Lembremo-nos de Parmênides, na lição sobre o Ser, que é ao mesmo tempo Uno (Todo ou Universal) e Múltiplo (Partes ou Particulares).



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Transcrição:

Bem Comum: Unidade na Multiplicidade Palavras-chave: Bem social, Bonum commune, Salus publica, Salus populi, Interesse público (comum), Justiça, Segurança, Utilidade. Autores clássicos: Platão, Aristóteles, Cícero, Tomás de Aquino, Locke, Bentham, Stuart Mill. Carlos Aurélio Mota de Souza Sumário: 1. Introdução; 2. Bem comum; 3. A dialética do Bem comum; 4. O Bem comum e o Bem estar social; 5. Bem comum, Justiça e Segurança jurídica; 5.1. Medida histórica da Justiça; 5.2. Pacificação com justiça; 5.3. Ciência prudencial legislativa; 6. Conclusões; 7. Bibliografia. 1. INTRODUÇÃO Lembremo-nos de Parmênides, na lição sobre o Ser, que é ao mesmo tempo Uno (Todo ou Universal) e Múltiplo (Partes ou Particulares). Como se dá em todos os órgãos vivos, uma célula é um Todo em si mesma, mas contem partes menores, que a integram; um órgão vital é um Todo em si, mas parte de um ser maior, o corpo do homem, p. ex. Este homem, dotado de vida física, psíquica e espiritual, é um ser completo, uma unidade ou individualidade por si mesma, que não está só, mas à face de outros homens com os quais convive, e com eles forma outro corpo ou unidade, podendo consistir numa comunidade (singular) ou coletividade (a sociedade em geral). É um ser-para outros seres. Aqueles órgãos, células ou seres constituem Partes, inseridas num Todo mais amplo, um Universo, como as Sociedades de povos (o Universo social), o conjunto de planetas (o Universo planetário), ou, em expressão mais abrangente, o Universo galático; e assim ao infinito. É de se notar que entre o Todo e as Partes existe uma Tensão ou Relação de Complementaridade, uma Dialética de Vida, diríamos, pela qual as duas realidades convivem em estado natural, e não podem deixar de conviver, sob pena de perecimento do ser em que subsistem. Assim, o Todo tem deveres para com as Partes (como na Justiça distributiva), e as Partes em relação ao Todo (na Justiça Geral, Legal ou Social), bem como as Partes têm deveres entre si (como se opera na Justiça Comutativa), e ambas têm, reciprocamente, direitos entre si, segundo a perene teoria aristotélica sobre a Justiça (Ética a Nicômaco, L. V). Portanto, o Bem comum se identifica com o Bem supremo, Bem geral, Bem de todos, Interesse público, e expressões correlatas. Está contraposto aos Bens das Partes, Bens ou interesses particulares, sem os anular, pois um dos fins últimos do Bem comum é garantir a cada um sua perfeição para servir à comunidade. 2. Bem comum (do Todo) X Bens Particulares (das Partes)

A primeira consideração, pois, sobre o Bem comum, é que consiste no Bem supremo da comunidade, o fim mais elevado das ações do homem, e que constitui critério de elaboração das leis justas. A seguinte é que o Bem comum, geral ou público, se contrapõe aos Bens particulares, dos quais não é soma, nem a simples coleção dos bens privados, nem o bem próprio de um todo...que somente diz respeito a si próprio e sacrifica as partes em seu proveito.... o bem comum da cidade é sua comunhão no bem-viver; é pois comum ao todo e às partes... sobre as quais ele transborda e as quais devem tirar proveito dele. A terceira é que os governantes devem guardar dois olhares, um para cima, em direção ao interesse geral (Bem comum), outro abaixo, voltado aos interesses particulares. Platão advertiu que o Bem de todos (ou Interesse público ou Bem geral) conflita com os Bens particulares: enquanto estes separam os homens, aquele os aproxima; e que todos ganham quando o primeiro é assegurado (Leis, IX); o Bem comum é princípio de união se cada membro contribui a realizá-lo; já os Bens particulares (louvados pelos sofistas) desencadeiam desejos e paixões e fazem inimigos os homens. Esse interesse dos particulares não é, para Aristóteles, necessariamente mau, mas, por natureza, é menos belo e menos divino que o interesse comum (Ética, I). Na Política (III), o Estagirita identifica Interesse comum com Interesse mútuo, por estar fundado na reciprocidade dos serviços prestados. Na politeía, governo da maioria, os homens agem em prol do Interesse comum, e as leis da Cidade são justas quando assumem como finalidade este Bem comum. Cícero levantou o conceito de utilitas rei publicae como finalidade ética do político; a utilitas comuni é a justiça que aparece através da dignidade de cada um (De officiis ou Dos Deveres). Portanto, em Platão, Aristóteles e Cícero, que trataram do Bem comum na Era Clássica, este não é o conjunto dos bens ou interesses particulares, mas um equilíbrio destinado a penetrar de justiça a vida social. Para melhor distinguir bem comum de bem particular, Messner associa os conceitos de ser e valor, dizendo: "o bem comum é uma realidade social com categoria supraindividual de ser e valor, em virtude da pluralidade dos membros da sociedade que dela dependem no seu ser humanamente perfeito; o bem particular é uma realidade com categoria de ser e valor supra-social, própria da pessoa humana." E conclui que "o âmbito do bem comum é a cultura, e o do bem particular é a pessoa; e que as duas esferas de valores são ao mesmo tempo essencialmente diferentes e essencialmente dependentes uma da outra". 3. A dialética do Bem comum (bonum commune, salus publica)

Compreendemos o Coletivo ou Coletividade como um Todo (Ente), quer se apresente como uma Sociedade (ampla), quer seja uma simples Comunidade (restrita). Ambas têm uma Missão peculiar (Princípio formal, vocação): alcançar um Bem ou conjunto de Bens ou interesses (Bem comum) mediante atividades do Ente coletivo, e que gerem Benefícios tanto para o Ente (Todo), como para as Comunidades e seus membros (Partes). Como os bens particulares (múltiplos) se incluem no Todo (uno), a missão do Bem comum consiste também na preservação destes. Logo, é escopo do Bem comum garantir e zelar pelo acréscimo dos bens individuais, ou o seu bem-estar. Há, pois, uma inter relação mútua que busca o aperfeiçoamento: a) do Coletivo (Todo) em proveito dos Membros, e b) dos Membros para maior capacidade operativa do Todo. Nesta reciprocidade dinâmica, em que o Todo vê as Partes e as Partes vêem o Todo, há uma tensão dialética de operacionalidade essencial, como as doutrinas filosóficas sobre o Bem comum procuram explicar: I - Os Tomistas vêem a Parte em direção ao Todo: o Bem comum será o Bem global da natureza humana, através da perfeição dos seus membros. A Coletividade será a primeira a auxiliar neste aperfeiçoamento: a) o Bem comum da Família: fazer de cada parte um membro perfeito da comunidade familiar; b) o Bem comum do Estado (coletividade geral, natural e perfeita): levar os cidadãos à perfeição global da sua condição humana. II Os Solidaristas vêem o Todo em relação às Partes: o Bem comum é um estado ou condição da coletividade, um valor organizativo, que objetiva a realização cabal da comunidade, através de: a) uma estrutura ou organização no sentido estrito; b) uma dotação de meios para sua missão e para atuação sobre seus membros, conduzindoos a uma colaboração eficaz. 4. O Bem comum e o Bem-estar social Em razão da Revolução industrial, além da dimensão ética do Bem comum, foram acrescentadas considerações de ordem econômica.

Hobbes e Locke conceituaram o Bem comum como Bem geral e salus populi, inseparável de sua dimensão ética, mas enfatizando o Interesse geral. Adam Smith e Bentham aliaram o desejo de felicidade do homem ao desejo de lucro ou benefícios. As ideologias do século XIX tentaram esvaziar a acepção moral do conceito de Bem comum: para o liberalismo econômico, era a livre concorrência; para o socialismo, a planificação estatal. Ao se iniciar o Séc. XX, discutiu-se o Bem-estar social como forma de o Estado (Todo) atender aos Interesses particulares, restabelecendo-se o conflito discutido por Platão. O chamado Estado do Bem-Estar Social (como nas Constituições do México e de Weimar, nos anos 10, v.g.) prometeu mais benefícios do que podia dar, gerando crises (guerrilhas, insurreições) e guerras (nacional-socialismo). Não se deram conta de que os benefícios seriam pagos pela Sociedade e não pelo Estado... 5. Bem comum, Justiça e Segurança jurídica Justiça e Segurança se interagem diretamente com o Bem comum. Para Radbruch, o bem comum, a justiça e a segurança exercem um condomínio sobre o direito, não em uma perfeita harmonia, senão em uma antinomia vivente, e a preeminência de um destes valores frente a outros só pode ser determinada por uma decisão responsável em cada época. A sociedade que faz as leis é a mesma que as aplica. O poder político e o poder jurídico (potestas e auctoritas), embora antagônicos, são forças sociais convergentes à unidade no Bem comum. As leis contêm valores-fins destinados a assegurar a realização do Bem geral da sociedade e dos indivíduos em particular, e quanto mais firmes e justas forem, maior será a Segurança jurídica para os cidadãos. Le Fur aprecia este trinômio Bem comum-justiça-segurança - como associado aos direitos fundamentais, e Delos refere-se a uma dinâmica entre dois pólos: direito do indivíduo-dever da sociedade; direitos da sociedade-dever do indivíduo. O Bem comum pode ser compreendido como um aspecto do bem particular de cada indivíduo, não só almejado por todos os seres humanos em comum, mas também alcançável em comum por todos. A idéia em torno da qual se estrutura o Bem comum, e que nele não se encontra explícita, é a idéia dos fins humanos. O Bem comum vai encontrar o seu absoluto no fim. 5.1. Medida histórica da Justiça

Discorrendo sobre a atributividade do Direito, Real enfatiza ser próprio deste, "proporcionar os bens, econômicos ou não, em uma ordem de coexistência, se gundo um sentido de totalidade, ordem essa que é bem social ou bem comum, isto é, objetivação da Justiça nos limites das circunstâncias histórico-sociais: o bem comum é, por tal motivo, a medida histórica da Justiça, ou a Justiça em plena concreção histórico-social, assim como a eqüidade representa a Justiça em concreção particular, o que reflete, mais uma vez, a polaridade entre o coletivo e o individual... (itálicos nossos). 5.2. Pacificação com justiça Helmut Coing associa o conceito de Bem comum ao de Paz Social, pois a decisão judicial resulta da tendência pacífica do direito. E sobre esse papel dos Julgadores, Cintra, Grinover, Dinamarco consignam que a pacificação é o escopo magno da jurisdição e, por conseqüência, de todo o sistema processual, pois o objetivo-síntese do Estado contemporâneo é o bem comum e, quando se passa ao estudo da jurisdição, é lícito dizer que a projeção particularizada do bem comum nessa área é a pacificação com justiça. 5.3. Ciência prudencial legislativa Ao criar leis deve o Legislador considerar a sociedade como comunidades de homens concretos, em todas suas dimensões, e que se haverão de reger pelos princípios de participação e de solidariedade, e este com o de subsidiariedade. Bem por isso, o texto de uma nova lei há de ser pensado prevendo a reação que provocará no corpo social, no momento de sua aplicação ao fato a que se refere, e às conseqüências que sua incidência produzirá; a pauta deste labor prudencial é a ordenação ao bem comum, matéria da Justiça social e objeto da prudência. Por que, então, a idéia do Bem comum continua a dominar todos os ramos do Direito, privado e público, interno e internacional? Porque é inseparável das exigências de Justiça, imanentes ao espírito humano. Eis porque nas concepções antigas, e nas mais modernas, a noção de Bem comum tem presença constante no pensamento ocidental 6. Conclusões: Ao Administrador cabe estabelecer metas humanísticas e programas sociais para desenvolvimento das comunidades e seus membros, e escolher prioridades para a evolução harmoniosa do Estado (desenvolvimento cultural, econômico, tecnológico) e das diversas comunidades sociais, equilibrando a ordem interna com os interesses do bem-estar dos cidadãos. Ao Legislador compete criar leis ordenadas ao Bem comum, inspiradas na Justiça social para cada momento histórico. Quem faz a lei deve atentar para o contínuo progresso na

realização do Bem comum, que constitui sua dinâmica. Deve apreender as exigências do progresso social e sua missão na reforma social. Ao Julgador e outros órgãos institucionais da Justiça está reservada a correção dos atos administrativos e a aplicação das leis segundo os ditames do Interesse público (a visão para o alto), sem perder de vista os interesses particulares, pois as leis, sendo ambígüas, permitem e exigem interpretação e aplicação aos casos concretos, individualizados. Portanto, Legislador, Administrador e Julgador devem coincidir no mesmo "olhar para cima", na procura e fixação do Direito justo, para a sociedade em geral e para os cidadãos em particular, o bem comum; este conceito mantém a coerência interna do sistema político, enquanto valor jurídico comum a ambos operadores do mesmo ordenamento, aquele que cria o Direito abstrato, o que executa os programas administrativos, e o que interpreta e aplica a norma ao caso singular. Logo após a Guerra, em 1945, dirigindo-se aos estudantes de Heidelberg, Radbruch reconheceu a necessidade de um Direito supra-legal (expressão menos polêmica que Direito natural, ideal ou racional); dentre outras considerações, afirmou que ao lado da Justiça, o Bem comum é um dos fins do Direito; e mesmo quando má, a lei conserva um valor, o de garantir a Segurança do Direito perante situações duvidosas; por isso, todo direito serve a três valores, que devem se harmonizar nas leis: o bem comum, a segurança e a justiça. 7. Bibliografia: Aristóteles. Ética a Nicômaco; Política. Brugger, W. Dicionário de Filosofia. S. Paulo, EPU, 1977, 3a.ed. Câmara, Maria Helena F. da. Bem comum. Rev. Forense, v. 327 (1994). Cícero. Dos Deveres. Cintra, Antônio C. de Araújo. Ada Pellegrini GRINOVER, Cândido R. DINAMARCO. Teoria Geral do Processo. S.Paulo, 10ª ed. Malheiros, 1994. Coing, Helmut. Fundamentos de Filosofía del Derecho, Barcelona, Ariel, 1976. Delos, J. Los fins del Derecho, Bien común, Justicia, Seguridad, México, UNAM, 1967. Gil, Antonio Hernandez. Conceptos jurídicos fundamentales. Obras completas, Tomo I. Madrid, Espasa-Calpe, 1987. Le Fur, Louis. Los fines del Derecho, Bien común, Justicia, Seguridad, México, UNAM, 1967.

Maritain, Jacques. Os Direitos do Homem e a Lei Natural. Rio de Janeiro, José Olympio, 1967. Martins, Ives Gandra da Silva. A Era das Contradições. Desafios para o novo milênio. S. Paulo, Futura, 2000. Messner, Johannes. Ética Social. São Paulo, Quadrante/EDUSP, s/d. Negro Pavón, Dalmacio. Natureza social do Poder Judiciário. Rev. Tribunais, v. 695 (set. 1993): 16-29. (trad. do autor) Platão. Leis. Radbruch, Gustav. Filosofia do Direito. 4a. ed. Coimbra, Arménio Amado, 1961, v.ii. Reale, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo, 9ª ed. Saraiva, 1982. Santos, Mário Ferreira dos. O Um e o Múltiplo em Platão (com Parmênides, diálogo de Platão). S. Paulo, Edit. Livr. Logos, 1958. Souza, Carlos Aurélio Mota de. Segurança Jurídica e Jurisprudência, S. Paulo, LTr, 1996.. Direitos Humanos, Urgente!, S. Paulo, Oliveira Mendes, 1998. Vallet de Goytisolo, Juan B. Metodologia de las Leyes, Madrid, Ed. Rev. Derecho Privado, 1991.. El principio de la subsidiariedad. Madrid, Speiro, 1982. Cf. Mário Ferreira dos Santos. O Um e o Múltiplo em Platão (com Parmênides, diálogo de Platão). S. Paulo, Edit. Livr. Logos, 1958. W. Brugger. Dicionário de Filosofia. p. 69. Jacques Maritain. Os Direitos do Homem e a Lei Natural, p. 20. O notável jurista espanhol Antonio Hernandez Gil utilizou essa imagem para ilustrar a dimensão axiológica do Direito ("mirada hacia arriba") e a consideração da sociedade subjacente, seus problemas e transformações ("mirada hacia abajo"). Cf. Conceptos jurídicos fundamentales, p. 465. Johannes Messner,. Ética Social. pp. 196 /197. Cf. Ives Gandra da Silva Martins, A Era das Contradições. Desafios para o novo milênio, pp. 99ss. Cf. nosso Segurança Jurídica e Jurisprudência, pp. 77ss e 133ss.

Gustav Radbruch. Filosofia do Direito, v.ii, p. 211. Dalmacio Negro Pavón. Natureza social do Poder Judiciário. v. 695, pp. 16-29. De discutível identificação com o Bem comum são as normas editadas pelo Governo através de Medidas Provisórias. Sobre serem de duvidosa constitucionalidade, em sua grande maioria, pela forma e pelo conteúdo, e como são editadas, geram tumulto legislativo, tornando inseguros os operadores do Direito e incertas as relações jurídicas. Los fines del Derecho, Bien común, Justicia, Seguridad, p.15. Idem, p. 115. Pensamento do jusfilósofo gaúcho Armando Câmara. Cf. Maria Helena F. da CÂMARA. Bem comum.r.f. (327):298, 300. Miguel Reale. Filosofia do Direito. p. 703. Fundamentos de Filosofia del Derecho, p, 257. Cintra, Grinover, Dinamarco. Teoria Geral do Processo, p. 25. Juan B. Vallet de Goytisolo, Metodologia de las Leyes, p.701/703. Cf., do mesmo autor, El princípio de la subsidiariedad. Johannes Messner. Ética Social. pp. 182/ 183