Contos e lendas de Macau Alice Vieira



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Ilustrações Alain Corbel Temas Amor impossível; Submissão aos costumes; Preconceito; Mitologia oriental; Grandes navegações Guia de leitura para o professor A autora nasceu em Lisboa, Portugal, em 1943. Formada em Germanística pela Faculdade de Letras de Lisboa, trabalhou como jornalista e fez sua estréia como escritora em 1979. Hoje, ela é uma das mais celebradas autoras de literatura portuguesa. Em 1994, Alice foi indicada pela seção portuguesa do IBBY (International Board on Books for Young People) ao prêmio Hans Christian Andersen pelo conjunto de sua obra. 144 páginas O ilustrador Alain Corbel nasceu na Bretanha, França, em 1965. Estudou Belas-Artes em Bruxelas, tornando-se uma referência em quadrinhos. Mora em Portugal desde 1997 e trabalha como ilustrador, cartunista e cronista. Recebeu, entre outros, o Prémio Nacional de Ilustração por Contos e lendas de Macau, em 2002. Por que este livro é importante 2008996275005 Distantes geográfica e culturalmente, Portugal e Macau começaram a travar contato na época das Grandes Navegações e foram se conhecendo ao longo dos séculos. Esse evento pode ser visto como um exemplo do encontro de duas civilizações e de seus desdobramentos em suas dimensões culturais e sociais. Nos dias atuais, em que se evidenciam a violência e os métodos violentos no que se refere às diferentes perspectivas culturais, é importante buscar o conhecimento e difundir atitudes de respeito para com outras culturas e outras visões de mundo. O diálogo entre civilizações diversas permite o alargamento dos horizontes intelectuais, abrindo caminho para a compreensão das particularidades de cada cultura e do estabelecimento do respeito mútuo.

Pequena história das Grandes Navegações O império marítimo português começou a se formar no momento da tomada de Ceuta, no norte da África, em 1415, no início da longa jornada das Grandes Navegações, e existiu até a perda final das últimas possessões, na década de 1990. Esse imenso território contava com terras no que se denominava as Índias Orientais, isto é, as terras localizadas na América, no continente africano, na Índia e na atual China. Macau, situada no estuário do rio Zhu Jiang (rio das Pérolas), próximo a Guang-zhou (Cantão), contou com a visita de mercadores portugueses, pela primeira vez, em 1513. Em 1557, passou a ser ocupada por missionários e comerciantes portugueses, que fundaram a colônia de Cidade de Deus na China, com permissão das autoridades locais. A atividade comercial de Macau foi intensa com o Japão e outras regiões asiáticas até fins do século XVII. Em meados do século XIX, era o único porto aberto para mercadores ocidentais. Além de importante entreposto comercial, Macau constituía ainda ponto de passagem obrigatório para os cristãos que se dirigiam à China, uma vez que a presença portuguesa de missionários e de comerciantes ajudou a difundir o cristianismo no mundo oriental. Em 1849, Macau foi declarada, com o reconhecimento chinês, território português. Esse status foi modificado em 1951, da condição de colônia para a de território ultramarino. Pelo acordo de 1987, realizado entre os dois países, Macau retornou à soberania chinesa no ano de 1999. Nas últimas décadas, temos assistido ao inequívoco avanço da China como o futuro gigante que dominará a economia mundial. Maior população do mundo, com mais de um bilhão e meio de habitantes, a China tem uma história riquíssima e um patrimônio cultural inestimável no que se refere a lendas e mitos. Contos e lendas de Macau é uma amostra da gama de elementos formadores da cultura chinesa. As histórias giram em torno de narrativas que relatam momentos marcantes na vida de pessoas comuns e de seus valores em relação à existência individual e coletiva. Essa leitura possibilita a descoberta, apesar das enormes diferenças, da existência de elementos comuns que fazem parte do arcabouço cultural, simbólico e arquetípico de toda a civilização humana. A presença portuguesa em Macau esteve ligada ao processo de expansão marítima e comercial e de colonização das principais metrópoles européias durante a Era Moderna, que levou enormes porções do planeta a se relacionar pela atividade mercantil. Antes do advento das Grandes Navegações, as civilizações eram como ilhas, continentes insulares que viviam presos a seus próprios enredos e processos históricos, sem contato com outras culturas e realidades. Com as Grandes Navegações, o contato regular que passou a se estabelecer entre a Europa, a América, a África e a Ásia mudou irreversivelmente esse quadro. Por meio desse notável processo de conhecimento mútuo, a civilização ocidental descobriu que seus parâmetros e suas referências culturais não eram absolutos e que era enorme a multiplicidade de olhares sobre o mundo e a existência na Terra. As histórias de Contos e Lendas de Macau O livro traz seis histórias que tratam de acontecimentos fantásticos e excepcionais na vida de pessoas comuns em Macau. Marcadas pela paisagem local, essas histórias evidenciam o estreito contato entre o homem e a natureza em comunidades fundamentalmente agrárias, como as existentes na China. As árvores que ninguém separa Passada na aldeia de Móng-Há, narra o amor entre A-Kâm, filha do sábio agricultor Lou Uóng,

e A-Hêng, rapaz humilde que um dia sai em busca de trabalho nas terras de Lou Uóng. O convívio dos dois leva ao surgimento de um grande amor e à gravidez de A-Kâm. O pai da moça, contudo, não aceita essa união e impede a filha de se casar com A-Hêng. Infelizes, os jovens cometem suicídio por acreditarem que na vida após a morte poderiam ficar juntos para sempre. O que sabem os pássaros Essa história fala de dois irmãos muito diferentes, Wan Liang e Lao Ta, sobrinhos do pequeno agricultor Sheng Wu, que os cria após a morte dos pais. Wan Liang é alto, forte, veloz e inteligente, enquanto Lao Ta é baixo, corcunda, com dificuldades de locomoção e lento para aprender. Quando o tio morre, Wan Liang expulsa Lao Ta de casa. Porém, anos mais tarde, Wan Liang se vê obrigado a recorrer ao irmão para não morrer de fome. Lao Ta havia se tornado um adivinho que falava com os pássaros. As mãos de Lam Seng Trata da vida de vários homens, ao longo de gerações, que confeccionam bonecos de arroz. O primeiro, Liu Shih, descobre seu talento por meio das palavras do Senhor do Trovão após uma forte tempestade. Com o tempo, ele percebe que é preciso passar adiante sua arte, mas o filho não se interessa. Ele então a ensina ao jovem Yang Po, que a ensina a seu filho e assim sucessivamente. Uma voz do fundo das águas O poeta Ch u Yuan vive no reino de Ch u. Homem justo e sábio, torna-se uma espécie de conselheiro do rei Huai. A influência de Ch u Yuan sobre o rei incomoda outros conselheiros, que conspiram contra o poeta até que o rei o deponha e o expulse do reino. Começa então um período de guerra, corrupção e desmandos, graças à ação dos desonestos conselheiros reais. Um dia, depois de receber a triste notícia de que o reino havia sido vencido por adversários, Ch u Yuan jogase no lago à beira do qual vivia. Para que ele sempre tenha o que comer, os pescadores passam a jogar bolinhos de arroz no rio. Por essa razão, nas regatas em que se festeja a quinta lua do quinto mês em Macau, ainda se fazem oferendas desse quitute. Um estranho barulho de asas Nessa lenda, a tecelã Tchêk Noi e o vaqueiro Ngau Ióng vivem um amor impossível. Uma das sete filhas do imperador de Jade, senhor soberano dos Céus, Tchêk Noi é responsável pelos mais belos e delicados tecidos do mundo, sendo insubstituível aos olhos de seu pai. Mas a moça se apaixona e abandona o posto para viver ao lado do amado. Poucos anos depois, no entanto, ela é obrigada a voltar para seu reino e Ngau Ióng parte em sua busca. Quando estão prestes a se

encontrar, um rio de águas impetuosas é criado pela Deusa-Mãe para separá-los. Desesperada, Tchêk Noi pede a ajuda das irmãs, que se transformam em milhares de pássaros formando uma ponte sobre o rio. Por isso, somente uma vez por ano, no sétimo dia da sétima lua, se o céu estiver claro, a ponte é novamente refeita e Tchêk Noi pode estar junto do marido e dos filhos. O templo das promessas Narra a história de Sâm Mân, um vendedor de chá que conhece uma misteriosa mulher numa viagem de barco para Macau. Durante o percurso, ela se comporta de forma enigmática em meio a uma tempestade, permanecendo tranqüila e impassível enquanto todos os passageiros se amedrontam. Quando finalmente chegam a seu destino, Sâm Mân segue a mulher, mas acaba perdendo-a de vista. Dá-se conta então de que se tratava, na verdade, de Á-Má, a Senhora do Céu. Certo de sua proteção, Sâm Mân joga na loteria com a promessa de erguer um templo em homenagem a ela. Repertórios e temas Seja qual for a abordagem e o ramo do saber, a lenda e o conto constituem um tipo de narrativa que explicita manifestações, valores e crenças de uma sociedade e de um espaço geográfico. Toda sociedade humana elabora seus contos e lendas, e a universalidade dessa prática é por si só reveladora da necessidade de organizar sistemas de valores, medos e temores em forma de narrativas, quer sejam representações do inconsciente, quer tenham uma finalidade educativa e prática. A riqueza cultural e simbólica das lendas e dos mitos se manifesta como um campo privilegiado de trabalho para a investigação dos múltiplos repertórios e formas de leitura da existência individual e coletiva dos seres humanos. Tradição oral Nas sociedades ocidentais em particular, mas também no mundo oriental, valoriza-se muito a cultura escrita, que requer uma formação especial e de conhecimentos específicos para existir. A cultura oral é menos valorizada por não ser patrimônio exclusivo de um grupo social ou de uma elite cultural e por não necessitar, à primeira vista, de conhecimentos específicos. As lendas põem em destaque a transmissão oral do conhecimento, o papel do contador de histórias, um indivíduo que funciona como uma espécie de repositório das tradições culturais de dada cultura. A valorização da tra-

Mito e mitologia Denomina-se mitologia o conjunto de mitos de determinada cultura, além da disciplina específica que possui como objeto de estudo os mitos, seus significados e sua natureza para as diferentes culturas. Campo do saber, abordado por várias ciências, a definição de mito também varia de acordo com cada área. Para boa parte dos historiadores, o mito (ou a lenda) é encarado como uma espécie de fábula, narrativa fictícia em que se encontram relatos de eventos extraordinários, sobrenaturais, e eventos históricos alterados pela tradição oral. Para a Psicanálise, o mito é uma espécie de manifestação do inconsciente alterada a partir do consciente. Trata-se, portanto, de um relato que vai além do pensamento racional e que se diferencia da lenda e da fábula, pois é uma espécie de disfarce para uma consciência humana mais profunda e abstrata. Para os antropólogos, o mito é entendido como uma forma de reflexão figurada de idéias e pensamentos sobre a vida em sociedade. No século XIX, o filósofo francês Auguste Comte afirmou que teria havido uma substituição dos mitos pela filosofia na explicação da vida social e do Universo. Segundo a percepção evolucionista da época, Comte acreditava que a mitologia era uma forma mais primitiva de reflexão que depois evoluiria para a filosofia, até chegar, por fim, à ciência, forma racional de pensamento, seguindo, portanto, o caminho de evolução da sociedade européia. dição oral se revela, assim, como uma forma de preservação da memória coletiva da sociedade. Sabedoria de vida As lendas e os mitos permitem que os valores de vida sejam pensados e refletidos no âmbito social. Como afirma o estudioso de mitos Joseph Campbell, essas narrativas fantásticas, dentre muitas de suas funções, cumprem uma pedagógica, sobre o valor da vida e mesmo do componente de mistério que permeia a existência humana, servindo como uma espécie de exemplo a ser seguido ou a ser evitado. Estrutura sociológica Por meio das lendas e dos mitos, é possível também trabalhar a estrutura sociológica das diversas culturas. A presença do patriarcado pode ser atestada, por exemplo, nas histórias sobre submissão filial das mulheres ao domínio tirânico do pai ou sobre a presença de poligamia. A partir dessa constatação, pode-se discutir o papel desse traço cultural e problematizá-lo de forma histórica, averiguando em que contextos esteve presente e qual a relação do patriarcado com outras esferas de existência da vida social. Outra possibilidade é considerar que os contos e as lendas podem conter elementos capazes de promover no indivíduo o sentimento de pertencimento a uma cultura, na medida em que ligam o indivíduo a seu grupo social. Dessa forma, os contos que trabalham a passagem do tempo ao longo da sucessão de gerações em determinado espaço geográfico mostram que subsiste uma esfera maior do que a própria existência individual: a esfera social da comunidade existe como entidade mais abrangente do que o simples indivíduo. Essas considerações podem ser particularmente significativas nas sociedades contemporâneas ocidentais, em que há um primado do individualismo em detrimento do coletivo. Sacralização da paisagem A integração do homem com a natureza é um aspecto muito presente nessas narrativas. A natureza não é entendida como um obstáculo ou como algo que deve ser dominado e sujeitado, mas o homem é visto como um membro, um participante desse universo. Figuras como a do Senhor do Trovão, da grande Senhora do Céu, da estrela Taurus, personagens-entidades, explicitam a ligação profunda entre os seres humanos e outras formas de vida. Numa época em que o planeta inteiro sofre as conseqüências da destruição do meio ambiente e torna-se necessário preservar os recursos naturais e proteger espécies de animais e vegetais em perigo de extinção, os mitos e as lendas podem ajudar a lembrar que o direito à vida deve ser estendido a outras formas de existência.

Atividades em sala de aula No século XX, outros filósofos trataram de refletir sobre o papel do mito. Os filósofos da escola de Frankfurt, como Adorno e Horkheimer, assinalaram que o Iluminismo tirara muito da força do mito ao enfatizar o racionalismo e o fim da superstição. O processo de desencantamento do mundo teria posto fim à explicação mitológica e muito da cultura humana se teria perdido ao longo desse processo. 1) Uma atividade interessante que pode ser realizada em sala de aula é a leitura em voz alta por toda a turma de um dos contos ou lendas selecionado pelo professor. Ao final, o professor faz uma roda propondo aos alunos que se manifestem, destacando os aspectos da história que lhes pareceram mais interessantes. A partir daí, o professor conduz a conversa a fim de sublinhar o que há de mais significativo e propício ao contexto geral das discussões que estejam sendo feitas ao longo das aulas. 2) Outra possibilidade é solicitar uma pesquisa sobre contos, lendas e mitos de outras culturas. Com o material que encontrarem, os alunos fazem uma apresentação identificando, com o auxílio do professor, os elementos de contato entre as histórias de Contos e lendas de Macau e as das outras culturas. O exercício de comparação é útil para destacar traços específicos e próprios de cada cultura e pontos comuns entre essas narrativas. 3) As histórias do livro poderiam servir também de subsídio para buscar compreender o processo de formação do império marítimo português e o papel de Macau nesse contexto desde meados do século XVI até o fim do século XX. A internet pode ser uma boa ferramenta para que os alunos pesquisem informações sobre Macau nos dias atuais. Dessa forma, eles podem se dar conta do grande processo de globalização iniciado na Era Moderna. 4) As belas ilustrações do livro também podem estimular o trabalho com arte. Seria interessante uma pesquisa sobre pintura chinesa, seguida de uma discussão sobre os diferentes estilos artísticos no mundo, estimulando o debate sobre a necessidade de expressão das sociedades humanas ao longo do tempo. A própria narrativa literária, como forma de arte, permite a reflexão nesse sentido.

Outras leituras para o professor Sobre a formação do império marítimo português: BOXER, Charles. O império marítimo português. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Sobre mitologia e o papel dos mitos: CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990. ELIADE, Mircéa. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2002. Sobre mitologia oriental: CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus. São Paulo: Palas Athena, 1994. v. 2. Coleção Cantos do Mundo: As panquecas de Mama Panya, Mary e Rich Chamberlin Os amantes do lago Rotorua, Rogério Andrade Barbosa O chamado de Sosu, Meshack Asare Contos da montanha, Lúcia Hiratsuka Histórias de Ananse, Adwoa Badoe Contos de um reino perdido, Erik L Homme Gilgamesh, rei de Uruk, Rosana Rios Elaboração do guia Lilian Lisboa Miranda (professora-doutora do Centro Universitário Fundação Santo André); Preparação Dulce Seabra; Revisão Gislaine Maria da Silva e Márcia Menin.