O CIBERFEMINISMO DESENCANTADO. NATANSOHN, Graciela (Org.). Internet em código feminino: teorias e práticas. Buenos Aires: La Crujía, 2013. 192p.



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Transcrição:

O CIBERFEMINISMO DESENCANTADO NATANSOHN, Graciela (Org.). Internet em código feminino: teorias e práticas. Buenos Aires: La Crujía, 2013. 192p. 1 Bruna Rocha 2 Tamila dos Santos 3 Marcella Alencar 4 Leidiane Alves de Farias 5 Passaram-se quase 30 anos desde que o movimento de mulheres e as feministas começaram a perceber as potencialidades da internet para a organização e empoderamento das mulheres. Contudo, as reflexões e análises teóricas sobre os alcances, o sentido e os dilemas teóricos e políticos das tecnologias digitais abordadas com um olhar feminista parecem estar apenas começando no Brasil. O manifesto ciborgue de Haraway, de 1985, considerado pioneiro no debate sobre a informática da dominação e o papel das mulheres nos entornos tecnológicos foi o marco inicial de uma discussão cujo alcance está longe de se esgotar. Afinal, a tecnologia (em particular, a digital) não mais pode ser entendida como um instrumento, uma ferramenta, um acessório neutro; estar no mundo, hoje, é estar conectado(a) e isto vale não apenas para os(as) mais jovens; nosso eu se constitui de um entretecido de relações virtuais e físicas difíceis de separar. Neste contexto, o livro organizado por Graciela Natansohn vem colocar alguns dos debates feministas emergentes da sociedade da informação com ênfase nas brechas digitais de gênero. Editado originalmente em espanhol, em versão impressa e, posteriormente, em português, em formato digital com mais três artigos, os textos reunidos neste volume provêm de pesquisadoras do Brasil, Espanha e Argentina que têm em comum a 1 2 3 4 5 Disponível em: <http://gigaufba.net/internet-em-codigo-feminino/>. Integrante do Grupo de Pesquisa Gig@, Gênero, Tecnologias Digitais e Cultura (UFBA). Integrante do Grupo de Pesquisa Gig@, Gênero, Tecnologias Digitais e Cultura (UFBA). Integrante do Grupo EcoArte (UFBA). Mestranda do PPGNEIM.

preocupação com as exclusões das mulheres dos centros geradores e divulgadores de tecnologia, mas também apresentam experiências educativas para, ao menos, colocá-las em evidência, visto que a sua superação configura um processo bem mais complexo. Como afirma no prólogo a pesquisadora argentina Diana Maffia da Rede Argentina de Ciência, Gênero e Tecnologia classe, sexo e geopolítica da língua é uma combinação que dificulta a inclusão digital das mulheres. O volume é resultado de uma pesquisa da Universidade Federal da Bahia sobre o lugar das mulheres na cultura digital baiana, trabalho que mapeou projetos de inclusão digital no estado e teve desdobramentos na área de extensão universitária, através de oficinas de cultura digital orientadas exclusivamente às mulheres 6 em plataformas de software livre. Coerente com este enfoque, o texto é editado sob uma licença Creative Commons (tipo CC BY SA), que permite a criação de obras derivadas desta, aderindo aos princípios da cultura livre. O livro aparece justo no momento em que está em discussão, no Brasil, a regulamentação do Marco Civil da internet, onde se definem os princípios, garantias, direitos e deveres sobre governança e uso da internet no país. Ainda que a participação feminista neste debate não tenha sido tão ampla quanto o desejável pelas razões expostas neste volume: ainda são poucas as mulheres em todos os âmbitos de deliberação, decisão e produção de TIC o texto apresentado ao legislativo nacional, elaborado de forma coletiva e aberta, conta com apoio maciço do movimento de mulheres, tal como da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), Geledés Instituto da Mulher Negra, APC-Women e muitas outras entidades e lideranças feministas. Esta falta de engajamento nas discussões técnicas provém não do desinteresse feminista pelos problemas tecnológicos senão dos lugares demarcados e limitados que as mulheres ocupam, historicamente, na produção geral do conhecimento, notadamente, no campo das ciências humanas. Entretanto, engenharias e outros cursos técnicos continuam a ser redutos da masculinidade androcêntrica. Neste cenário, tal como a organizadora afirma, os textos são uma contribuição ao campo do pensamento tecnofeminista cujo objetivo é mapear as dinâmicas de exclusão/ inclusão das tecnologias da informação e comunicação em suas diversas vertentes e 6 Disponível em: www.labdebug.net.

espaços, para divulgar empenhos tecnomilitantes e trazer discussões sobre este relativamente novo território teórico (p. 31). Os dez artigos do livro versam sobre diferentes âmbitos e contextos: contam a história da relação entre o movimento feminista e a internet; as dificuldades encontradas pelas mulheres em ambientes de desenvolvedores(as) de tecnologias digitais ainda que sejam ambientes autodenominados livres, a exemplo do software livre sobre as brechas de gênero na Wikipédia e a necessidade de mulheres programadoras e escritoras de código. A violência nas redes digitais e mediante dispositivos móveis também é discutida. Em De mulheres e enciclopédias formas de construir realidades e representações, a pesquisadora argentina Lila Pagola aponta as contradições encontradas na internet, lugar onde, aparentemente, o conteúdo circula sem restrições ou segregações. O que se verifica é que a lógica marginalizadora do sexismo se reproduz e se ressignifica nos espaços da web, ainda que tenham lógicas colaborativas e abertas. Este paradoxo fundamental é o que torna a internet um elemento estratégico para a luta das mulheres em busca de condições de igualdade social. A partir da análise da Wikipédia, uma enciclopédia digital hospedada em software livre e alimentada de modo colaborativo por pessoas de todo o mundo, Pagola observa alguns mecanismos quase naturais que geram desequilíbrio entre a produção de conteúdo masculina e feminina nesta plataforma, colocando, é evidente, as mulheres em lugares de fala inferiores. Desta forma, os grupos invisibilizados ou minoritários acabam por não escrever sua própria história perpetuando a invisibilização e a marginalização não apenas dos sujeitos, mas das narrativas sobre práticas sociais, culturas e conhecimentos subalternizados e situados da própria história real e vivida por estes grupos. O artigo de Dafne Sabanes Plou, Novos cenários, velhas práticas de dominação, faz referência aos relatórios do Programa de Direitos das Mulheres da Associação para o Progresso das Comunicações, APCWomen. O texto argumenta sobre um fenômeno cuja ampla difusão é inquietante, que é o da violência contra a mulher no mundo digital. Afinal, a virtualização das relações sociais não reduziu as velhas práticas de violência sexista, ao contrário, criou novas ferramentas para o exercício do poder patriarcal sobre nossas vidas e nossos corpos. Qual a diferença entre o marido carcereiro e o marido perseguidor virtual? indaga a pesquisadora, refletindo sobre como as tecnologias aumentaram as

possibilidades de controle e violência sobre as mulheres: celulares, computadores móveis e as próprias redes sociais, ao mesmo passo em que colocam as mulheres para além das fronteiras físicas, possibilitando-lhes uma comunicação mais ampla e livre, também proporcionam situações de vigilância constante pelos seus parceiros. Não são poucos os casos de violência praticados na internet cotidianamente: e-mails anônimos, utilização não autorizada e indevida da imagem das mulheres, pornografia, tráfico de pessoas, constrangimentos públicos, agressões que se limitam ao mundo digital e outras que se concretizam na vida real, levando até mesmo, em alguns casos, à morte. As violências mais comuns estão relacionadas à vida e segurança das mulheres, como a publicação de vídeos íntimos, o assédio sexual, a perseguição e o roubo de imagens. Muitas destas situações ocorrem a partir da violação da privacidade, a partir da invasão de páginas na internet, do roubo de senhas e de outras atividades que permitem o acesso a suas informações pessoais. A Declaração Universal dos Direitos Humanos é o principal parâmetro para o monitoramento dos meios de comunicação pela APCWomen. É a partir deste contexto que Dafne Plou aborda os quatro artigos da Declaração que mais dialogam com o problema da violência contra as mulheres no mundo digital, que versam sobre respeito à vida, liberdade, segurança, privacidade, liberdade de expressão e acesso aos serviços públicos. Muitas formas de violência praticadas na rede transgridem, de modo transversal, quase todos estes direitos assegurados pela Declaração Universal. Tanto o trabalho das catalãs Alex Haché, Eva Cruells e Nuria Vergés Bosch, do coletivo feminista Donestech, como o de Mônica Paz, da UFBA, Brasil, giram em torno das práticas e representações sociais de produtores e produtoras de tecnologia em ambientes colaborativos. Membros de comunidades de desenvolvedores(as) de software livre e de hackers sustentam o que eles(as) denominam de ética hacker, conjunto de princípios amplamente divulgados por Himanen, em 2001, em que reivindicam a meritocracia, a colaboração, a descentralização, a criatividade e o compartilhamento do conhecimento. O software livre, por oposição ao proprietário, é aquele que pode ser usado, copiado, estudado, modificado e redistribuído sem limites. Trata-se de uma tecnologia que se desenvolve de forma horizontal e colaborativa em que milhares de pessoas participam no seu aperfeiçoamento e adaptação de acordo com seus interesses individuais ou coletivos. Uma panacéia para o movimento feminista interessado nas TIC!

Na realidade, o que as pesquisadoras vão demonstrar aqui são as tensões de gênero geradas tanto pelas brechas de gênero (a pouca presença de mulheres e o menor desempenho delas em áreas estratégicas da comunidade, tal como na criação de softwares) como pelas performances de gênero presentes na comunidade (onde há discriminação verbal, piadas e comentários sexistas tanto online como em eventos presenciais). As catalãs expõem resultados de entrevistas a mulheres hackers, programadoras e administradoras de sistemas que relatam vivências e percepções sobre o que elas percebem enquanto mulheres, hackers e ativistas do software livre em comunidades masculinas. Já o trabalho da Mônica Paz, no Brasil, expõe as percepções dos grupos de mulheres tecnólogas organizadas ao redor deste movimento. Parece que, contra todos os discursos da igualdade, a ética hacker ignora as questões de gênero, convertendo-a em uma ideologia androcêntrica: a predominância é de homens, brancos e de classe média cujas práticas recriam ideologias sexistas sob a suposta neutralidade da produção e do desenvolvimento tecnológico. Acontece que as discussões introduzidas pelo feminismo quanto à construção do campo da ciência e à tecnologia passam muito longe dos currículos escolares dos cursos de ciências da computação onde se formam muitos dos participantes da comunidade como de outras disciplinas. A associação entre masculinidade e tecnologia é dada como natural, não problemática, sustentando a ideologia da suposta igualdade entre todas as pessoas e ignorando qualquer questionamento ao funcionamento do sistema tecnológico e científico, à cultura tecnológica das empresas, universidades e instituições sociais, resistentes, ainda, às mulheres. Em Os gêneros da rede: os ciberfeminismos, Montserrat Boix e Ana de Miguel, da Espanha, dialogam teoricamente sobre o lugar social e simbólico das mulheres na internet, trazendo a diversidade de posições em torno do ciberfeminismo da década de 1990. As autoras apresentam um breve histórico do movimento de mulheres na internet até a criação de uma das redes digitais de mulheres mais importantes do mundo de fala hispana, Mujeres en Red, à qual as autoras dedicam o último tópico deste artigo. O texto foi publicado, pela primeira vez, em 2002, na web desta organização feminista e tem tido grande difusão no mundo de fala espanhola. A tradução deste trabalho, pela primeira vez em português, permite a ampla divulgação no Brasil destas mulheres, militantes e

pesquisadoras reconhecidas Brasil afora. Uma, jornalista da TV pública espanhola; a outra, acadêmica na Universidad Rey Juan Carlos, de Madrid. Se existe uma biopolítica na internet, seguindo a ideia foucaultiana de poder, esta pode ser explorada na análise de como operam as TIC nos níveis dos protocolos e códigos. O código é a lei, diria Lawrence Lessig, é o que define o que se pode ou não fazer na internet; é a sua arquitetura. É a escrita que entendem as máquinas, que não entendem de moral, ética ou cultura ou sexismo, pois são apenas máquinas. Os códigos são o produto da linguagem de programação que formatam, tecnicamente, a comunicação mediante os computadores. É sobre os sistemas de linguagens e agentes de comando de funcionamento das máquinas que Graciela Selaimen, da UFRJ, em seu artigo Mulheres desenvolvedoras de tecnologia..., nos instiga a pensar no código como um sistema de biopoder, dada a capacidade de gerar efeitos sobre nossas vidas. Mulheres feministas desenvolvedoras de código, diz ela, são estratégicas na construção de um futuro mais justo e menos sexista. Outros artigos do volume trazem à tona experiências didáticas com mulheres e TIC, debates e pesquisas sobre usos de internet em sala de aula. Talvez a questão principal sugerida por esta coletânea mesmo que não colocada explicitamente e que perpassa todos os textos, seja a do que significa, hoje em dia, falar de ciberfeminismo; ou, em palavras de Braidotti, se é possível um ciberfeminismo diferente, mais realista a respeito do caráter liberador e utópico da tecnologia (tecnofilia que caracterizou às ciberfeministas dos anos 1990) e mais crítico, observando a colonização do ciberespaço por parte do capital e do Estado, mas, também, longe de qualquer tecnofobia, visando a necessidade de um ciberfeminismo mais proativo, engajado tecnologicamente, desencantado e realista, mas que não perca a imaginação tecnológica.