A mediação intercultural e a construção de diálogos entre diferentes: notas soltas para reflexão



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Transcrição:

A mediação intercultural e a construção de diálogos entre diferentes: notas soltas para reflexão (Comentário ao Painel: Mediação Intercultural) Maria José Casa-Nova Instituto de Educação, Universidade do Minho Introdução No âmbito deste Seminário, foi-me solicitado pela Comissão Organizadora que elaborasse um comentário sobre os processos de mediação em contexto intercultural e eu acedi a fazê-lo tendo como base a reflexão desenvolvida a partir da minha experiência enquanto investigadora de grupos minoritários - no caso específico, o grupo socio-cultural cigano português - e enquanto investigadora na área da educação intercultural. É nessa qualidade que aqui estou e que irei realizar um comentário em forma de apontamentos de reflexão com base nessas investigações. Começando pelo que entendo pela palavra mediar, diria que mediar significa estar entre e estar entre significa estar dentro, e estar dentro significa conhecer e compreender sistemas culturais diferenciados (ou lógicas de acção que remetem para diferentes formas de organização do mundo social) potencialmente conflituantes pela dificuldade de percepção das diferentes racionalidades e interesses que subjazem à acção, racional e não racional, dos actores sociais. O mediador ou mediadora é alguém que está entre-dentro dois (ou mais) sistemas culturais diferenciados ou diferentes lógicas de actuação face a uma mesma situação; entre-dentro de formas de percepção e entendimento do mundo social não partilhadas pelos diversos sujeitosactores sociais em presença. Dentro de qualquer sistema cultural, quando duas pessoas estão em diálogo, considero que não estão duas, mas quatro. E este número tem a ver, não com as pessoas na sua dimensão física, material, mas com as

Actas do Seminário Mediação Socioeducativa: Contextos e Actores pessoas na sua dimensão interpretativa, enquanto seres portadores de esquemas de percepção do mundo social que são diferenciados devido à estruturação mental em valores e normas condicionadores da acção, maioritariamente incorporados nos processos de socialização nos diferentes grupos de pertença. Estas duas pessoas que se transformam em quatro, significa que as formas de entendimento do outro relativamente ao que um outro pretende comunicar, podem encontrar-se totalmente em contra-mão, pelo facto de a leitura realizada ser uma leitura concordante com o mundo subjectivo do sujeito que interpreta. Se interpretações desta natureza têm lugar entre actores sociais pertencentes a um mesmo sistema de valores, a possibilidade de acontecer entre actores sociais que não partilham o mesmo entendimento do mundo social é ainda muito maior. Com efeito, quando os diferentes actores sociais se encontram face a situações que escapam ao seu domínio pelo desconhecimento dos códigos de leitura das mesmas, ocorrem processos mentais que vão no sentido de buscar significado para essas situações dentro do seu sistema de valores, recodificando, quando possível, essa situação, no sentido de possibilitar a sua inteligibilidade e, eventualmente, o diálogo. Quando essa recodificação, por razões de vária ordem, não acontece, as interpretações em contramão constituem uma barreira ao diálogo, acabando frequentemente em conflito. Mas o que significa mediar? Na minha perspectiva, a mediação pode ter como objectivo a remediação de conflitos - remediação no sentido medicinal de remédio para curar determinado mal, neste caso, males sociais na perspectiva de quem está envolvido nesses conflitos e de quem pretende resolvê-los-, ou de prevenção de conflitos, o que implica a capacidade de antecipar, de prever (no sentido de ver antecipadamente), o que implica um conhecimento reflexivo sobre a realidade, sobre os contextos sociais de actuação. Mas mais importante do que estas duas dimensões da mediação, considero que mediar significa autonomizar os actores, significa criar 62

Maria José Casa-Nova condições para a construção de poder. Neste caso, autonomização e construção de poder significam possibilitar àqueles que são mediados uma aprendizagem potenciadora de uma auto-resolução, uma autoprevenção de conflitos, uma aprendizagem em acção que se transforma em capacidade de actuação quando ela própria é mediada por processos de reflexão. Esta é para mim a dimensão mais importante dos processos de mediação e um dos papéis a desempenhar pelo mediador ou pela mediadora nos diversos contextos de interacção. 1. Mediar: o quê e como Durante as investigações que tenho realizado, frequentemente estive no papel de mediadora, embora no decurso dessas investigações este papel nunca tenha sido assumido antecipada ou estrategicamente. Surgiu por solicitação, implícita ou explícita, dos actores sociais que partilharam comigo os seus quotidianos e que derivou do meu conhecimento destes dois mundos sociais: o do grupo socio-cultural cigano e o do grupo sociocultural maioritário e da legitimidade que me foi outorgada a este nível por aqueles que me solicitavam. Situações concretas de mediação foram surgindo, das quais relato aqui uma como exemplo. O grupo socio-cultural cigano português com quem trabalhei durante as minhas investigações é um grupo que durante décadas partilhou o mesmo espaço sócio-geográfico. Por imposição camarária, este grupo encontra-se presentemente a terminar um processo de realojamento que tem levado à sua dispersão por diversos Bairros de habitação social da cidade do Porto. Este processo de realojamento não foi isento de conflito entre este grupo e as instituições estatais, acusadas de racismo por vários dos 63

Actas do Seminário Mediação Socioeducativa: Contextos e Actores elementos ciganos. De acordo com as percepções 1 de vários indivíduos pertencentes à unidade de observação, o Estado, representado pela Câmara e pelas Técnicas e Técnicos Superiores, recusou o alojamento em determinados Bairros da cidade do Porto, a pretexto da inexistência de casas livres, procurando realojá-los nos Bairros considerados pelos ciganos como os mais problemáticos da cidade do Porto, principalmente no que diz respeito ao tráfico de estupefacientes. 1.1. A (não)relação entre culturas: o desconhecimento e a descodificação dos códigos linguísticos e culturais Ainda de acordo com as percepções de elementos do grupo cigano, o não realojamento nos Bairros pretendidos por estes últimos tem como causa, não a falta de habitação disponível, mas o racismo das populações não ciganas aí residentes que, segundo aqueles, recusam a permanência no Bairro de várias famílias ciganas. A conivência que dizem existir entre as instituições estatais e as populações não ciganas significa, para os elementos ciganos, uma forma de racismo. Neste processo de realojamento, as famílias ciganas estudadas revelaram estratégias de participação activa e de exercício de cidadania, percorrendo a cidade do Porto para conhecimento dos vários Bairros de habitação social existentes, no sentido de emitirem opinião fundamentada na recusa-escolha do novo local socio-geográfico de residência. Esta recusa-escolha do novo local de habitação encontrava-se intimamente associada à dimensão das habitações, na sua maioria exíguas, exigindo habitações com condições concordantes com aquelas que eram obrigados a abandonar. 1 Por percepções entende-se quer a forma como é percebida cada situação vivenciada pelos sujeitosactores no momento da sua ocorrência, como os esquemas mentais de entendimento do mundo que pré-existem a cada situação. Dentro de uma sociologia compreensiva-interpretativa, considero que o termo percepção, remete para uma maior flexibilidade e dinamicidade das formas e processos de entendimento do mundo social do que o conceito de representação social. Neste sentido, considero que aquele é mais adequado para dar conta das formas de organização mental e de compreensão do mundo social por parte dos sujeitos e que medeiam as suas relações do quotidiano. 64

Maria José Casa-Nova A existência de interesses divergentes entre este grupo cigano e o Outro não cigano, protagonizado, no caso em análise, pela Câmara do Porto, teve como consequência uma exteriorização verbal ameaçadora por parte de alguns elementos ciganos que, na impossibilidade legal de fazer valer os seus direitos de cidadãos (dado não possuirem meios de prova do racismo que percepcionavam), exercem o seu poder sobre o Outro sob a forma de ameaças à integridade física e/ou emocional 2. No caso em análise, o recurso à ameaça funciona como uma forma de defesa contra uma produção discursiva dos técnicos camarários que frequentemente se revelava ininteligível para estes elementos, tendo levado à solicitação da presença da investigadora quer para decifrar os códigos verbais utilizados, quer como figura mediadora no processo. Como referiu uma mulher cigana: eles têm uma conversa de indrominar que a gente não percebe nada. Mete raiva. Nós queríamos que viesse connosco que era para ver se nos ajudava a perceber. Quando confrontados com situações que percepcionam como inibidoras de direitos consagrados em Lei, os ciganos portugueses (deste grupo e de outros grupos ciganos portugueses com quem tive oportunidade de contactar) argumentam com um tipo específico de poder, simbolizado no medo que provocam na sociedade maioritária, utilizando-o como uma maisvalia nas relações de força que tecem o seu quotidiano. O exercício deste tipo de poder, constituindo-se frequentemente na linguagem possível entre diferentes, nomeadamente na relação com instituições estatais, tem possibilitado o acesso a determinado tipo de direitos que, de outra forma, lhe seria negado, não tanto (ou somente) pela existência de um racismo institucional, mas pelo desconhecimento e/ou incompreensão dos códigos culturais ciganos. O exercício da cidadania, mesmo apenas no que diz respeito a uma cidadania outorgada, da responsabilidade do Estado, tem sido dificultado aos grupos ciganos pelas razões acima apontadas, encontrando-se também condicionado pela necessária descodificação dos 2 Por seu turno, esta violência verbal, usada como forma de poder e, consequentmente, como forma de exercício de cidadania, é ela mesma reforçadora dos estereótipos existentes acerca destes sujeitosactores, legitimando e reforçando a distância social maioria-minoria. 65

Actas do Seminário Mediação Socioeducativa: Contextos e Actores códigos linguísticos e dos códigos de leitura da realidade da sociedade maioritária. O desconhecimento e/ou incompreensão dos códigos linguísticos e de leitura do real, estão frequentemente na origem de monólogos paralelos entre cultura maioritária-cultura cigana, linhas que frequentemente apenas se interceptam para conflituar e perpetuar estereótipos negativos e cujo resultado é um auto (também resultante de um hetero) fechamento das comunidades ciganas, condicionador das suas relações de sociabilidade e de processos de integração não subordinada. Fazendo parte de sistemas culturais estruturalmente diferenciados, cada cultura faz uso dos argumentos dos respectivos universos culturais, frequentemente não inteligíveis pela outra cultura, mas que são produtores de sentido dentro de cada universo cultural e, por essa razão, constituemse em argumentos legítimos face à cultura do Outro (Casa-Nova, 2009). 3 No caso em análise, algumas das famílias ciganas em processo de realojamento reivindicavam casas junto de algum elemento da família alargada, argumento considerado sem sustentação pelos técnicos e técnicas camarários, mas pleno de sentido para as famílias ciganas dado que, quando completamente isoladas dos sujeitos-actores da sua cultura, emerge um sentimento de insegurança e de vulnerabilidade face ao Outro pertencente à sociedade maioritária e com quem mantêm uma relação secular de desconfiança, transmitida de geração em geração, em forma de uma genética cultural. A intervenção da investigadora como mediadora neste processo de tradução cultural permitiu a algumas destas famílias a descodificação dos códigos de leitura da realidade dos sujeitos-actores pertencentes à cultura maioritária e o respectivo uso de argumentação inteligível e credível face a esse outro, procurando assim o exercício de uma hermenêutica diatópica (Sousa Santos, 1996: 31) 4 enquanto exercício de reciprocidade entre culturas que consiste em transformar as premissas de argumentação de 3 Maria José Casa-Nova (2009) Etnografia e produção de conhecimento. Reflexões críticas a partir de uma investigação com ciganos portugueses. Lisboa: ACIDI. 4 Boaventura Sousa Santos (1996) Por uma concepção multicultural dos direitos humanos, in Revista 66 Crítica de Ciências Sociais, 48, pp. 11-32;

Maria José Casa-Nova uma dada cultura em argumentos inteligíveis e credíveis noutra cultura, possibilitando assim o diálogo. O trabalho desenvolvido foi um trabalho de compreensão de sistemas culturais diferenciados e de construção de comunicação entre sujeitosactores pertencentes a esses sistemas culturais, procurando autonomizar os sujeitos-actores sociais mais vulneráveis em termos de domínio dos diferentes tipos de poder socialmente valorizados os ciganos através da descodificação da argumentação usada pelo outro não cigano e da legitimação da argumentação utilizada face a esse outro. Este tipo de trabalho é inerente à figura do mediador e da mediadora: conhecer para compreender, compreender para mediar, mediar para tornar possível a construção de diálogos ou de uma vivência não conflitual na perspectiva dos sujeitos-actores. As situações de mediação são múltiplas, remetendo para realidades sociais diversificadas, tendo lugar nos mais diversos contextos de interacção. Ocorrem interculturalmente, mas também intraculturalmente, como é o caso dos ciganos, em situações de resolução de conflitos emergentes entre famílias extensas, onde os mediadores são actores não intencionais (não preparados para o efeito), escolhidos 5 dentro do seu grupo de pertença face a um conjunto de características evidenciadas ao longo da sua trajectória de vida e que são comunitariamente reconhecidas como potenciadoras da resolução de conflitos. São os chamados tios, actores sociais de meia idade, respeitados dentro do grupo de pertença pela regularidade da exemplaridade comportamental. Mas também é o caso dos portugueses não ciganos, por exemplo, em situações de interacção na sala de aula, entre professores e alunos, com origem em dificuldades de comunicação intergeracional ou dificuldades de compreensão de formas de processamento da informação por parte das crianças, jovens ou adultos, em que os mediadores autorizados são frequentemente professores 5 Esta escolha não se apresenta como uma escolha racional, mas decorre das situações do quotidiano e do conselho que naturalmente os restantes membros do grupo solicitam aos sujeitos-actores que evidenciam as características consideradas adequadas face a situações específicas de conflito potencial ou real. 67

Actas do Seminário Mediação Socioeducativa: Contextos e Actores reconhecidos pela sua capacidade de compreensão das razões subjacentes a estas situações. De algumas destas situações ouviu-se falar neste painel, quer pelo Bruno, enquanto mediador em diversos contextos de interacção entre elementos pertencentes ao grupo socio-cultural cigano português e elementos pertencentes ao grupo socio-cultural maioritário, quer nas reflexões relativas ao desenvolvimento do Projecto Escolhas, mais voltado para a relação entre sociedade maioritária e os grupos migrantes presentes na sociedade portuguesa. Estas intervenções evidenciaram a importância dos processos de mediação e, consequentemente, da figura do mediador e da mediadora. Mas importa não esquecer que o mediador é um actor que também foi socializado para um determinado entendimento do mundo social e para que essa estruturação mental não funcione como um impeditivo do conhecimento e compreensão de outros sistemas culturais, mas antes como uma mais-valia, é fundamental um exercício reflexivo constante sobre o seu próprio mundo cultural, os mundos culturais dos outros e o significado de estar entre-dentro para que se torne possível a construção de diálogos multilaterais e, consequentemente, de sociedades interculturais ou de uma vivência conjunta que, na perspectiva dos protagonistas da acção, não se apresente como fragilizadora dos seus quotidianos e projectos de vida. 68