essa decisão é inovadora e uma das primeiras que se tem notícia no Brasil, na qual se analisa realmente os contratos de cessão fiduciária. A Desembargadora Relatora Luíza Cristina Bottrel Souza entendeu que a cessão fiduciária seria uma espécie de propriedade fiduciária, pela qual se transfere ao credor a propriedade do crédito. Por isso o valor estaria indisponível para entrar no processo de recuperação. Dessa decisão ainda cabe recurso ao STJ, que pacificará a questão. Todavia, caso seja mantida, o banco continuará a receber os futuros pagamentos feitos a empresa realizados por meio de cartões de crédito, no caso da Visa, como negociado no contrato de cessão fiduciária 4. Em oposição a esses entendimentos, Júlio Mandel, especialista na área concursal, afirma que apesar das decisões favoráveis aos bancos serem mais comuns, o entendimento é contrário ao espírito da lei, que é zelar pela recuperação das empresas. "A companhia terá dificuldades em se reerguer se todo o seu faturamento ficar comprometido com os bancos." 5 3 CESSÃO fiduciária e a recuperação judicial. Jornal Valor Econômico, 24/26 jul. 2009, Legislação e Tributos. p. E.2. 4 Jornal Valor Econômico, 27 jul. 2009, Legislação e Tributos. p. E.1. 5 CESSÃO fiduciária e a recuperação judicial. Jornal Valor Econômico, 24/26 jul. 2009, Legislação e Tributos. p. E.2.
Em conclusão, o que se observa é que o tema além de ser recente, pois a Lei nº 11.101/05 está com pouco mais de 3 anos de vigência, também é controverso, por falta de maior clareza da norma nesse aspecto, merecendo, por isso mesmo, uma análise mais aprofundada por parte da doutrina e da jurisprudência, que será pacificada em breve, como se espera, com o entendimento do STJ, ou em última instância, pelo STF, que dará a palavra final, sumulando a questão. Trata-se de tema relevante e de interesse dos bancos enquanto fornecedores de crédito, que querem garantias e segurança jurídica quanto ao seu recebimento, em vista que ele é o elemento catalisador do desenvolvimento econômico e social por conta do efeito benéfico para a produção de bens e serviços para a coletividade, e, consequentemente, da redução do custo do dinheiro. Por outro lado, as empresas que são as tomadoras desse crédito não podem ficar desamparadas, sem fluxo de caixa, principalmente em momento de desequilíbrio econômico-financeiro, sob pena de inviabilizar o seu negócio, agravando o quadro da crise, com possibilidade de falência, o que vai contra o espírito da lei.