Lições do portal. A singularidade da linguagem dos videojogos ABSTRACT INTRODUÇÃO ISSN 2014-0576



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Lições do portal ISSN 2014-0576 A singularidade da linguagem dos videojogos Autoria Nelson Zagalo Nelson Zagalo é professor e investigador da Universidade do Minho (UM). Doutorado em Tecnologias da Comunicação pela Universidade de Aveiro, é atualmente diretor do Mestrado em Media Interativos e membro da comissão diretiva do Mestrado em Tecnologia e Arte Digital, ambos da UM. É co-director do laboratório engagelab do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade. Foi membro-fundador da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos. Possui mais de setenta publicações com arbitragem científica nas áreas das ciências dos videojogos, cinema, emoção e narrativas interativas. Nelson Zagalo é editor do blog Virtual Illusion e autor dos livros "Emoções Interactivas, do Cinema para os Videojogos", e "Videojogos em Portugal - História, Tecnologia e Arte" que deverá sair no final de 2013. Conteúdo Abstract Introdução 1. Arte e Media 2. A Singularidade Estética 2.1. Media interativos 2.2. Expressão narrativa 3. As Camadas dum Videojogo 3.1. Ambiente 3.2. Personagem 3.3. Interatividade (navegação, manipulação, e participação) 3.3.1. Navegação 3.3.2. Manipulação 3.3.3. Participação 4. Criação de Sentido na Interatividade 5. Conclusão Referências ABSTRACT Nesta lição analisamos a linguagem que permite aos videojogos comunicar ideias e estimular emoções nos jogadores. Apresenta-se uma abordagem que coloca os videojogos mais ao lado das artes, e menos dos jogos tradicionais. Desenvolve-se o suporte teórico para essa abordagem a partir do estabelecimento de parâmetros que caracterizam a singularidade expressiva do videojogo, de modo comparativo. Defende-se os videojogos, como um novo meio de comunicação, e não como uma mera extensão dos jogos tradicionais, fundamentados nas regras, para assumir a interatividade como o seu centro expressivo. INTRODUÇÃO Os videojogos são fruto de tecnologia criada no âmbito da produção cultural humana, e servem a exteriorização da expressividade e criatividade humanas. Como grande parte das tecnologias, a base de partida para a criação dos videojogos assentou em pressupostos diferentes da finalidade que viriam a servir. Os videojogos nasceram de uma vontade de comunicar com a máquina, de criar uma relação humano-computador (Douglas, 1959), dotando a mesma de inteligência e capacidade de diálogo. Neste sentido a expressividade humana viria a ser servida apenas numa fase seguinte, quando se passou a pensar a relação humano-computador como passível de servir a mediação estética. A máquina nos videojogos, não cria, não se expressa, serve apenas de canal de comunicação entre criadores e receptores. O videojogo é um medium, e os artefactos que nele circulam são obras expressivas. Deste modo ao longo deste artigo procuraremos desconstruir e trabalhar os códigos subjacentes a este medium, destacando a singularidade estética presente nos seus elementos mínimos assim como apresentando as suas particularidades na criação de sentido. Tendo em conta a grande diversidade de que é feito o medium do videojogo, não temos pretensões de apresentar uma teoria que cubra toda a área. Assim, realizámos um recorte em redor dos videojogos que utilizam de modo explícito a narrativa, tais como os dos géneros

de aventura (ex. Myst, 1993) e de ação-aventura (ex. Tomb Raider, 1996), FPS (ex. Half-Life, 1998). O nosso objectivo é muito claramente trabalhar o domínio da expressividade humana, neste caso a expressividade criada através do meio dos videojogos. 1. ARTE E MEDIA A raiz conceptual do videojogo surge nos anos 1950, tendo a sua vertente narrativa gráfica procurado desenvolver-se ao longo de toda segunda parte do século XX, atingindo aquilo que podemos denominar de estabilidade e unidade discursiva apenas na entrada do século XXI. É frequente ouvir do lado mais crítico aos estudos dos videojogos que o meio, passados 50 anos, está muito longe de atingir as capacidades expressivas que o cinema já possuía com esta idade. O que pode parecer verdade, mas peca por desconhecimento das tecnologias envolvidas na criação de ambos os meios. Em termos técnicos, o cinema é uma evolução da fotografia, uma tentativa de fotografar muitas vezes e rapidamente a realidade, de forma a capturar o movimento. A primeira experiência material foi conduzida em 1877 por Muybridge, mas atingiu um estado comercial apenas com os irmãos Lumière em 1895. Da mesma forma os videojogos iniciaram-se materialmente em 1959, mas atingiram o seu estado comercial apenas em 1971. Por outro lado, nos 30 anos que se seguiram aos irmãos Lumière, o cinema criou modelos de contar histórias apenas visualmente. Quando o som chegou a meio dos anos 1920, muito do que se tinha feito teve de ser reaprendido, reinterpretado e reconstruído. No caso dos videojogos, os primeiros objetos à semelhança dos primeiros filmes, eram bastante rudimentares em termos narrativos, não passavam do patamar de jogo, com as condições de destreza e os elementos de competição (ex. Pong, 1972; Breakout, 1976). O primeiro objecto audiovisual interativo explicitamente narrativo data de 1979, Adventure criado por Warren Robinett para a Atari. Robinett marcava assim a forma através da qual uma tecnologia dada apenas a ações de jogo, iria passar a servir também eventos narrativos. Apesar deste marco, a tecnologia existente era ainda muito limitada, obrigando a que a expressividade decorresse muito assente em abstrações visuais, por incapacidade de processamento gráfico. Nos anos 1980 as tecnologias melhorariam bastante, e começariam a ver-se os primeiro frutos do trabalho de Robinett, agora com maior potencial gráfico à disposição, com trabalhos chave como The Legend of Zelda (1986) ou Prince of Persia (1989). A perícia técnica no uso do potencial gráfico começa a dar os seus frutos no campo estético, com Alone in the Dark (1992) que apresenta inovações ao nível do enquadramento da ação e fluidez narrativa. Mas é a meio da década de 1990 que os videojogos vão dar um salto estético, passando da representação 2D para a representação 3D. Algo que em termos expressivos, e capacidade narrativa, teria o mesmo impacto que teve o salto do cinema mudo para o cinema sonoro. Neste sentido, Tomb Raider (1996) é a reinterpretação estética, totalmente renovada em termos de linguagem, de Adventure de Robinett. Passados quase 20 anos, os videojogos reaprendem como se conta uma história, como se comunica com uma audiência. Este novo mundo técnico, surgido no final do século passado, vai permitir assim que a primeira década dos anos 2000 se defina como a mais importante da história do meio, na definição das suas capacidades estético-expressivas. Em 2001, vamos ter artefactos como Ico ou Grand Theft Auto III que definem em si mesmos tudo aquilo que o meio poderia fazer por um autor. Daqui para a frente, fala-se apenas de inovação artística do meio, não dependente da tecnologia. A tecnologia naturalmente não parou, tal como o cinema, que passou do 4:3 para o cinemascope, do som mono para o som espacial, ou da projeção tradicional para a estereoscópica. Mas as evoluções tecnológicas passaram a servir o meio mais no engrandecimento do espetáculo, do que em transformações da gramática subjacente ao modo de comunicar. Deste modo, podemos dizer que os videojogos são um dos meios de expressão artística mais jovens, tanto conceptualmente, como em termos do seu estabelecimento formal. O que torna inevitável procurarmos compreender de que é feita a sua capacidade expressiva, como funciona este novo meio de expressão humana. Para isso nada melhor do que realizar uma comparação com as formas de arte que o precederam. A base plástica assente em paradigmas do audiovisual tem conduzido a análise a uma constante comparação com o cinema, contudo quero aqui alargar essa discussão. Para compreendermos a arte do videojogo, não basta compreender a lógica emancipatória a partir do cinema, precisamos de compreender também de onde surgiu o próprio cinema. Compreender a autonomização do cinema, ele próprio assumidamente um fruto de síntese de artes anteriores. O cinema é informalmente designado por 7ª arte, porque a evolução do seu discurso estético assentou na combinação de outras formas de expressão artísticas que o precederam (Canudo, 1927). O cinema é na verdade uma arte de fusão, e é a primeira linguagem multimédia de sempre. Não existiria cinema sem Teatro e Fotografia, assim como sem Literatura, Arquitetura, Pintura e Música. O videojogo contém em si mesmo tudo aquilo que o cinema contém, por isso nos interessa perceber o que o cinema alcança. É para nós claro que antes de surgir o cinema enquanto meio de expressão, e não mera tecnologia, tivemos o teatro. O cinema não é mais do que o resultado da plastificação do teatro, sob o desígnio expressivo da fotografia. Depois de termos conseguido melhorar a tecnologia de suporte ao registo da realidade, nomeadamente termos conseguido passar a fotografar a realidade várias vezes por segundo, o passo seguinte foi apontar essa possibilidade de registo para um palco de teatro. O objectivo primeiro foi o registo apenas, depois descobriu-se o seu potencial para transformar a comunicação teatral em tempo real e presencial num novo modo assíncrono e à distância. A pintura distanciou-se do retrato da fotografia, mas o teatro viu nesta, todo um novo mundo de possibilidades expressivas. Com o tempo a arte teatral que era registada por câmaras, agora condicionada por variáveis de distância e tempo diferentes, passou a trabalhar de forma diferente. Era agora possível num curto espaço de tempo mostrar mais do que um cenário, era possível mostrar mais perto ou mais longe, era possível contar histórias não apenas baseadas nas ações dos atores, mas também baseadas na forma e tempo como eram mostradas essas ações. Ou seja, tínhamos criado a montagem, e com ela nascia a essência narrativa do cinema. A relação do cinema com a fotografia também se alterou. Nasceu como fruto da tecnologia, e em termos expressivos começou por lhe fazer jus, mas a sua essência formal nunca deixou de procurar pontes com a pintura, nomeadamente no campos dos efeitos visuais. Com o surgimento do digital e das imagens geradas integralmente por computador, a distância para com a fotografia acentuou-se. A componente plástica do cinema está hoje numa encruzilhada de forças, de um lado o purismo fotográfico do outro a força e a liberdade visual que só a pintura pode conferir. Este conflito é importante porque o videojogo apesar de utilizar uma base de movimento visual tal como o cinema, sempre o fez a partir da pintura. Houve fases na sua evolução em que a fotografia o serviu, mas podemos referir essas fases mais como correntes experimentais do que propriamente como base integrante da estética do meio. Assim o tempo e a evolução artística de ambos os meios, o cinema e o videojogo, encarregaram-se de os aproximar sob uma orientação de convergência nos modos de representação (Zagalo, 2007).

2. A SINGULARIDADE ESTÉTICA Com o aparecimento do digital os media começaram a ser rotulados de digitais, de novos e de multimédia. Cada uma destas designações tem servido como definição de momento, mas não tem conseguido transmitir a ideia do que está verdadeiramente em causa com o aparecimento digital. Ou seja, nenhuma destas designações identifica o que mudou no mundo dos media. Sendo os videojogos um destes novos media, é importante para nós aqui perceber o que o torna diferente, o que o torna singular face às anteriores formas de expressão. Nesse sentido sabemos que a mera designação de novo é desprovida de qualquer valor qualificativo da capacidade expressiva do meio. Do mesmo modo a palavra digital pouco acrescenta, já que todos os media, novos ou antigos, são hoje digitais. Ainda o multimédia, o identificador mais utilizado pela tecnologia, serve de pouco quando pretendemos catalogar um novo media, já que muito antes do digital, o cinema era capaz de realizar a multidimodalidade mediática. 2.1. MEDIA INTERATIVOS Deste modo, para nós é aqui relevante identificar como singularidade dos media criados a partir da digitalização dos meios de comunicação, a interatividade. Este qualificador tem vindo a servir numa nova designação, a de Media Interativos (Zagalo, 2009a), dos quais os videojogos fazem parte integrante, sendo na atualidade o seu meio mais representativo. É na interatividade que os videojogos se distanciam claramente do cinema. Se o cinema faz da montagem o seu motor de storytelling principal, os videojogos fazem da interatividade o seu centro nevrálgico de expressividade. Na literatura o autor conta, em texto, o que tem para dizer, já no cinema o autor não deve contar, mas antes mostrar o que tem para dizer. Nos videojogos o autor não conta, nem se limita a mostrar, antes leva o receptor a fazer. Ou seja, o receptor só compreende a mensagem contida na narrativa, realizando as ações pedidas pelo autor da obra. Estas ações são o centro narrativo do videojogo, e servem para conduzir o jogador de receptor a ator, podendo mesmo chegar a ocupar o lugar de autor da mensagem. No ponto quatro discutiremos o modo como estas possibilidades de agência e autoria surgem, para já queremos concentrar-nos sobre o modo como o videojogo constrói a sua mensagem. 2.2. EXPRESSÃO NARRATIVA a história foi escrita antes pelos designers, e os jogadores veem a história desenrolar-se através das suas interações (Church, 1999) Como nos diz Church, os videojogos narrativos são fundamentalmente histórias que se vão desvelando a cada interação do jogador. Ou seja, ao contrário dos modelos de jogos tradicionais, este tipo de jogos não se jogam sob condições de vitória ou derrota, não existem resultados quantitativos (Salen e Zimmerman, 2004). O que está em análise, é fundamentalmente o modo como se conta a história, e como é que o receptor faz sentido desta. Deste modo temos utilizado modelos de análise do foro narratológico para avaliar o processo, com as devidas atualizações já que os modelos existentes têm sido trabalhados para artes como a literatura e o cinema (Zagalo, 2009b). Para dar corpo ao modelo narratológico interativo (ver Figura 1) partimos da ideia de que uma História não é mais do que um conjunto de eventos causais, ocorridos num lugar e num tempo, que um autor constró na sua mente, e quer transmitir. Por sua vez quando conta a história, necessita de construir um "Enredo", ou seja, proceder a uma seleção dos acontecimentos, que são importantes contar, estruturar os mesmos no tempo da forma que lhe parecer mais relevante, o que nem sempre é feito de modo cronológico. Para fazer chegar o enredo ao seu receptor, precisa de um medium que lhe dê corpo, que transforme em material aquilo que é ainda virtual na sua mente, criando neste caso sob a forma Audiovisual. Finalmente para transformar a forma audiovisual num videojogo, é ainda necessária a componente de Interatividade, que poderá não apenas agir sobre a forma audiovisual, mas também sobre a forma do enredo. Figura 1 Modelo de análise da construção de sentido, e sua construção formal, nos videojogos com história.

Do lado do receptor, é apenas através do artefacto final do videojogo que se cria sentido da história. A este sentido, já não chamamos história, mas Fabula. A fabula é uma representação puramente mental do receptor, é um padrão que os receptores de narrativas criam através de assunções e inferências (Bordwell, 1985:49) cognitivas. Neste processo o receptor consegue intuir parte da história que não está plasmada no videojogo, indo de encontro a algumas das ideias que o autor tem em mente. Mas no restante, os significados da história contada através do jogo, são construídos na sua cabeça com ligação às suas vivências pessoais e à associação de ideias que produzem sentidos sobre tudo aquilo que testemunhou no jogo. Além do testemunho, e ao contrário do espectador e do leitor, o jogador ainda cria sentido da obra a partir das ações que é levado a realizar. Ou seja, a forma como ganha conhecimento da narrativa, acontece também por via da ação e da experimentação das condições criadas pela história. O jogador não pode apenas testemunhar as ações, mas é obrigado a tomar decisões, e a desenvolver respostas e soluções de resolução dos eventos que se apresentam. O videojogo cria assim uma oportunidade em potência para o jogador se tornar mais consciente dos sistemas e estruturas que organizam as mecânicas da história, do que aqueles que o servem na forma de espectador, ou de leitor. Por outro lado, e tendo em conta a sobrecarga do envolvimento em processos de decisão, a capacidade crítica e reflexiva pode tender a perder espaço, quando comparados com o cinema e a literatura. Os mais recentes estudos têm sido bastante claros sobre a nossa incapacidade para a multitarefa. Carr (2010) defende que o tempo de atenção que necessitamos para proceder à memorização de informação, feita através do estabelecimento de novas ligações neuronais, exige uma concentração elevada e muito focada. Nos jogos, estamos demasiado ativos e envolvidos na resolução de problemas, para poder parar e refletir, para poder exercitar novas abordagens de interpretação, construir novas ideias a partir de diferentes ângulos, limitando as conjeturas do pensamento abstracto. Aquilo em que os videojogos parecem ser eficazes, é na aprendizagem somática, em que se ganha experiência e competências, através da repetição que os sistemas de simulação permitem. Mas em termos de construção de conhecimento, existe todo um reino de reflexão que o indivíduo precisa de desenvolver internamente, que não é passível de ser estimulado por via apenas da simulação ou de experiências externas. 3. AS CAMADAS DUM VIDEOJOGO Como se pôde perceber a singularidade estético-expressiva do videojogo joga-se na forma de interatividade, quando na ausência desta, o meio torna-se indistinto do medium cinema. A interatividade é assim um processo de diálogo com a obra, em que cada interação é registada e influencia o ciclo de interação seguinte (Rafaeli, 1988). Nesse sentido interessa compreender em maior detalhe que tipo de formas podem ganhar os acessos interativos nos videojogos. Para isso desconstruímos o videojogo nos seus elementos constituintes (Figura 2). Figura 2 Camadas do videojogo, e subcamadas da interatividade Para compreendermos como é que os jogos criam significado, e como os seus jogadores experienciam e interpretam esses resultados, precisamos de compreender de que é feito um videojogo, e como atua a interatividade no seu interior. Neste sentido temos vindo a trabalhar a definição do artefacto do videojogo, enquanto objecto narrativo, desde há vários anos, envolvendo uma caracterização em camadas, mais concretamente três, a saber: Ambiente, Personagens, e Interatividade. Vejamos cada uma destas. 3.1. AMBIENTE A camada do ambiente corresponde em certa medida a toda a componente estilística do videojogo, ou seja tudo o que se vê e ouve. Estamos a falar do espaço áudio e visual no qual se desenrola a interação do jogador. Deste modo o ambiente constitui-se através das definições do set design, da câmara, do som, da montagem e da música, que configuram assim o espaço e o tempo da obra. O ambiente é fundamental na criação de atmosfera e de ritmo contribuindo assim para uma criação de significados tanto ao nível emocional como cognitivo. Um ambiente chuvoso e cinzento, com música e ritmo pausados, pode servir para induzir tristeza, assim como um ambiente ensolarado, cheio de cores vivas e ritmos rápidos pode contribuir para estimular alegria nos receptores (Zagalo, 2007). O ambiente é a primeira impressão do receptor, e desse modo é responsável pelo início da relação deste com o artefacto. Não apenas pelo estado emocional que induz, mas por toda a informação funcional que disponibiliza ao jogador, para que este consiga introduzir-se no mundo narrativo.

3.2. PERSONAGEM Na segunda camada definimos os personagens como centrais. A razão de virem depois do ambiente resulta, em parte, do facto destes serem também definidos pelo ambiente que habitam. Não vamos ter um víquingue a viver numa Nova Iorque moderna, assim como não temos uma criança a trabalhar numa caixa de supermercado (a não ser que pretendamos subverter as ideias de ambiente e personagem). Para o jogador, personagem e ambiente, são indissociáveis, é a coerência do universo de jogo que cria a segurança, e gera expectativas no jogador. O personagem é o veículo central de expressão do jogo. É através dele que o jogo expressa o que quer dizer. Não existe videojogo narrativo sem personagens. Mesmo quando pensamos que temos apenas o ambiente, existe sempre um personagem, porque é ele que conduz, é ele que guia a ação do jogo, e guia o jogador no seu processo de interação. O personagem é sempre definido por uma caracterização que se define em três grandes eixos físico, psicológico e social. No campo da fisicalidade temos os traços comuns da idade, sexo, altura, cor, roupa, corte de cabelo etc. No campo psicológico temos a personalidade aberto, consciencioso, extrovertido, agradável e neurótico. No campo social temos a educação, ocupação e a relação com os outros. De uma forma menos evidente, o personagem define-se para o jogador no modo como se expressa, e fá-lo quando toma decisões, quando faz escolhas. São as suas escolhas perante decisões difíceis, perante dilemas, que definem o cerne da mensagem que o jogo tem para nos contar. Tendo em conta os níveis de interatividade, que serão detalhados no ponto seguinte, numa interação de participação com a representação apenas, as escolhas são realizadas pelo personagem como exigências do enredo, e o jogador não pode se não cumprir o que o jogo impõe (ex. The Last of Us, 2013). Já numa interatividade de participação narrativa, são estes os momentos mais apetecíveis para colocar o jogador no comando, por forma a levar o jogador a compreender o processo de tomada de decisão (ex. The Walking Dead, 2012). É através desse processo de tomadas de decisão, que o jogador compreende o que está em causa, não porque lhe relataram, mas porque o experienciou, por opção ou imposição. 3.3. INTERATIVIDADE (NAVEGAÇÃO, MANIPULAÇÃO, E PARTICIPAÇÃO) Finalmente a camada da interatividade diz respeito a todos os eventos que requerem a intervenção do jogador. Se os ambientes e os personagens podem ser encontrados em artes como o Teatro ou Cinema, os eventos interativos são exclusivos da arte dos videojogos, e são responsáveis por os definir em termos formais. Existe alguma resistência em aceitar o sentido de interatividade como aquilo que define um videojogo. Jogos como Dear Esther (2012) ou Proteus (2013) são normalmente acusados de não serem jogos, porque supostamente lhes faltam qualidades, como objectivos ou regras, para o poderem ser (Edge, 2013). O colectivo Tales of Tales chegou mesmo a escrever um manifesto, em que procurava marcar uma fronteira entre os artefactos que utilizam lógicas de jogo e os que não utilizam. Designavam os segundos, de Notgames, jogos definido como trabalhos de arte interativa que não dependem de competição, objectivos, recompensas, ganhar ou perder (Samyn, 2010). Em jeito de resposta a estas objecções, quero aqui deixar claro que o videojogo narrativo, não está de forma alguma condicionado pelas mesmas lógicas de jogo, dos jogos não-narrativos. Que aquilo que define formalmente estes videojogos, assenta sobre a sua singularidade estética, ou seja a interatividade. Por isso passamos a apresentar os três vectores que regem a interatividade e garantem a riqueza simbólica dos videojogos, a saber: a navegação, a manipulação, e a participação. 3.3.1. NAVEGAÇÃO Se o ambiente diz respeito à estética do universo de jogo, a navegação diz respeito à delimitação das ações do jogador no espaço, à estrutura espacial que determina as possibilidades de intervenção do jogador no espaço concreto. A navegação é responsável por definir a relação entre o jogador e o mundo do jogo. Ou seja, se tem acesso a este por intermédio de um personagem, em terceira-pessoa, ou se tem um acesso direto. Se é direto, se é feito em primeira-pessoa (ex. FPS), ou em vista geral (ex. god mode, top-down, etc). Depois a navegação é condicionada pelo espaço de jogo, se é um espaço fechado (ex. labirinto) ou aberto (ex. sandbox); se o movimento é restrito a um plano (2D) ou se ocorre em profundidade (3D); se toda a ação se passa num único espaço ou em múltiplos espaços, implicando navegação distinta; se o espaço é contínuo ou descontínuo. Figura 3 Diferença na navegação em primeira-pessoa e terceira-pessoa (Zagalo, 2009) Em termos mais concretos, no acesso direto em primeira-pessoa a interatividade é limitada a um enquadramento único, podendo executar apenas aproximações ou distanciamentos em relação à representação (Figura 3). O relacionamento do utilizador com o ambiente, na primeira-pessoa, acontece de uma forma linear em direção ao mundo que pretende controlar, o utilizador só pode ver o que

personagem vê (seja um personagem em primeira-pessoa, seja uma perspectiva god mode). Já no modo intermediário, ou navegação em terceira-pessoa, o jogador vê e navega no mundo através da perspectiva do personagem, mantendo a possibilidade de poder analisar o mundo diretamente. O utilizador, vê assim o que o personagem vê, e pode ver como ele vê (por isso na maior parte dos jogos em terceira-pessoa, acedemos ao mundo através de dois controladores, um que controla o personagem e um que controla a câmara), o que faz deste ponto-de-vista uma perspectiva mais rica em termos semânticos (Figura 3). 3.3.2. MANIPULAÇÃO A manipulação tem sido estudada desde o aparecimento do campo de estudos da interação humano-computador, procurando encontrar as melhores formas de aceder à representação, ou seja, as formas através das quais o sujeito pode exercer ação e, assim, manipular o que lhe é apresentado. Nesse sentido a manipulação evoluiu e nos últimos anos pudemos assistir ao surgimento de interfaces que possibilitam uma interação direta sem qualquer intermediário físico (ex. Kinect). Apesar de tudo, a grande maioria dos videojogos continua a funcionar numa base de intermediação, desde o Wiimote, ao teclado, rato ou gamepad. O acesso ao mundo representado, é assim feito através de um objecto físico que simula o objecto representado. A manipulação, com ou sem intermediário, é ainda condicionada pelo tipo de navegação desenhada. No caso de uma navegação em primeira-pessoa, o jogador manipula diretamente os objetos presentes no mundo representado. No caso da terceira-pessoa, fá-lo através de um agente, avatar ou personagem. A manipulação dos objetos no mundo dá-se de forma indireta, já que não somos nós quem age sobre o mundo, mas é o nosso personagem que o faz. Deste modo, se os personagens definem o aspecto e comportamento dos jogadores, os objetos definem as suas possibilidades de interação, ou seja os verbos da interação (ex. saltar, correr, atirar, subir, descer, murmurar, etc). 3.3.3. PARTICIPAÇÃO Por fim, a participação é o modo mais complexo e exigente da estética de interatividade. Depois de definidos os modos de navegação e manipulação, resta-nos definir o modo como a participação no jogo decorre, ou seja as regras que definem a relação do jogador com o mundo do videojogo. Compreender quais são os limites dos efeitos despoletados pela ação dos jogadores sobre o artefacto. A participação está assim dependente das escolhas inerentes às regras do jogo, que podem lançar o jogador num caminho definido com objectivos concretos, ou podem abrir a participação à definição das regras por parte do jogador. No primeiro caso falamos de uma participação ao nível da representação, no segundo, ao nível da narrativa. No campo da representação o jogador age sobre o mundo do jogo, pode definir o seu ritmo e as suas ações, responde aos pedidos do jogo, mas é levado a seguir um caminho predefinido, aquele que o levará a desvelar a história, e a descobrir o que o espera no final da experiência. Podemos dar como exemplos, Half-life (1998) ou Ico (2001). Já no campo da participação narrativa, o jogador além de poder agir sobre a representação, pode ainda tomar decisões quanto ao modo como a experiência se deverá desenrolar ou como deverá terminar. Podemos aqui falar de Sims (2000) ou Mass Effect (2007). Os três modos de interatividade aqui definidos servem para compreender a extensão estética da linguagem do videojogo, o modo como esta se distingue das anteriores artes em termos expressivos. Serve ainda para compreender como a sua singularidade contribui para a criação de um meio distinto e complexo de criação de sentidos. No ponto seguinte, entramos no detalhe da criação de sentido a partir do terceiro nível de interatividade, no seu modo de participação com a narrativa. 4. CRIAÇÃO DE SENTIDO NA INTERATIVIDADE Já percebemos que o sentido narrativo que criamos de uma obra, é tudo menos passivo, que existe uma participação clara do receptor na construção ou reconstrução das mensagens transmitidas narrativamente pelas obras de arte. Contudo na maior parte das artes, esta participação é realizada apenas ao nível cognitivo. Uma exceção a este standard criativo, pode ser encontrada na escultura que tal como os videojogos, pode originar sentidos diversos no receptor em função do posicionamento do receptor face à obra. O ponto de vista a partir do qual se observa, faz variar os sentidos que se realizam da mesma.

Figura 4 A escultura é uma arte interativa, no sentido em que permite ao receptor escolher o ponto de vista de contemplação, diversificando dessa forma os sentidos que pode construir a partir de uma mesma obra No caso da escultura, podemos dizer que existe um plano de interatividade ao nível da participação com a representação, já que fica do lado do receptor escolher o modo como se posiciona face à representação. Sendo uma participação meramente ao nível da representação, não pode contribuir para alterar a ideia que o autor pretende passar. E é nesse sentido que os videojogos podem ir além daquilo que a escultura permite, porque além da interação com a representação, permitem uma participação narrativa, e é sobre essa que nos vamos aqui focar. Podemos dizer que no videojogo, o receptor pode não apenas escolher o seu posicionamento, como pode definir o seu percurso na obra. Vejamos então como acontece esta participação em termos de modelos narrativos. Sabemos que os media tradicionais escritos, sonoros e audiovisuais optam quase sempre por modelos de construção de enredo lineares (Figura 5). Ou seja, em que o artefacto assenta num sucedâneo de causas e efeitos cronologicamente coerentes. Por outro lado, com o surgimento do pós-modernismo, as narrativas lineares começaram a dar lugar a um desejo de inovação por via da fragmentação, que veio a definir-se sob a lógica de narrativas não-lineares. No cinema este movimento acentuou-se a partir do final do século passado, com Pulp Fiction (1994), Memento (2000) ou Inception (2010), chegando mais tarde à própria televisão com séries como Lost (2004). Contudo, e apesar da profunda deslinearização cronológica dos eventos, que obrigam o espectador continuamente a reconstruir causas e efeitos na sua mente, estes modelos continuam ligados à lógica de transformação da representação apenas. Ou seja, apesar de não-lineares, os sentidos evocados pelas obras estão encerrados sobre si mesmos, não são passíveis de ser selecionados, triados, filtrados, ou criados pelo receptor de modo livre. Figura 5 À esquerda, o diagrama de uma narrativa de eventos lineares, cronologicamente consequentes. À direita, o diagrama de um enredo de eventos não lineares. A história é a mesma, a linha cronológica é que é percorrida numa sequência distinta A capacidade para uma participação ativa ao nível da narrativa material surge apenas com o nível de interatividade que os videojogos permitem, e quando desenhados com esse objectivo. Apenas através de uma participação de nível narrativo, poderemos evocar a ideia de que é o receptor quem define a sua experiência narrativa, que participa não apenas na construção da sua fábula, mas pode alterar o enredo, realizando escolhas, ou mesmo indo além daquilo que o autor da obra imaginou. Em linhas gerais podemos dividir os modelos narrativos de interatividade de participação narrativa, em três grandes áreas: árvores, multilineares, e de emergência. Figura 6 À esquerda, o diagrama de uma narrativa de eventos em árvore. À direita, o diagrama de um enredo de eventos multilineares

Como se pode ver na Figura 6, o enredo estruturado na forma de árvore de eventos, ou nós narrativos, permite ao receptor escolher o seu percurso, tomar decisões que vão alterar o discurso narrativo, e a história a ser transmitida. O mesmo acontece nas estruturas multilineares (Figura 6), que não são mais do que árvores achatadas, ou seja, em que os nós podem ter várias ligações, e com o aparecimento de discursos paralelos. Em qualquer um destes dois grandes modelos, o receptor toma decisões, realiza escolhas, define o seu caminho no interior da obra. Os sentidos que constrói de uma obra, podem ser totalmente diferentes daqueles que constrói outro sujeito, independentemente da subjetividade em questão. Por outro lado, em qualquer um destes modelos, o receptor continua subjugado às ordens e possibilidades estipuladas pelo autor. É o autor que desenha todos os caminhos possíveis, e que define as escolhas disponíveis. Dessa forma, a participação do receptor na obra acontece ao nível do discurso narrativo, da definição do enredo, mas a autoria mantém-se sob controlo do autor. Com a evolução dos sistemas de inteligência artificial nos videojogos, foi possível nos últimos anos desenvolver um novo patamar de interação participativa com a narrativa, capaz mesmo de colocar o receptor no lugar de autor. Falamos das narrativas emergentes (Ruth, 1999), narrativas desenvolvidas com base em estruturas autónomas, ou seja, em que cada objecto/personagem possui um comportamento próprio, e é autónomo, sabendo como se comportar em caso de interação com o meio, o outro, ou o jogador. Em parte, as estruturas emergentes começaram a ser utilizadas com Sims (2000), e depois já enredadas com uma forte narrativa linear, em Grand Theft Auto III (2001). Em Grand Theft Auto III, o receptor é levado a cumprir várias missões para progredir, que não são mais do que os eventos da narrativa linear (linha central e nós a preto, da Figura 7). A componente emergente aparece entre as missões, dando liberdade ao jogador para deambular, e interagir com toda a cidade, gerando micro-narrativas emergentes (áreas de nós a verde, na Figura 7). Nestes momentos, o receptor transforma-se em autor, porque é ele quem define não apenas o enredo, como toda a história, ele decide o que quer fazer, sem imposições ou limitações de escolhas. É-lhe dado um espaço, e um conjunto de regras, dentro das quais tem liberdade para reconstruir não só o discurso, como criar histórias totalmente novas, nunca sequer imaginadas pelo criador do jogo. A experiência de Grand Theft Auto III, resolve-se numa mescla entre a emergência proporcionada pelo ambiente e personagens, e as missões linearmente desenhadas (resultando na linha final, a vermelho, da Figura 7). Figura 7 Diagrama da narrativa em Grand Theft Auto III (2001). Apresenta uma linha central de eventos linear, e à sua volta quatro áreas de emergência. O jogador é responsável por desenhar o enredo da sua experiência, e que aqui fica representada na hipótese da linha vermelha As narrativas emergentes transfiguram, em certa medida, a ideia de jogo, transformando a ação de jogar, em ações de brincar. Para Lopes (2004), o brincar distingue-se do jogar, por ser uma atividade social espontânea, desprovida de regras e objectivos. Desta forma os jogos que melhor têm sabido implementar a emergência, são os jogos que de alguma forma se abrem à criatividade do jogador. Exemplos como LitteBigPlanet (2008) que permite que o jogador desenhe novos níveis, ou Minecraft (2011) que permite que o jogador crie mundos inteiramente novos da sua autoria. A emergência é o fundamento de todo e qualquer sistema vivo, e o brincar é uma das suas manifestações mais intensas. A emergência transfigura o ato de jogar, que deixa de o ser, mas como já vimos também, não faz um videojogo ser menos obra expressiva por causa disso. Porque um videojogo não é um jogo, é uma experiência audiovisual interativa que se define através daquilo que permite ao receptor fazer, para conhecer e compreender aquilo que se pretende transmitir. 5. CONCLUSÃO Ao longo deste texto procurámos dar a conhecer a essência da forma de expressão potenciada pelo meio dos videojogos. Posicionámos os videojogos face às restantes artes, e destacámos os seus elementos expressivos de singularidade. Procurámos compreender como a essência e a singularidade do meio, contribuem para a criação de sentido nas obras. Os videojogos são um meio e uma arte recentes, apesar de materialmente terem surgido há meio século. Por isso muito do que procuramos aqui definir, está ainda à procura de aceitação pela comunidade académica, e vai continuar a evoluir no discurso sobre o meio. Acreditamos que este texto pode ser um contributo para ajudar à compreensão do meio, assim como esperamos que este sirva para fomentar a discussão em torno do mesmo.

REFERÊNCIAS Aylett, Ruth, (1999), Narrative in Virtual Environments - Towards Emergent Narrative, in AAAI Fall Symposium on Narrative Intelligence Bordwell, D. (1985), Narration in the Fiction Film, Routledge, London Canudo, Ricciotto, (1927), L Usine des images, (Geneva: Office Centrale d Edition, 1927) Carr, N., (2010), The Shallows: What the Internet Is Doing to Our Brains, W. W. Norton, EUA Church, D., (1999), Formal Abstract Design Tools, in Gamasutra - The Art & Business of Making Games, (01.01.2005), http://www.gamasutra.com /features/19990716/design_ tools_01.htm Douglas, A.S., (1954), Some Computations in Theoretical Physics, PhD Dissertation, University of Cambridge, UK Edge, (2013), What does it mean to be a game?, What does it mean to be a game?, in Edge Magazine, May 2013 Lopes, Conceição, (2004), Comunicação Humana Contributos para a busca dos sentidos do Humano, Universidade de Aveiro, Aveiro, 2004 Rafaeli, S. (1988). Interactivity: From new media to communication. In R. P. Hawkins, J. M. Wiemann, & S. Pingree (Eds.), Sage Annual Review of Communication Research, 16, 110-134. EUA Salen, K., Zimmerman, E., (2004), Rules of play: game design fundamentals. Cambridge, Mass., London, MIT Samyn, M. 2010, Not a manifesto, in Notgames blog, http://notgames.org/blog/2010/03/19/not-a-manifesto/ Zagalo, Nelson, (2007), Convergência entre o Cinema e a Realidade Virtual, Tese de Doutoramento, Departamento de Comunicação e Arte, Universidade de Aveiro, Portugal Zagalo, Nelson, (2009a), Media Criativos e Interactivos, Maria Zara Simões Pinto Coelho (org.), Não Poupes no Semear: Trinta anos de comunicação, Aníbal Alves, Pé de Página, Braga, Portugal, (pp.215-218) Zagalo, Nelson, (2009b), Emoções Interactivas, do Cinema para os Videojogos, CECS/UM, Gracio Editor, Coimbra, Portugal Original disponible en: http://portalcomunicacion.com/lecciones_det.asp?lng=por&id=83 PDF criado em: 27/11/2013 11:21:49 Portal da Comunicação InCom-UAB: O portal dos estudos de comunicação, 2001-2013 Institut de la Comunicació (InCom-UAB) Edifício N. Campus UAB. 08193 Cerdanyola del Vallès (Barcelona) Tlf. (+34) 93.581.40.57 Fax. (+34) 93.581.21.39 portalcom@uab.cat