BRAILLE, QUANTO MAIS PRECOCE MELHOR



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Transcrição:

BRAILLE, QUANTO MAIS PRECOCE MELHOR Carla Maria de Souza 1 - IBC Grupo de Trabalho - Diversidade e Inclusão Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo O texto a seguir é o relato de duas experiências simultâneas com crianças que foram introduzidas no uso do Sistema Braille, já tendo sido alfabetizadas no sistema comum (em tinta). Uma delas permaneceu na turma em que estava, onde só havia alunos de baixa visão que utilizavam recursos óticos para poder enxergar as letras; a outra foi imediatamente, transferida para uma turma com alunos que utilizavam o Sistema Braille, convivendo diariamente com este sistema. Para desenvolver o trabalho com estes alunos, como sempre ocorre quando se percebe que se está perdendo a visão, o professor teve, antes de tudo, que compreender a situação psicológica por que ambas as crianças passavam, pois todo processo de perda é doloroso. O trabalho de desenvolvimento do tato foi essencial já que os alunos eram estimulados visualmente, porém o sentido fundamental para o Braille não era, até então, trabalhado. Como toda e qualquer aprendizagem, a do Sistema Braille tem suas peculiaridades que devem ser observadas de início sob pena de dificultar o processo. Ao observar o desenvolvimento dos dois alunos em questão e atuar junto a eles, o professor pôde avaliar a importância da presença de colegas que usem o mesmo sistema que ele em sua sala de aula e se isso, de fato, o estimula em seu interesse pela escrita e leitura. Apesar de ser uma experiência que teve lugar em uma escola especializada, o trabalho não invalida, de forma alguma, a experiência da escola convencional que tem muitos recursos para estimular na criança cega, o gosto pelo uso do Sistema Braille, mesmo porque muitas das técnicas aqui apresentadas podem ser repetidas em classes com crianças sem deficiência. Além dessas, vale ressaltar a importância da convivência com crianças com a mesma característica em algum, ou antes, em vários momentos da trajetória do aluno. Palavras-chave: Sistema Braille. Leitor eficiente. Ensino. 1 Professora de ensino técnico e tecnológico do Instituto Benjamin Constant. Mestranda do curso de Pósgraduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, possui graduação em Letras- Português/Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ. Tem pós-graduação lato sensu em Literatura Brasileira pela UERJ. E-mail: calmaria24@gmail.com ISSN 2176-1396

10426 Introdução A experiência que relatarei a seguir aconteceu em uma escola especializada na educação de crianças cegas e de baixa visão. Farei uma comparação do trabalho feito nesta escola com dois alunos a que chamarei Lara e Caio. Embora especializada, ou talvez, por isso mesmo, há sempre uma questão entre os professores da escola sobre qual seria o melhor procedimento com aquele aluno que tem prognóstico de perda visual. O assunto traz discussões que ainda não se encerraram, no entanto, minha experiência inicial com estes dois alunos e outras experiências posteriores a esta levaram-me a um posicionamento a respeito e que, percebo, todos os estudos sobre leitura e escrita só vem confirmar. Penso que assumir uma posição a favor do Sistema Braille cada vez mais cedo na vida daqueles que dele necessitarão é mais um caminho a favor da inclusão desses indivíduos e de sua própria cidadania, já que o sistema foi criado, para garantir ao cego o direito de ler e escrever com autonomia. Em que turma eles ficam? Nossa escrita, seja em que suporte for, cartazes, folhas de livros, monitores de computador, etc., necessita do órgão da visão para ser apreendida e, pois, compreendida e interpretada (FARIAS; BOTELHO, 2009, p. 117). Esta citação mostra a importância que a visão tem na aquisição da leitura e, portanto como o processo de perda dessa visão causa transformações na vida de alguém que acaba de adquirir os conhecimentos necessários para dominar o mundo das letras. Como envolver aquele que descobre que seu modo de ler terá de mudar, sobretudo quando seus colegas de turma continuam lendo e escrevendo como sempre o fizeram? Será para ele mais indicada a proximidade com pessoas que leem e escrevem como ele, a fim de estimulá-lo e mostrar-lhe de forma mais concreta o quanto aquela nova forma de leitura será boa para ele? Estudando em uma turma do 2º ano do Ensino Fundamental com outros alunos de baixa visão, Lara e Caio, como todos os seus colegas, eram constantemente, avaliados na eficiência visual e, em uma mesma época, ficou constatado que ambos deveriam ser encaminhados ao aprendizado do Sistema Braille, já que havia prognóstico de perda visual para os dois.

10427 Como professora, passei a atendê-los nas aulas de aprendizagem do referido sistema, porém os procedimentos adotados com ambos não foram iguais. No caso de Caio, acreditavase que a perda do resíduo visual demoraria mais a ocorrer, portanto ele poderia permanecer por mais tempo na turma de baixa visão. Lara, porém, por estar em processo mais acelerado de perda da visão, foi logo alocada em uma turma que utilizava o Sistema Braille, mesmo sem domínio do sistema. As famílias de ambos foram, evidentemente, consultadas sobre estes procedimentos e tudo foi feito de comum acordo. Para a família de Caio, sugeriu-se, inclusive, a leitura feita pelos pais, quando ele parecesse cansado do esforço. As aulas de ambos ocorriam no contra turno, a fim de não prejudicar a aquisição dos conteúdos e a participação dos alunos nas atividades das turmas. É normal e esperado que o aluno que nunca trabalhou com o Sistema Braille não tenha o tato desenvolvido, pois sempre estudou com base em estímulos visuais. Nossos livros, mapas, materiais didáticos, em geral, são preparados para quem enxerga. Por isso há necessidade de adaptações dos livros didáticos para que os alunos cegos acompanhem as aulas e por isso essas adaptações são tão discutidas. Pois, muitas vezes, é difícil transpor uma ideia, sem causar alterações de sentido, ou exigir que um aluno cego faça o mesmo exercício que um aluno que enxerga faz. Então, o trabalho inicial é prepará-lo para se desenvolver naquele novo sistema. Tornar seus dedos mais leves, seu toque mais sensível, fazer com que consiga escrever no limitado espaço da cela Braille. Como sempre ocorre, meu primeiro trabalho ao iniciar as aulas de Braille foi procurar atividades que desenvolvessem o tato dos alunos, que os fizessem perceber as diferenças na posição dos pontos, etc. No entanto, logo se notou a diferença de comportamento entre Lara e Caio no desenrolar das aulas. Enquanto Lara mostrava-se curiosa, fazia perguntas, desenvolvia-se satisfatoriamente nas tarefas, trazia tarefas similares feitas com a professora da turma; Caio oferecia resistência às atividades, quase não falava, não perguntava. Decidi, então, conversar com os colegas que trabalhavam nas turmas. A colega que trabalhava com a turma de Lara prontificou-se a colaborar mostrando-lhe as letras e relatoume que os próprios alunos já o faziam atendendo a uma curiosidade da menina e que ela decidira permitir que eles, de certa forma, lhe ensinassem. A professora também mostrou a Lara os livros de histórias em Braille que possuía e que os alunos liam e traziam de volta para

10428 a sala, como numa biblioteca, despertando o interesse da menina que se desinteressava dos livros no sistema comum mesmo os mais ampliados. Frases como: "Não consigo ler" ou "Fico cansada com o esforço" eram usadas por ela para explicar por que não se interessava pelas leituras em tinta. Com a professora de Caio, consegui a promessa de permitir que ele fizesse em sala algumas atividades passadas por mim para o aprimoramento do sistema, já que nem sempre, pela queda da visão, ele conseguia acompanhar a aula. No entanto, não demorou que a professora me relatasse a resistência do menino em fazê-lo, preferindo sempre desenhar ou ler usando o sistema comum, como faziam seus colegas de classe. Juntas, buscamos mostrar a ele o quanto o Braille lhe seria útil em breve, porém, isto não surtiu o efeito desejado. Quando não conseguia ler com o desembaraço necessário, Caio solicitava ajuda de algum colega de turma. Em geral, a posição socialmente aceita e pedagogicamente recomendável é de respeito e tolerância para com a diferença. Mas será que as questões da identidade e da diferença se esgotam nesta questão liberal? E sobretudo: essa perspectiva é suficiente para servir de base para uma pedagogia crítica e questionadora? Não deveríamos, antes de mais nada, ter uma teoria sobre a produção da identidade e da diferença? (SILVA, 2000). Até que ponto sentir-se identificado com uma situação interfere no seu interesse e estimula a aprendizagem? Não havia preconceito por parte da professora de Caio, porém, pelas próprias necessidades da sua sala de aula, ela teria muito mais dificuldades em criar um ambiente em que o menino se sentisse confortável com o uso do Braille. A pergunta é: Não teria sido mais favorável a ele, naquele momento de formação da sua própria identidade estar em um ambiente onde sua diferença não fosse exatamente, uma diferença, isto é, onde ele pudesse identificar-se com outras pessoas? Respeitar, tolerar era o bastante para ele, naquele momento? Como já foi dito, nem sempre ele conseguia fazer as atividades no sistema comum a contento. Se estivesse numa turma em que só o Braille era trabalhado isso não o teria estimulado a buscar, cada vez mais, a própria autonomia? Na turma Braille, a tendência seria de que, com o tempo, sua eficiência na leitura e na escrita, fosse crescendo; na turma em que estava, ela só diminuiu. Havia, evidentemente, contato na escola, com colegas cegos, mas na sala de aula, Caio lidava com colegas de baixa visão e uma professora vidente, enquanto Lara vivia uma realidade totalmente oposta. Colegas e professora cega.

10429 As aulas dos dois meninos comigo tiveram início em abril e, em setembro, Lara já era capaz de acompanhar sua turma em quase tudo. Ela trazia para nossas aulas os exercícios que não conseguia concluir em sala e eu tirava suas dúvidas com relação ao sistema, dava mais textos, estimulava sua participação com a turma. No último bimestre, ela foi capaz de ler em Braille, todas as provas, sem necessidade do apoio de outro professor para a leitura ou a escrita, pois já dominava plenamente o sistema. "Agora, consigo ler sozinha, sem ficar cansada", dizia contente, tornando-se assídua frequentadora da biblioteca. Como toda e qualquer criança, havia os momentos em que gostava que lêssemos, tanto eu como a professora de turma, com ela, fazendo as dramatizações que tanto estimulam e, em seguida, pegava o mesmo livro já lido e o lia ela mesma, passando aos poucos, para leituras cada vez maiores. O mesmo ocorria com a escrita, que se desenvolvia, também, com a ajuda dos colegas que ditavam palavras, frases, corrigiam como numa brincadeira de crianças, mostrando a ela seus próprios livros. Destaco como ponto particularmente importante aquele em que ela recebeu seu primeiro livro didático em Braille. Um livro igual ao de seus colegas de turma e que ela podia ler e dominar. "Já consigo ler bem devagar, mas consigo", falou para mim. Assim, com menos de um ano, Lara estava dispensada das aulas de técnica de leitura e escrita do Sistema Braille, já que dominava o sistema, acompanhando a turma sem maiores dificuldades. Caio, no entanto, mostrava-se sempre preso à ideia de que ainda consegui estudar pelo sistema comum, contava com a ajuda dos colegas de sala para ler neste sistema, pouco praticava o Braille fora de sala. Não se interessava pelos livros em Braille da biblioteca e não tinha oportunidade de contato com eles fora da minha aula, chegando mesmo a tentar, algumas vezes, a leitura do Braille com os olhos como fazem aqueles que enxergam. Em sua sala de aula, pelas razões que já foram expostas, não havia materiais em Braille, ele não via concretamente, como o Braille poderia ser útil. Não lhe eram cobrados trabalhos em Braille, já que a professora enxergava. Muitos professores, para trabalhar a ortografia com crianças que têm visão dita normal, utilizam, principalmente, instrumentos que têm por suporte a visão, como gravuras, jogos de memória, cartazes, panfletos, rótulos entre outros (FARIAS; BOTELHO, 2009, p. 118). Como nas turmas de baixa visão valem, também os mesmos recursos comas devidas adaptações, é possível imaginar os prejuízos que isto trouxe à fixação da ortografia de Caio

10430 que não podia se valer dos mesmos recursos que seus colegas de turma, já que o resíduo visual já não mais o favorecia e, não estando em uma turma onde a prioridade fosse o Braille, também pouco se beneficiava de seus recursos. No final do ano, ele não havia concluído o aprendizado de todo o alfabeto Braille. Tinha dificuldade na leitura e escrita de frases, sobretudo com letras acentuadas e não dominava a pontuação. No ano seguinte, continuei a ministrar-lhe aulas, buscando trabalhar os mesmos textos que eram trabalhados em sala. Mas então ele buscava decorá-los ao invés de lê-los para mim. Faltava muito e começou a sentir-se incapaz por ver que sua colega já não precisava mais das aulas. A partir daí, iniciou-se um processo mais complicado: ele rejeitava o Braille, porém, com a queda da visão, ler no sistema comum tornava-se mais difícil e a dependência dos colegas aumentava. A própria professora de turma, muitas vezes, lia e escrevia o que ele ditava, pois sua letra tornava-se ilegível. Afastando-se do texto escrito, sua ortografia foi perdendo a qualidade e a pontuação também. Apenas no 4º ano (3ª série), ele foi alocado em uma turma que trabalhava apenas com o sistema Braille. Já totalmente desestimulado da leitura e da escrita, com trabalho feito por mim e sua professora de turma, ele começou a desenvolver-se. A professora exigia que ele trouxesse os trabalhos em Braille, mesmo sistema utilizado pelos colegas. No início, trabalhos pequenos, depois maiores, até que ele fosse capaz de realizar as atividades juntamente com todos. Por ser esta uma série em que o volume de conteúdos já é bem maior do que aquela em que o aprendizado do Braille começou para ele, naturalmente, as dificuldades de acompanhar a turma foram maiores do que as experimentadas por Lara. Foram, também, observados erros ortográficos que já não são considerados frequentes nesta fase como: n antes de p, ç em início de palavra - decorrência da falta de contato com a escrita, já que no 3º ano (2ª série), Caio foi um aluno que praticamente não leu ou escreveu. Sua resistência ao sistema ao lado da dúvida sobre o melhor enquadramento em turma afastaram-no da escrita e mesmo depois com o domínio do sistema, sua eficiência nesta parte jamais foi a mesma de seus colegas de turma, ao contrário de Lara que sempre acompanhou, sem dificuldades, os colegas, tornando-se uma das alunas de melhor leitura em sua sala. Com o passar do tempo, o aluno também foi dispensado por mim e a experiência serviu para que eu passasse a sugerir sempre que os alunos com prognóstico de perda visual

10431 fossem imediatamente, alocados em turmas onde se usasse o Sistema Braille, o que trouxe bons resultados a esses alunos. Atendo-me às duas experiências aqui contempladas, vale destacar, ainda, que é importante demonstrar à família os benefícios do aprendizado do Braille o mais cedo possível, a fim de que ela seja parceira da escola neste trabalho e entenda os objetivos da escola, ou, do contrário, ela também sentirá a mesma frustração da criança. Se o uso do Sistema Braille for motivo de vergonha para a família, a criança ficará retraída ao ter de usá-lo. Ela deve sentir que cada progresso seu no uso do sistema é uma vitória para seus pais. Busquei acompanhar a vida acadêmica de Caio e Lara até o fim de sua trajetória estudantil na escola e busquei informações posteriores sobre eles. Lara concluiu seus estudos sem nenhuma reprovação, usando o Braille com desembaraço. Cursou o segundo grau e, posteriormente, faculdade de fisioterapia, trabalhando, hoje, na profissão que escolheu. Caio passou por duas reprovações, ainda no ensino fundamental, nenhuma delas decorrente de incapacidade, mas de "desinteresse pelo estudo". Nem sempre fazia as atividades propostas, recusava-se a ler textos muito grandes. Interrompeu os estudos no meio do Ensino Médio, vindo a retomá-los três anos depois pelo sistema supletivo. Hoje cursa faculdade de análise de sistemas e está disposto a recuperar o tempo perdido. Algumas observações são fundamentais para compreensão do raciocínio que apresento: Ambos os alunos concluíram a alfabetização com excelente aproveitamento e Caio era mesmo considerado, até ali, melhor leitor do que Lara, talvez resultado de uma acuidade visual mais favorável. Até o início das aulas de Braille, Caio interessava-se por ler tudo o que lhe caía nas mãos e adorava escrever. Ao deixar a escola especializada, tanto Caio como Lara depararam-se com a mesma realidade e as mesmas dificuldades com que se depara qualquer jovem cego, porém a família de Caio tinha melhores condições financeiras e de estrutura para ampará-lo. Seus pais eram professores, podiam dispor de recursos como gravador, computador, a fim de auxiliá-lo ao máximo. Em contrapartida, a mãe de Lara era doméstica, tinha dois filhos mais novos do que ela e não podia oferecer â filha os mesmos recursos, tão úteis nesta etapa da vida.

10432 Considerações Finais Diante de tudo o que vivenciei com estes alunos e do que tenho observado com os demais alunos aos quais ministrei aulas de Braille quando vinham a apresentar perda visual no decorrer da vida acadêmica, concluo que o ideal é que o aluno seja alocado o mais rápido possível em uma turma em que se utilize o sistema que ele deverá usar. É evidente que, neste caso, refiro-me às escolas especializadas. No que diz respeito às escolas convencionais, onde o aluno estuda com crianças sem deficiência, quanto maior for o contato dele com o sistema, quanto mais chances tiver de contato com usuários do sistema, mais fácil será seu domínio da técnica de leitura que será sua base para a vida. Embora não seja essencial, a presença de um ou antes dois professores cegos na vida de Lara, eu a professora da turma, podem ter contribuído grandemente para que ela se sentisse incentivada a aprender o sistema pois é natural que a criança procure espelhos para sua vida, ainda que inconscientemente. Colocar o aluno cego em contato com pessoas cegas adultas, fará com que ele perceba suas próprias potencialidades Não sendo possível este contato em sala de aula, é importante que a escola ofereça esta oportunidade de contato por outros meios. Quanto mais cedo o aluno com prognóstico de perda visual introjetar o Braille em sua vida, maiores serão suas chances de tornar-se um leitor eficiente, um escritor que comunica plenamente, pois numa sociedade onde a escrita é tão importante, ela abre todas as portas e dominar algum sistema de leitura é fundamental para a verdadeira inclusão. REFERÊNCIAS FARIAS, I. R.; BOTELHO, A. R. Consciência fonológica e Sistema Braille: reflexões sobre o tratamento ortográfico. In: DIAZ, F. et al. (Org.). Educação inclusiva, deficiência e contexto social: questões contemporâneas. Salvador: EDUFBA, 2009. SILVA, T. T. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.