Representações Culturais no Brasil: Telenovela, Carnaval e Memória



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Transcrição:

Representações Culturais no Brasil: Telenovela, Carnaval e Memória Clarice Greco 1 Ligia Maria Prezia Lemos 2 Rafaela Bernardazzi 3 Universidade de São Paulo - USP Resumo O Brasil é um país marcado por fortes representações culturais e manifestações populares. Destacamos no presente artigo dois dos principais símbolos da cultura brasileira: o carnaval e a telenovela. A telenovela é marca registrada da televisão brasileira, por fazer parte das famílias e da história nacional. O carnaval é uma festa popular mundialmente famosa, muito associada ao Brasil, que atrai turistas todos os anos. No ano de 2013, a escola de samba São Clemente levou para a Sapucaí elementos marcantes das telenovelas brasileiras. O desfile uniu esses dois símbolos nacionais e foi ao encontro de um tema que tem recebido grande atenção: a memória social. O artigo traz uma exploração inicial sobre a importância da memória social e afetiva para a preservação e continuidade das manifestações culturais e populares. Palavras-Chave: Ficção Televisiva Brasileira; Telenovela; Carnaval; Memória; OBITEL. Introdução Duas grandes matrizes da cultura brasileira, telenovela e carnaval, fazem o papel de fio condutor de nossa discussão sobre memória e televisão. Tanto a telenovela quanto o carnaval podem ser considerados um evento midiático popular (popular media event) que, entre outras coisas, imprime características de ritual que favorecem a integração das sociedades. (COULDRY; HEPP, 2010). São, portanto, duas representações culturais e simbólicas que fazem parte da memória coletiva nacional. A telenovela, ao longo dos anos de participação na vida familiar, tornou-se parte do cotidiano. A convivência diária e duradoura fez com que as histórias e personagens retratados passassem a integrar a memória dos telespectadores, tornando-se forte representação de 1 Doutoranda e Mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo ECA-USP. Pesquisadora do Centro de Estudos de Telenovela (CETVN/ECA-USP) e do Observatório Ibero-americano de Ficção Televisiva (OBITEL). Bolsista FAPESP, n o. Processo: 2012/05000-6. claricegreco@usp.br 2 Doutoranda e Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo USP. Especialista em Gestão da Comunicação, pela mesma Instituição. Pesquisadora do Centro de Estudos de Telenovela (CETVN/ECA-USP) e do Observatório Ibero-americano de Ficção Televisiva (OBITEL). Bolsista CNPq. E-mail: ligia.lemos@usp.br 3 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo ECA-USP. Bolsista Capes. Pesquisadora do Centro de Estudos de Telenovela (CETVN/ECA-USP) e do Observatório Ibero-americano de Ficção Televisiva (OBITEL). E-mail: rafaelaleite@gmail.com

lembranças pessoais. Essa memória afetiva, no caso da televisão, adquire proporções coletivas, já que os mesmos programas cultuados por milhares de telespectadores permanecem vivos, cada um a sua maneira, na memória daqueles que os assistiram. Assim, relembrar uma telenovela é também relembrar uma época da vida. Ao mesmo tempo o carnaval também possui forte participação de todas as camadas populares e recebe grande atenção da mídia. De desfiles com carros alegóricos ao carnaval de clubes, a tradição carnavalesca no Brasil data de meados do século XXVII 4 e com o passar dos anos tornou-se a maior festa popular do País. A participação de foliões de todas as classes sociais e idades faz com que o carnaval seja, também, objeto presente na memória social e afetiva brasileira. Porém, mais do que isso, ele é capaz de recuperar e representar essa memória. Foi o que fez a Escola de Samba São Clemente no carnaval do Rio de Janeiro em 2013, que apresentou o tema Horário Nobre, uma representação dos marcos da história da telenovela. O tema foi tratado no capítulo do Brasil no Anuário Obitel da Ficção Televisiva 2013 (LOPES et. al, 2013), a partir das diversas representações da memória da ficção televisiva no Brasil. Para este artigo, focaremos em um estudo de caso do desfile da Escola São Clemente. A telenovela como memória social e afetiva O processo de recuperação da memória social reflete a forma com que os indivíduos se apropriam de determinados acontecimentos do passado, elaborando e incorporando à sua memória elementos, personagens, histórias, músicas, rituais e visões de mundo que reforçam sua identidade (HERSCHMANN; TROTTA, 2007, p. 72). Assim, ao longo dos últimos cinquenta anos, esse produto televisivo destacou-se, entre outras coisas, como forma de memória que registra, no curso do tempo, o processo de transformação da sociedade brasileira. (MOTTER, 2000-2001, p. 76). No caso da televisão, a afetividade adquire proporções coletivas. Os mesmos programas, cultuados por milhares de telespectadores, permanecem vivos, cada um à sua maneira, na memória daqueles que os assistiram. Essa memória coletiva confere outra dimensão às lembranças. Como explica Halbwachs (2006), se a lembrança própria pode se basear também na de outras pessoas que dela compartilham, aumenta a confiança na precisão 4 Brasil Escola. A história do carnaval no Brasil. Disponível em: http://www.brasilescola.com/carnaval/historiado-carnaval-no-brasil.htm. Acesso em 12.08.2013.

da recordação. Assim, os fatos passados assumem importância maior e acreditamos revivê-lo com maior intensidade, porque não estamos mais sós ao representá-los para nós. (2006, p. 30). Quando assistimos a reprises ou a programas especiais que relembrem trechos das telenovelas, reavivamos as lembranças que são associadas aos elementos emocionais que fazem parte da história do próprio telespectador, então revivemos um determinado sentimento. Segundo Nora (1993), enquanto a história representa o passado, a memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente. Assim, a telenovela atua como um produtor e uma fonte de armazenamento de dados do presente atuando na composição da memória coletiva como uma vertente de grande potência pelo seu poder de abrangência e reiteração. (MOTTER, 2000-2001, p. 18). A memória renasce em figura coletiva apenas porque uma consciência individual tomou a decisão de fazê-lo pois, antes de tudo, é preciso ter vontade de memória (NORA, 1993, p. 22). Essa vontade de memória é impulsionada pelo fenômeno que a telenovela representa no Brasil, como narrativa da nação (LOPES, 2003), por promover a unidade e identidade nacional, criando um processo de culto à ficção. A telenovela, portanto, ao renovar aspectos da memória, é responsável por torná-la novamente um fenômeno coletivo. Ricoeur (2007) atenta, porém, para o fato de que é impossível narrar tudo. Os núcleos de ação, as personagens, o foro familiar, profissional etc. são escolhas do autor para contar determinada história. Mas para que isso aconteça, não basta o autor recolher testemunhos individuais. É necessário que as memórias tenham pontos de contato, que dialoguem, para que a lembrança seja reconstruída sobre uma base comum (HALBWACHS, 2006). Apenas fazendo parte do mesmo grupo podemos compreender que uma lembrança seja ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída. A referência a determinados aspectos de uma ficção objetiva criar uma atmosfera de familiaridade com a maioria dos telespectadores, que possuem um repertório comum. Do mesmo modo, é possível que um grande número de lembranças ressurja porque outros provocaram as recordações. Esses outros representam a memória coletiva, que não precisa ser materialmente presente para suscitar lembranças comuns. No caso do desfile de carnaval que homenageou as telenovelas, a escola São Clemente apresentou um ponto de vista, por meio da ordem e divisão das alegorias, destacando personagens e títulos escolhidos pelo público. Porém, deste grupo, milhares de telespectadores fazem parte, por carregarem referenciais em comum. As representações da avenida estão presentes na memória coletiva, independentemente da ordem em que foram apresentadas. Aquela do carnaval foi uma das

possíveis reconstruções do objeto da lembrança de muitos. Nas palavras de Halbwachs, é fato que em cada consciência individual as imagens e os pensamentos que resultam dos diversos ambientes que atravessamos se sucedem segundo uma ordem nova e que, neste sentido, cada um de nós tem uma história (2006, p. 57). Esta que aqui focalizamos foi contada no carnaval. Carnaval, memória e telenovela Festa popular com raízes em povos antigos, o carnaval brasileiro está em constante processo de mutação e evolução sendo que, atualmente, as escolas de samba e os desfiles tornaram-se os grandes protagonistas (DAMATTA, 1997). Como representante do bairro do Botafogo, da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, no Grupo Especial, a São Clemente foi buscar nas lembranças, na memória afetiva dos telespectadores, as telenovelas mais queridas do público. Para isso, o carnavalesco e os integrantes da escola de samba foram às ruas com a questão: Que novela marcou sua vida?. Cerca de 200 pessoas responderam, nas ruas da cidade, em diversos lugares de alta concentração como o Mercadão de Madureira e o Largo da Carioca, no próprio barracão da São Clemente e, também, na internet, no Facebook e no site da Escola de Samba 5. Entre todas as telenovelas, as mais votadas foram Que Rei Sou Eu e Roque Santeiro. Para Bosi (1987), a memória coletiva é feita, justamente, pela memória afetiva, pelas recordações de cada indivíduo capaz de memorizar e reter o que é significativo dentro de um conteúdo comum. A memória da pessoa é, portanto, intrinsecamente ligada à memória do grupo que, por sua vez, une-se à esfera maior da tradição que é, ao fim e ao cabo, a memória coletiva de cada sociedade (HALBWACHS, 2006). Aquelas lembranças recolhidas a partir das respostas obtidas nas entrevistas, das recordações pessoais daquela sociedade, foram reelaboradas e ressemantizadas criando a pauta do enredo que a Escola de Samba iria mostrar no desfile de carnaval: Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, desloca estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência (BOSI, 1987, p.9). Marilena Chaui 6 pontua que relembrar não é reviver, mas re-fazer. É reflexão, compreensão do agora a partir do outrora; é sentimento, reaparição do feito e do ido, não sua mera repetição. Assim, para a memória, fica o que significa. Retratando personagens e situações do universo das telas de televisão, 5 São Clemente abre segunda noite no Rio com homenagem a telenovelas. Portal G1. 11/02/2013. 6 Apresentação do livro Memória e Sociedade de Ecléa Bosi.

o enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba São Clemente do Rio de Janeiro no Carnaval 2013 levou 3500 componentes para a avenida, divididos em 40 alas, que falavam dos telespectadores, dos produtores e artistas e, também, dos títulos, capítulos, cenas e personagens memoráveis de 54 telenovelas da Globo. Memória do futuro e transmidiação Atualmente é impossível falar da telenovela brasileira sem tratarmos do fenômeno da transmidiação, ou seja, do espalhamento do conteúdo e das audiências por múltiplas telas e plataformas. Registramos, assim, a telenovela brasileira na TV, nas mídias móveis, nas exteriores, na internet, em revistas, livros, TV paga e, nesse caso em particular, nas ruas, no carnaval. Esse espalhamento cria memórias e gera caminhos para construção de novas lembranças e, nesse sentido, podemos reiterar que Se queremos que nosso tempo seja lembrado com dignidade, devemos ajustar nossos instrumentos para avaliá-lo adequadamente. Nosso tempo se reduz a este agora, apenas um lapso entre os outros dois tempos. O futuro espera de nós, como seu passado, que o ajudemos a resolver os problemas do seu presente, o que pressupõe entender o nosso presente como memória do futuro (LOPES, 2004, p. 291). O Grêmio Recreativo Escola de Samba São Clemente faz de si instrumento ao concretizar memórias sociais e afetivas da telenovela no desfile da Sapucaí e, também, em seu site cujo endereço eletrônico 7 traz ao público informações sobre a escola e o desfile Horário Nobre. Construindo a memória do futuro, o design do site está estruturado de forma que a parte esquerda receba mais atenção, local no qual está posicionada a aba com links que levam a grande parte do conteúdo. A primeira informação que aparece ao usuário é um banner com a inscrição Favela informando o tema que será abordado pela escola no carnaval 2014. Na parte superior do site encontram-se botões sobre o último desfile apresentado pela escola, tais como: sinopse, samba enredo, fantasias, ficha técnica e fotos. A cabeça do site traz a foto de uma passista com a frase o preto e o amarelo, orgulho da gente! ao lado do brasão da escola. Em destaque, na parte central da página, informações recentes sobre a agremiação. Na aba lateral esquerda estão separados botões que disponibilizam mais informações sobre a história da escola, contando sobre a fundação da escola e a escolha das cores do brasão, sobre os presidentes que lideraram a escola a partir de 1980, os títulos conquistados, carnavais 7 Endereço eletrônico: <http://www.saoclemente.com.br/> Acessado em 06 de abril de 2013.

anteriores, traçando um histórico desde 1962 até o último, em 2013. A partir de 2007 a escola disponibiliza links direcionando para outra página com mais informações sobre cada desfile, como o samba enredo, posição que a escola ficou naquele ano, ficha técnica, sinopse e um vídeo com os desfiles completos. Outro botão direciona para o Centro Cultural, local responsável pela catalogação de arquivos históricos da escola, que oferece também oficinas de samba, fantasia, cavaquinho. O botão Boutique não é direcionado para uma página existente, dando erro ao ser clicado. E ao final da aba lateral o botão Quadra mostra detalhes da estrutura da quadra e sua localização com ligação ao site do Google Maps. Figura 1. Site oficial do Grêmio Recreativo Escola de Samba São Clemente O site conta também com uma área para participação do público, na aba lateral esquerda, a área Orgulho Clementino, onde são exibidas fotos enviadas por fãs que tatuaram alguma homenagem para a São Clemente e outra área para fãs que enviaram fotos vestindo camisa, boné, ou segurando bandeira da escola de samba em diversos lugares do mundo. Ainda na aba esquerda há uma área para contato com a São Clemente ou com a assessoria de imprensa em que o usuário pode redigir uma mensagem e enviar pelo site, ou entrar em contato pelo e-mail ou telefone da escola. Movendo para a parte inferior do site a escola reserva espaço para divulgação da

revista eletrônica 8, disponibilizada integralmente para visualização do público em duas línguas: português e inglês, contendo detalhes sobre o último desfile apresentado no carnaval. A revista desse ano de 2013, ao longo de suas 64 páginas, mostra os preparativos e as novidades que a agremiação trouxe para o desfile, que teve como samba enredo Horário Nobre, um passeio pelas novelas que mais marcaram o Brasil. O resultado da enquete foi mostrado no desfile da escola e consta na revista em forma de entrevistas e fotografias das fantasias e adereços, com explicação detalhada sobre cada ala. Figura 2. Revista eletrônica e vídeo do desfile disponíveis no site da escola de samba. A revista lembra partes da história da escola e sua ligação com o futebol, além de matérias com integrantes, velha guarda, as baianas, passistas, bateria, projetos desenvolvidos com a comunidade, como oficinas de bateria, e a ligação com público e integrantes da escola que participam de atividades complementares. Ao final da revista são expostas fotos dos fãs da São Clemente que tatuaram homenagens à escola. A parte inferior do site também traz fotos dos participantes da escola e disponibiliza o vídeo do desfile de 2013, transmitido pela Globo. 8 Revista eletrônica G.R.E.S. São Clemente: <http://www.eupensomais.com.br/revista/saoclemente/?pg=auth&evento=revista&idconvitedestino=saoclemente#/sao %20CLEMENTE/14>. Acessado em 06 de abril de 2013.

Figura 3. Página do Facebook do Grêmio Recreativo Escola de Samba São Clemente Ao final do site há botões para acessar as mídias sociais da São Clemente. O link para o Facebook direciona o usuário para uma fanpage 9 com 2806 usuários 10 cadastrados e o Youtube leva o interessado ao canal da São Clemente 11, com um vídeo disponível para visualização. O último conteúdo visível do site na parte inferior são os endereços do Centro Cultural São Clemente, do Barracão - Cidade do Samba e da quadra da escola. Vemos, assim, o carnaval inserido no ambiente das múltiplas plataformas da mesma maneira que observamos a telenovela brasileira que, atualmente, oferece ao telespectador cada vez mais possibilidades de acesso e interatividade nessas plataformas. Entre essas, destacamos ambiente mobile, sites, redes sociais, TV digital e mídia exterior ou, resumindo, a ideia de everywhere display (espalhado por todo o lugar) (MÉDOLA e REDONDO, 2009, p.146). O presente da memória: a telenovela no desfile de carnaval O enredo Horário Nobre apresentou as telenovelas que ficaram, que significaram para aqueles entrevistados pelo carnavalesco da Escola de Samba. Assim, no desfile, surgiram telenovelas como designadoras de setores temáticos inteiros, como Estrela Guia e Por Amor; 9 Facebook GRES São Clemente: <https://www.facebook.com/pages/gres-s%c3%a3o-clemente- OFICIAL/264802863543896>. Acessado em: 12 de abril de 2013. 10 Dados atualizados dia 12 de abril de 2013. 11 Youtube São Clemente: <http://www.youtube.com/channel/ucny5yzlyfle7cvljfqpmula?feature=guide>. Acessado em: 12 de abril de 2013.

ou representadas em grandes alas como Barriga de Aluguel, Brega e Chique e A Próxima Vítima; ou, ainda, descritas em tripés e carros alegóricos como Dancin Days, Gabriela e Caminho das Índias; todas elas parte significativa do imaginário e da cultura popular brasileira. Personagens marcantes destacaram-se tal como Crô, de Fina Estampa, personificado no figurino dos integrantes da bateria e, também, os principais ícones de nossa teledramaturgia como Carminha, Sinhozinho Malta, Odete Roitman e Escrava Isaura presentes na coreografia Espelho Mágico da Comissão de Frente. Em nosso estudo foi possível observar que a quantidade de reapresentações, de regravações, de apresentações no Vale a Pena Ver de Novo e de lançamentos em DVD podem ser instrumentos de reforço de memória. Um primeiro ponto a ser destacado foi que a construção da memória da telenovela específica para o desfile foi temática e não cronológica, o que possibilita várias abordagens e aproximações. Assim, ao organizar tal escolha na linha do tempo, constatamos que as telenovelas mais lembradas foram as das décadas de 1970 Selva de Pedra, O Bem Amado, Roque Santeiro, Dancin Days entre elas e de 1980 Ti-ti-ti, Sinhá Moça, O Salvador da Pátria, ambas com 14 obras citadas no desfile. Figura 4. Distribuição cronológica das telenovelas apresentadas Os anos 1970 e 1980 foram férteis em termos de produção e, principalmente, de audiência e repercussão da telenovela brasileira. Entre as obras mais representativas podemos citar Irmãos Coragem (1970-71), Selva de Pedra (1972-73), Pecado Capital (1975-76), O Astro (1977-78), Dancin Days (1978-79), Roque Santeiro (1985-86), Vale Tudo (1988-89), Tieta (1989-90) todas essas representadas no desfile. Realizamos, a seguir, levantamento com um detalhamento referente a reapresentações,

regravações, apresentações no Vale a Pena Ver de Novo e lançamentos em DVD das telenovelas presentes no desfile: Figura 5. Telenovelas do desfile: apresentações, reapresentações, regravações, Vale a Pena Ver de Novo e lançamentos em DVD Dessas 54 telenovelas apresentadas, 28 foram exibidas uma ou mesmo duas vezes no programa Vale a Pena Ver de Novo no horário vespertino da Globo; doze foram regravadas; uma reapresentada e sete saíram em DVD. Porém, apesar de oferecer um panorama das iniciativas de repetição como fator de reforço da memória, esses dados não nos oferecem um quadro preciso das repetições e sua consequente relação com a fixação na memória por apresentar números simples e não suas variáveis combinatórias. Figura 6. Telenovelas do desfile: apresentações, reapresentações, regravações, Vale a Pena Ver de Novo e lançamentos em DVD

Assim, buscamos outra aproximação em que pudéssemos observar, entre as possíveis, todas as combinações de repetição realizadas e que, dessa maneira, revelassem com qual obra o público teve maior contato. Tivemos, então, os seguintes resultados: das 54 telenovelas representadas no desfile da Escola de Samba São Clemente, 20 foram apresentadas apenas uma vez na televisão aberta; 15 estiveram presentes também no Vale a Pena Ver de Novo; duas foram apresentadas e, depois, regravadas; e três foram apresentadas e lançadas em DVD. Das 14 restantes, as combinações foram mais vastas e tivemos: cinco telenovelas que foram apresentadas, reapresentadas no Vale a Pena Ver de Novo e regravadas (Roque Santeiro, Gabriela, Dona Xepa, Ti-ti-ti e A Moreninha); três que foram reapresentadas duas vezes no Vale a Pena Ver de Novo (A Gata Comeu, Chocolate com Pimenta e Mulheres de Areia); e uma delas, além de reapresentada duas vezes no Vale a Pena Ver de Novo, também foi regravada (Sinhá Moça). Figura 7. Telenovelas do desfile: combinações de apresentações, reapresentações, regravações, Vale a Pena Ver de Novo e lançamentos em DVD Portanto, uma das telenovelas mais lembradas na pesquisa realizada pelos carnavalescos da Escola de Samba São Clemente, Roque Santeiro, foi apresentada, reapresentada no Vale a Pena Ver de Novo e regravada. A outra, Que Rei Sou Eu?, foi apresentada e lançada em DVD. Para Bosi (1987), a recordação é uma organização móvel cuja base varia entre um ou outro aspecto do passado e, por essa razão, há sistemas diferentes produzidos pela memória de cada um dos espectadores do mesmo fato, ou seja, cada indivíduo desenrola os fios da meada de diversas outras memórias e, assim, encontra

suas lembranças. Considerações finais A recuperação dos títulos, personagens e demais marcos das telenovelas durante o carnaval demonstra a presença marcante desse gênero televisivo no imaginário popular. O desfile de carnaval é em si uma manifestação do imaginário coletivo, que exalta tantas outras representações simbólicas. Em 2013, no desfile da Escola São Clemente, as telenovelas escolhidas pelo público representaram a memória social coletiva, uma vez que demonstram os elementos comuns a vários sujeitos. Os elos e intersecções da memória ressaltam características de determinadas telenovelas, que as tornam eternas. Ainda, a decisão de rememorar a telenovela à luz das lembranças dos telespectadores, a partir do carnaval, reforça a importância de se recordar. As telenovelas fizeram parte da vida de cada indivíduo que as acompanhou. Assim, se a memória é um fenômeno vivido no eterno presente (NORA, 1993), recordar as telenovelas passa a ser recordar nós mesmos, nosso passado, e refletir sobre nosso presente. E, portanto, imprescindível que a telenovela, enquanto produto histórico nacional e da cultura popular, não seja esquecida. E está na própria audiência a fonte dessas lembranças, que deve ser sempre alimentada. Figura 8. Comissão de frente

Referências BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T.A.Queiroz, Editor, 1987. COULDRY, Nick; HEPP, Andreas. Introduction: Media events in globalized media cultures. In: COULDRY, Nick; HEPP, Andreas; KROTZ, Friedrich. Media events in a global age. New York: Routledge, 2010. DAMATTA, Roberto.Carnavais, malandros e heróis: Para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1997. HALBWACHS, Maurice. A Memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006. HERSCHMANN, Micael; TROTTA, Felipe. Memória e legitimação do Samba & Choro no imaginário nacional. In: RIBEIRO, Ana Paula Goulart; FERREIRA, Lucia Maria Alves. (orgs.) Mídia e Memória: a produção de sentidos nos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. A telenovela brasileira: uma narrativa sobre a nação. Comunicação & Educação, v.26. São Paulo, jan/abr, 2003. LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. Telenovela: Internacionalização e Interculturalidade. São Paulo, Loyola, 2004. LOPES, Maria Immacolata Vassallo et al. Brasil: a telenovela como fenômeno midiático. In: Lopes, Maria Immacolata Vassallo de; Gómez, Guillermo Orozco. (Org.). Anuário OBITEL 2013. Porto Alegre: Sulina, 2013 (no prelo). MÉDOLA, Ana Silvia Lopes Davi e REDONDO, Léo V. A. Interatividade e pervasividade na produção da ficção televisiva brasileira no mercado digital. Matrizes / Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo Volume 3, n.1. São Paulo: ECA/USP, 2009. MOTTER, Maria Lourdes. A telenovela: documento histórico e lugar de memória. Revista USP, São Paulo, n. 48, dez/fev 2000-2001. p. 78-87. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-graduados em história e do Departamento de História. PUC/SP. N 10. Dezembro/1993. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.