Resolução eficaz de problemas: quatro exemplos



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JFF6-0 Resolução eficaz de problemas: quatro exemplos Em Março participarei no evento Que Matemática para a Sociedade de Informação?, organizado pelo grupo FAST da Universidade do Minho, cujo objectivo é promover o método calculacional e técnicas algorítmicas junto de professores de matemática do ensino secundário. O objectivo desta nota é apresentar alguns dos problemas e respectivas soluções que serão utilizados no texto do convite a enviar aos professores. A selecção dos problemas foi ditada pelas mensagens que queremos passar: a importância de evitar detalhe desnecessário e o uso de um formato de prova simples e sistemático, de uma lógica equacional e de técnicas algorítmicas. 0 O pastor, a ovelha, o lobo e a couve O seguinte problema é bastante popular e é normalmente utilizado para ilustrar a importância de uma correcta modelação do problema para evitar o recurso à técnica de força bruta. Um pastor tem que atravessar um rio, levando consigo uma ovelha, uma couve e um lobo. Porém, o seu barco só lhe permite levar um acompanhante de cada vez, fazendo com que várias viagens sejam necessárias. Além disso, a ovelha não pode ficar sozinha com a couve, nem o lobo pode ficar sozinho com a ovelha. Como é que o pastor pode concretizar a sua tarefa? Normalmente, as soluções para este problema consideram os quatro indivíduos e, como cada um deles pode estar numa das duas margens, o número de estados possíveis (incluindo estados inválidos) é de 16 ( 2 4 ). Note-se que se o problema lidasse com 10 indivíduos, o número total de estados aumentaria para 1024 ( 2 10 ). Este rápido aumento do número de estados é frequentemente causado por uma má análise do problema e pela existência de distinções desnecessárias. De facto, analisando o enunciado do problema com cuidado, notamos que existe uma simetria entre o lobo e a couve, pois nenhum deles pode ser deixado com a ovelha. Esta simples observação permite-nos reescrever o enunciado sem distinguir esses dois indivíduos. Sendo assim, se designarmos a ovelha por alfa e o lobo e a couve por betas, temos o seguinte problema equivalente:

JFF6-1 Um pastor tem que atravessar um rio, levando consigo um alfa e dois betas. Porém, o seu barco só lhe permite levar um acompanhante de cada vez, fazendo com que várias viagens sejam necessárias. Além disso, o alfa não pode ficar sozinho com um beta. Como é que o pastor pode concretizar a sua tarefa? Não é difícil ver que a solução deste segundo problema é única e muito mais simples: o pastor atravessa o alfa e volta sozinho; atravessa um beta e volta com o alfa; atravessa o segundo beta e volta sozinho; finalmente, atravessa o alfa. Assim, há duas soluções para o problema original que correspondem às duas possíveis escolhas para o primeiro beta a ser atravessado: o lobo ou a couve. Este exemplo simples mostra um princípio muito importante para a resolução eficaz de problemas: Evitar distinções desnecessárias. 1 Jogadas de Xadrez No jogo de Xadrez, o bispo move-se ao longo das diagonais e o cavalo move-se em L : duas casas para a frente ou para trás, seguida de uma casa para a direita ou para a esquerda, ou, duas casas para a direita ou para a esquerda, seguida de uma casa para a frente ou para trás. 1. Prove que, se mover um bispo, a casa para onde ele se desloca tem a mesma cor da casa inicial. 2. Prove que, se mover um cavalo, a casa para onde ele se desloca tem uma cor diferente da casa inicial. Dica: Se usarmos coordenadas cartesianas para as casas do tabuleiro e se ao canto inferior esquerdo corresponder a coordenada (0, 0), então podemos dizer que uma casa (i, j) é preta se as paridades de i e de j forem as mesmas (ou são ambos pares, ou são ambos ímpares). Comecemos com a primeira parte do problema: provar que a cor da casa para onde o bispo se desloca é a mesma da casa inicial. Não é difícil ver que se um bispo se encontra na casa (i, j), então pode-se deslocar uma distância k (positiva ou negativa) para a posição (i + k, j + k) ou para a posição (i + k, j k) desde que fique dentro do tabuleiro. Assim, o objectivo é provar que as casas (i, j), (i + k, j + k) e (i + k, j k)

JFF6-2 têm todas a mesma cor. Para isso, usamos a informação dada na dica para definir a função preta que, dada uma casa, devolve verdadeiro se ela é preta e falso se ela é branca. Formalmente, preta.(i, j) = (par.i par.j). (Note-se que usamos um ponto infixo para denotar a aplicação de funções e assumimos a existência de uma função par que, dado um número, devolve verdadeiro se esse número é par e falso se é ímpar. O símbolo denota igualdade booleana (i.e., a b só é verdadeiro se a e b forem ambos verdadeiros ou ambos falsos). Esta função permite a formalização do nosso objectivo de uma forma muito compacta. Provemos primeiro que as casas (i, j) e (i + k, j + k) têm a mesma cor, i.e., preta.(i, j) = preta.(i + k, j + k). A prova, usando o formato de prova calculacional a que estamos habituados, é: preta.(i + k, j + k) = { definição de preta } par.(i + k) par.(j + k) = { a função par distribui pela adição, i.e., para todo o i e k : par.(i + k) par.i par.k } par.i par.k par.j par.k = { a equivalência é associativa, simétrica, e reflexiva } par.i par.j = { definição de preta } preta.(i, j). Provámos em quatro passos que as casas (i, j) e (i + k, j + k) têm a mesma cor. Cada passo é uma equivalência (pois usamos o = ) e a justificação é dada entre chavetas. Por exemplo, o primeiro passo diz que a expressão preta.(i + k, j + k) é equivalente à expressão par.(i + k) par.(j + k), por definição da função preta. Por outro lado, no terceiro passo utilizamos propriedades da relação de igualdade booleana para remover a sub-expressão par.k. Finalmente, por transitividade da relação de igualdade booleana concluimos que a primeira expressão preta.(i + k, j + k) é equivalente à última preta.(i, j) (i.e., as casas (i, j) e (i + k, j + k) são ambas pretas ou são ambas brancas). Provar que (i, j) e (i + k, j k) têm a mesma cor, e que a jogada do cavalo é para uma casa de cor diferente da original, ficam como exercício para o leitor.

JFF6-3 2 Evitar duplas implicações desnecessárias O exemplo seguinte mostra que um formato de prova conciso, juntamente com o uso de uma lógica equacional, permite construir argumentos mais curtos que evitam duplas implicações desnecessárias. Consideremos o seguinte lema e respectiva prova, extraídos da página 39 do livro Elementary Number Theory de Gareth A. Jones e J. Mary Jones [JJ98]. Nota A expressão a = b (mod n) significa que a e b são congruentes módulo n, i.e., a e b têm o mesmo resto na divisão inteira por n. Também usamos a barra \ para denotar a relação de divisão. Assim, n\(a b) significa que n divide o inteiro a b, i.e., existe um inteiro k tal que n k = a b. Apesar das notações apresentadas aqui serem diferentes das do livro e da tradução não ser uma correspondência exacta, o argumento é exactamente o mesmo. (Fim de Nota) Lema 3.1 Para qualquer n 1 temos que a = b (mod n) se e só se n\(a b). Prova Escrevendo a = q n + r e b = q n + r, temos que a b = (q q ) n + (r r ) com n < r r < n. Se a = b (mod n), então r = r, i.e., r r = 0. Temos então a b = (q q ) n, que é divisível por n. Conversamente, se n divide a b, então divide (a b) (q q ) n = r r ; como 0 é o único inteiro estritamente entre n e n que é divisível por n, temos que r r = 0. Então, a = b (mod n). Vejamos agora como poderíamos reescrever esta prova, utilizando um formato mais conciso e evitando a dupla implicação: Prova Escrevendo a = q n + r e b = q n + r, temos que a b = (q q ) n + (r r ) com n < r r < n. Então, n\(a b) = { temos que a b = (q q ) n + (r r ) }

JFF6-4 n\((q q ) n + (r r )) = { propriedade da divisão inteira } n\(r r ) = { temos que n < r r < n e 0 é o único inteiro r r = 0 estritamente entre n e n que é divisível por n } = { r r = 0 r = r e definição de congruência } a = b (mod n). Em apenas quatro passos provámos o lema, utilizando as mesmas propriedades da prova original. Além disso, concluímos imediatamente que quaisquer duas expressões das cinco apresentadas são equivalentes. 3 Tetrominós e invariantes Um invariante é uma propriedade que se mantém constante e o exemplo que se segue ilustra como é que invariantes, aliados com o nosso formato de prova, são úteis na resolução de problemas. Um tetrominó é uma figura geométrica composta por 4 quadrados do mesmo tamanho. Supondo que um tabuleiro rectangular é coberto por tetrominós, mostre que pelo menos um dos lados do tabuleiro tem um número par de quadrados. É fácil ver que quando se coloca um tetrominó no tabuleiro, o número de quadrados cobertos aumenta 4. Assim, um invariante deste problema é que o número de quadrados cobertos é um múltiplo de 4. Usando este invariante, a solução do problema é imediata: um tabuleiro m n está coberto por tetrominós { invariante: o número de quadrados cobertos é um múltiplo de 4; há m n quadrados cobertos } m n é múltiplo de 4 { propriedade de múltiplos } m é múltiplo de 2 n é múltiplo de 2.

JFF6-5 (Note-se que o formato que utilizamos permite escrever implicações da mesma forma que escrevemos equivalências.) João Fernando Ferreira 16 de Janeiro de 2008 School of Computer Science University of Nottingham, Jubilee Campus Wollaton Road, Nottingham NG8 1BB United Kingdom joao@joaoferreira.org Referências [JJ98] Gareth A. Jones and Josephine M. Jones. Elementary Number Theory. Springer, July 1998.