SEMPRE AOS DOMINGOS *: PRÁTICAS DE ESCRITA DE PESSOAS COMUNS Mônica Teresinha Marçal - UDESC Denise Botelho de Farias - UDESC Flávia Wagner - UDESC Rosi Isabel Bergamischi- UDESC RESUMO - Ter como tema as escritas das pessoas comuns é bastante recente na historiografia (última déc. do Séc. XX). Este novo olhar possibilita abordar práticas culturais que perpassam as escritas ordinárias (as escritas de pessoas comuns), e da mesma forma possibilita a coleta de dados sobre a época e a observação das impressões pessoais do mundo. Analisar as escritas ordinárias nos colocam em contato com as representações que as pessoas constróem de si mesmas através da escrita, as escritas de si. Este deslocamento do olhar dos documentos oficiais para as escritas comuns abrem caminhos para que se possa contar a história a partir de diferentes pontos de vista. Nosso olhar se debruçou nas escritas feitas pelo Sr. Frederico Wagner Netto ( 1900-1974), no início do Séc. XX, autor do diário, que contém as cartas e a poesia que nos referimos no texto, este possuía o hábito de escrever em seu diário sempre aos domingos. A partir dos escritos procuramos fazer um entrelaçamento de como o autor se inscreve na história enquanto sujeito através de sua escrita. Buscamos, com este texto, rastrear alguns dos motivos, vestígios e pistas do porque as pessoas comuns escrevem. CARTAS E ESCRITA Ter como tema as escritas das pessoas comuns é bastante recente na historiografia (última década do Séc. XX). Este novo olhar possibilita abordar práticas culturais que perpassam estas escritas ordinárias e da mesma forma possibilitam a coleta de dados sobre a época e a observação das impressões pessoais do mundo. Analisar as escritas ordinárias nos colocam em contato com as representações que as pessoas constróem de si mesmas através da escrita, as escritas de si. Este deslocamento do olhar dos documentos oficiais para as escritas comuns abrem caminhos para que se possa contar a história a partir de diferentes pontos de vista. As escritas 1 que nos inspiraram a escrever este trabalho fazem parte de um conjunto maior de um livro que podemos chamar de livro da razão, de uma pessoa que nasceu no início do séc. XX. Este livro, intitulado pelo autor de Livro de Recordações 2, é uma mistura de uma variedade de registros que nos permitem compreender de que forma outros * Frederico Wagner Netto (1900 1974), autor do diário, que contém as cartas e a poesia que nos referimos no texto, o qual possuía o hábito de escrever em seu diário sempre aos domingos. 1 Cartas com pedidos de casamento e uma poesia, escritas pelo Sr. Frederico Wagner Netto em seu diário. 2 NETTO, Frederico Wagner. Livro de recordações arquivo pessoal da família Wagner (1926 1974).
2 tipos de escrituras deslizaram para as escrituras privadas 3. Sobre isso escreve Littré citado por Jean HEBRARD: 4 O diário é o suporte de uma escrita cotidiana que registra sem demora os acontecimentos (comerciais no caso) de um dia ; este diário, também chamado de livro razão, possivelmente contribuiu na idéia de não deixar sem registro, os eventos particulares para que não caíssem no esquecimento. Criado o hábito de anotar tudo que se passa no dia a dia, inicia-se então a prática de uma escritura pessoal. De noite ele nunca deixa de escrever em um diário; o detalhe do que havia ouvido ou visto de mais interessante durante o dia. Esta escritura pessoal começa então a fazer parte da vida de algumas pessoas. Este deslocamento dos registros de negócios para os pessoais, nos mostram o quanto a cultura escrita passa a ser incorporada na vida moderna. Desta forma, escrever sobre si pode ser considerado uma extensão do que já vinha ocorrendo, onde a escritura, os registros sob as mais variadas formas, tomam dimensões cada vez maiores independentemente de suas finalidades. Esta escritura pessoal deve ser compreendida como algo que deixa de se preocupar apenas com registros de negócios e possibilita a passagem para uma escritura onde os eventos familiares ou pessoais estão no centro da questão embora, ainda não façam parte destes, a exposição de sentimentos. Contudo são eles, os sentimentos, que movem as pessoas a escreverem cartas. Nosso trabalho, pousa o olhar em cartas de pedido de casamento, onde o autor escreve, e se inscreve como sujeito. Questões que retomaremos mais adiante. POR QUE AS PESSOAS ESCREVEM? "Todos escrevem para que um dia sejam lidos". 5 Ficamos então a nos perguntar o porquê da escrita de diários e cartas ser algo tão secreto, tão silencioso, tão cheio de sigilo? Será que o fato de ser pessoal e íntimo dá conta de responder esta pergunta? Sabemos que a escrita é um produto humano, social, histórico e não natural. No caso de diários e cartas, não podemos entendê-los apenas como objetos de código de comunicação, mas o momento vivido, os processos individuais de inspiração e as apropriações que as pessoas fazem daquilo que vivem, e as intenções que são produzidas através da escrita. Há duas molas propulsoras que fazem com que as pessoas escrevam principalmente cartas. São elas: a distância e a ausência. As escritas pessoais são impregnadas de uma importância afetiva e podem constituir um espaço de transgressão, suas escritas podem conter um diálogo proibido. 3 Expressão utilizada por Madaleine Fousil e se refere a todos os escritos de fórum íntimo/ pessoal na obra: FOISIL, Madaleine. A escrita do foro privado. In: História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes. V.3. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 331-370. 4 HEBRARD, Jean. Por uma bibliografia material das escritas ordinárias: a escrita pessoal e seus suportes. In: MIGNOT, Ana Chrystina Venâncio, BASTOS Maria Helena Câmara e CUNHA, Maria Teresa. Refúgios do Eu. Educação, História, Escrita Autobiográfica. Florianópolis, Mulheres, 2000. p. 40. 5 CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
3 Então, que lugar é escolhido para escrita de algo tão íntimo? Quem estará autorizado a invadir este espaço? A quem estará endereçada? Pensamos que a leitura é sempre um vir a ser, algo não definido, mas construído segundo o prisma de quem lê e de quem escreve. As trocas estabelecidas entre um leitor e o texto podem ser fixadas pela memória, lembrando que o lugar da memória é sempre criado daquilo que não existe mais. Por isso, quando lemos a carta do Sr. Frederico Wagner Netto, nos vem à memória aquilo que aconteceu, montamos um quadro, unimos as peças, compomos a cena, criamos um enredo em nossa imaginação para além daquilo que está escrito. Apropriamos e representamos tanto a escrita como a materialização da memória. Vamos rastrear os motivos, verificar as marcas, os vestígios das escritas privadas, no jogo das interações sociais. Podemos identificar que a poesia expressando a dor do amor do senhor Frederico provavelmente foi escrita no momento em que seu pedido de casamento foi negado, onde a desilusão e a nostalgia tomavam conta do seu ser. Aqui constatamos uma pista, um rastro para escrita daquele momento que não tem a pretensão da verdade. Ao mesmo tempo podemos fazer uma leitura de que crédulos estão perpassados em seus textos, que concepção de homem, de sociedade, de amor tem este sujeito que escreve, este sujeito que emerge nesta escrita. Walter BENJAMIM 6, falando do autor enquanto produtor diz;...o importante não é saber que opiniões tem uma pessoa, mas sim, saber que homem emerge dessas opiniões. A prática da escrita privada, as cartas especificamente, não podem ser consideradas uma escrita apenas fabricada, porque a pessoa se inscreve, constitui um "sujeito da escrita na escrita". RETOMANDO A QUESTÃO DA DISTÂNCIA E DA AUSÊNCIA Simone Riches 7, falando sobre a questão do escrever, nos diz; o escrever é, além de contornar a ausência, uma tentativa de suplantar a finitude, possui a interessante característica de manter-se no tempo enquanto traço que pode perdurar. Neste sentido o escrever cartas tomam esta dimensão, permite tanto a quem escreve como a quem lê, se fazer presente, transpor o tempo e o espaço, fazer-se lembrado, manterse vivo, eternizar-se. As cartas são também, a forma que o sujeito encontra para suportar a ausência do outro, é no escrever que ele traz para junto de si aquele ou aquela que gostaria que estivesse consigo. Por sua vez, podemos pensar que o autor ao escrever se coloca enquanto sujeito, quer seja com dados objetivos que cita do seu cotidiano, mas também e principalmente do que está nas entrelinhas, nos espaços em branco,nos silêncios, daquilo que o autor deixa e emerge no ato de quem lê. Walter J. Ong 8, falando sobre a questão da palavra e do ato de escrever coloca; Uma grafia no sentido de uma escritura real, como é entendida aqui, não consiste só em 6 BENJAMIN, Walter. O autor enquanto produtor - sobre arte, técnica, linguagem e política. In: CASTILHO, Antonio Gómez. Do signo negado do signo virtual: mudanças e permanências na história social da cultura escrita. SIGNO. Revista de História de la Cultura Escrita. N.6 (1999). Universidade de Alcalá/ Madrid. 7 RICHES, Simone. Um Ensaio sobre a escrita ou navegando em um mar de letras. Revista Questão, Porto Alegre, V2, 1996.
4 imagens, em representação de coisas, senão a representação de um enunciado, de palavras que alguém diz, ou supõe que diz. Então se no ato de escrever e de ler emerge um sujeito, podemos pensar que a escrita tem um valor, e que este valor é dado a partir do momento em que o social, a cultura, assim as considera, e, nesta perspectiva, as escritas ordinárias, também passaram a fazer parte deste lugar simbólico de valor, porque dela pode-se fazer uma leitura do social, pode-se construir uma história, porque nela inscreve-se o sujeito. Sr. Frederico Wagner Netto, autor das cartas citadas, fazia da escrita seu lugar como sujeito. Se na sua época os valores eram estabelecidos pelo que se tinha, ele, tinha e se fazia pela escrita. Como podemos observar num dos trechos de sua carta: Dizem as pessoas prudentes e sensatas que a felicidade no matrimônio depende que ambos os contratantes se amem mutuamente e não de bens pecuniares que lhes possuam, no meu restrito entendimento também penso assim, e creio piamente que o legítimo amor é a fonte de toda a felicidade nessa vida transitória. Ora tenho a apresentar-lhe um caso que reforça essa asserção: sua filha Belizaria diz sentir por mim este nobre sentimento e, em grau tão puro a ponto de não importar-se que eu seja pobre muito pobre. Apesar de todos os preconceitos do mundo, querme imensammente... 9 Retomamos aqui, e para finalizar, a questão das entrelinhas: Dizem os grandes mestres, que o que fica são as palavras, que os escritos se perdem, amarelam com o tempo. Pergunto então o porquê dessa nossa insistência de continuar escrevendo, editando e reeditando nossos escritos? Talvez porque neles estejam inscritas nossas palavras ou, quem sabe, no não dito, entre uma palavra e outra, nos espaços marginados, estejam impressos nossos dizeres, nossos fazeres. REFERÊNCIA BIBLIOGRÀFICA BENJAMIN, Walter. O autor enquanto produtor - sobre arte, técnica, linguagem e política. In: CASTILHO, Antonio Gómez. Do signo negado do signo virtual: mudanças e permanências na história social da cultura escrita. SIGNO. Revista de História de la Cultura Escrita. N.6 (1999). Universidade de Alcalá/ Madrid. BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. CAMARGO, Maria Rosa R. M. Cartas e Escrita. Tese de Doutoramento, Faculdade de Educação - UNICAMP/SP, 2000. CASTILHO, Antonio Gómez. Do signo negado do signo virtual: mudanças e permanências na história social da cultura escrita. SIGNO. Revista de História de la Cultura Escrita. N.6 (1999). Universidade de Alcalá/ Madrid. p. 113-143. CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre práticas e Representações. (tradução de Maria Manuela Galhardo). Lisboa: Difel/ Bertrand Brasil, 1990. 8 BENJAMIN, Walter. O autor enquanto produtor - sobre arte, técnica, linguagem e política. In: CASTILHO, Antonio Gómez. Do signo negado do signo virtual: mudanças e permanências na história social da cultura escrita. SIGNO. Revista de História de la Cultura Escrita. N.6 (1999). Universidade de Alcalá/ Madrid. 9 Trecho da carta escrita pelo Sr. Frederico Wagner Netto, com pedido de casamento (em anexo).
CHARTIER, Roger (org). Práticas da leitura. São Paulo: Estação da Liberdade, 1996. CUNHA, Maria Tereza Santos. Por hoje é só... Carta entre amigas. In: MIGNOT, Ana Chrystina Venâncio, BASTOS Maria Helena Câmara e CUNHA, Maria Teresa. Refúgios do Eu. Educação, História, Escrita Autobiográfica. Florianópolis, Mulheres, 2000. FOISIL, Madaleine. A escrita do foro privado. In: História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes. V.3. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 331-370. NETTO, Frederico Wagner. Livro de Recordações. Arquivo Pessoal da família Wagner (1926 1974). HEBRARD, Jean. Por uma bibliografia material das escritas ordinárias: a escrita pessoal e seus suportes. In: MIGNOT, Ana Chrystina Venâncio, BASTOS Maria Helena Câmara e e CUNHA, Maria Teresa. Refúgios do Eu. Educação, História, Escrita Autobiográfica. Florianópolis, Mulheres, 2000. RICHES, Simone. Um Ensaio sobre a escrita ou navegando em um mar de letras. Revista Questão, Porto Alegre, V2, 1996. 5