Do estigma à conquista da auto-estima: a construção da identidade negra na performance do funk carioca



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Do estigma à conquista da auto-estima: a construção da identidade negra na performance do funk carioca Adriana Carvalho Lopes (Unicamp) 1 Identidade, Performance, Raça ST 36- Vulnerabilidade e condições lingüísticas de sobrevivência Me chama de cachorra que eu faço au-au : esse é um refrão de uma música funk produzida por Tati Quebra-Barraco, uma das inúmeras MC s (Mestre de Cerimônia) habitantes das favelas do Rio de Janeiro. Um refrão que, ao atravessar as fronteiras raciais e sociais da cidade do Rio de Janeiro, passou a ser consumido por vários setores da sociedade brasileira, transformando-se em polêmico símbolo da juventude carioca. Se, por um lado, o funk é uma possibilidade de existência pública para alguns sujeitos, pois é uma forma de identidade, lazer e interação para jovens de periferia 2 ; por outro lado, o funk provoca um choque nas sensibilidades de determinados setores da sociedade brasileira, uma vez que, esse é considerado uma prática musical que retrata as relações de gênero de maneira sexista e violenta 3. No entanto, essa não é a percepção das meninas do funk carioca. Se durante os primeiros dez anos de existência do funk, esse era dominado principalmente por MC s masculinos, nos últimos quatro anos, MC s femininas ganharam grande projeção fora e dentro das periferias do Rio de Janeiro, assumindo performances nas quais celebram a sua sexualidade e se autodenominam cachorras, popozudas, preparadas, fogosas e tchutchucas. Neste texto, pretendo fazer uma interpretação que busca dialogar com ponto de vista das jovens sobre tais performances. Para tanto, realizo uma análise de três faixas do último CD Boladona de Tati Quebra-Barraco, uma das maiores representantes da presença negra e feminina no funk. Primeiramente, cabe destacar que, nesta análise, não considero a música como simplesmente mais uma manifestação artística dissociada da política. Pelo contrário, entendo que o funk carioca é parte da cultura da diáspora africana que tem a música como um dos seus principais capitais culturais 4. O funk carioca é um rap (ritmo e poesia) resultante de um intenso processo de apropriação, transformação, nacionalização e comodificação da cultura hip hop: um dos principais movimentos estético-musicais da juventude diaspórica. O rap, um dos elementos do hip hop, é uma espécie de antilinguagem que funciona como uma prática de compensação à exclusão do letramento formal a que foram submetidos os descendentes de escravos. Rose 5 destaca que o rap é um rico terreno no qual

2 mulheres negras das periferias urbanas encenam as contradições e as ambigüidades constituintes de suas identidades. Nesse sentido, assumo que o rap é uma narrativa política, ou seja, são atos de fala que tanto fornecem significados para a uma determinada audiência, quanto performatizam e encenam as identidades e as normas sociais. Desse modo, ao analisar do rap de Tati Quebra-Barraco, busco compreender de que maneira as meninas do funk citam e/ou resignificam convenções sociais e lingüísticas por meio das quais elas constituem a suas identidades de gênero e raça, bem como a sua sexualidade. Faixa 1: Só um tapinha? Quem primeiro citou o tapinha no mundo funk foi o MC Naldinho, integrante do grupo Bonde do Tigrão com a música Um tapinha não dói no ano de 2001. Se, por um lado, um tapinha não dói rendeu um processo movido pela Justiça Federal de Porto Alegre contra a gravadora de tal rap, por considerar que essa música banaliza a violência contra a mulher; por outro lado, no mundo funk, o tapinha foi apropriado por Tati Quebra-Barraco, que gravou em seu CD o rap Tapinha na frente, tapinha atrás, fazendo uma explicita referência ao rap um tapinha não dói. Tapinha atrás tapa na frente O homem é assim pensa que é o rei da malandragem Meu negocio é papo reto você quer é sacanagem Fala até demais do meu jeito de agir Já cansei de ser otária a Tati tem que reagir Nós mulheres somos assim não damos ponto sem o nó Já arrumei mais um jeitinho pra tudo ficar melhor Escute a minha forma pra você ficar comigo Você finge que me ama e eu finjo que acredito Tapa na frente tapinha atrás ai gatinho ta bom de mais Tapinha atrás tapa na frente que jeitinho envolvente Tati fala em primeira pessoa e situa si própria como parte integrante e porta-voz de um sujeito feminino coletivo: o nós mulheres. Cabe destacar que mulher não é uma categoria descritiva, mas sim uma posição de sujeito estratégica que é constituída na performance lingüística 6. Nesse sentido, se não há uma essência que determine a mulher, assumir tal posição é uma performance provisória, baseada em certo ponto de vista político e histórico sobre o que venha a ser o nós mulheres. Essa posicionalidade constituí-se, à medida que a categoria mulher interseciona-se, de forma complexa, com outros significados identitários como por exemplo, os de geração, raça e classe 7.

3 Tati constitui a categoria mulher fundamentada por significados heterossexuais que posicionam homens e mulheres como pares opostos no jogo da sedução. A posição feminina forma-se em contraposição à masculina: o homem, o rei da malandragem. No entanto, tais significados heterossexuais são acionados e desafiados. Tati cita a fala masculina ( ele fala até demais do meu jeito de agir ) para refutá-la ( Tati tem que reagir... nós mulheres somos assim não damos ponto sem nó ) sem, no entanto, abdicar do jogo da sedução. Porém, Tati alerta que só entra em tal jogo sob determinadas condições: escute a minha forma pra você ficar comigo. Em uma entrevista concedida ao Jornal da Tarde 8 sobre o conteúdo pornográfico de suas letras, Tati explica: eu falo mesmo, porque pra mim, o homem tem que me satisfazer, gosto de prazer. Assim, Tati resignifica a posição da mulher na relação heterossexual: ela deixa de ser mero objeto e figura como sujeito de seu desejo. De acordo com Lyra 9, o jogo de sedução é fundamentado pelos conceitos passivo e ativo, no qual o primeiro é sempre considerado o mais fraco, o feminino, o dominado, o submisso. Tati, ao deixar de ser otária e reivindicar o seu jeito de fazer, coloca as identidades de gênero em novo formato, uma vez que implementa o conceito ativo para a mulher e, dessa forma, inverte a ordem hierárquica do jogo de sedução. O ritmo do rap, bem como o vocabulário utilizado, como por exemplo, sacanagem, meu negocio é papo reto são índices lingüísticos que mostram como a identidade de gênero articula-se com outras posições de sujeito. Tati constitui a sua identidade por meio de uma antilinguagem jovem da periferia. Nesse sentido, ela afasta-se de mulheres negras brasileiras de outras gerações, que também tiveram a música, principalmente o samba, como o seu maior capital cultural. Afirmo isso, pois Tati, ao cantar a sua própria sexualidade, estabelece uma relação intertextual com samba, conferindo-lhe um novo formato. Por exemplo, em seu rap, Tati cita o seguinte verso, você finge que me ama e eu finjo que acredito, que foi composto e, primeiramente, cantado pelo sambista Nelson Sargento na música Falso Amor Sincero. Como mostra Vianna 10 o samba, entre tantos gêneros musicais existentes no Brasil, foi eleito como a autêntica música nacional: uma performance que mistura ritmos brancos e negros. Porém, Tati, ao colocar o samba em forma de um rap cantado por uma perspectiva feminina, não só resignifica as mistura permitidas na constituição do samba, cantando os versos da música nacional sob o ritmo das batidas eletrônicas provenientes da cultura jovem afro-americana, como também coloca em xeque a própria sexualiade feminina cantada no samba de Nelson Sargento. Se, na música do sambista, o verso você finge que me ama e eu finjo que acredito celebra um falso amor no qual o homem possui uma mulher que faz tudo que ele quer, como canta Nelson nos seguintes versos, O nosso falso amor é tão sincero/isto me faz bem feliz/ela faz tudo que eu quero ;

no rap cantado por Tati, o mesmo verso é utilizado, mas para lembrar que a falsidade só pode acontecer do jeitinho que ela quer 4 Faixa 2: Sou cachorra sim, e daí? Tati Quebra-Barraco foi a primeira funkeira a utilizar o termo cachorra em seus raps. A música Boladona III cantada sob o ritmo do miami bass à carioca é composta pelos três seguintes versos: Me chama de cachorra, que eu faço au-au / Me chama de gatinha, que eu faço miau/se tem amor a Jesus Cristo. Depois disso, outros grupos gravaram raps com tal termo, bem como Tati na música Boladona que leva o nome de seu CD. Boladona Na madruga boladona, Sentada na esquina. Esperando tu passar Altas horas da matina Com o esquema todo armado, Esperando tu chegar Pra balançar o seu coreto Pra você de mim gostar Sou cachorra sou gatinha não adianta se esquivar vou soltar a minha fera eu boto o bicho pra pegar Assim, como na faixa 1 analisada neste texto, a música Boladona é uma narrativa em primeira pessoa, em que Tati constrói uma cena em que ela, numa madrugada qualquer, é o agente no jogo da paquera, tramsformando, dessa forma, o sedutor em sedutora. Keys 11, ao analisar o rap norteamericano, destaca uma categoria de MC s femininas que, no interior da cultura hip hop, encenam uma performance que ela chama de Sista with Attitude. Para essa autora, essas seriam aquelas rappers que constiuem as suas identidades como jovens independentes, que gostam de festa e, ainda, possuem uma vida sexualmente ativa. Acredito, que Tati Quebra-Barraco encena uma atitude semelhante em sua performance. Em suas letras, a temática é sempre sobre a sua agência na conquista e no sexo. Porém, a reivindicação para si sobre o poder de ação no jogo da paquera acontece por meio de uma antilinguagem que é fundamentalmente masculina. Aqui, vale lembrar, as formas pelas quais as identidades de gênero são articuladas na diáspora africana, principalmente na cultura hip hop. Como mostra Gilroy 12, na cultura hip hop, homens e mulheres são significados de forma antagônica por uma formação vernacular misógina, na qual a masculinidade é altamente valorizada e a mulher é sempre retratada de maneira pornográfica. Entretanto, o sujeito que enuncia o texto pornográfico não tem um

5 controle soberano sobre a disseminação de seus sentidos 13. Desse modo, o mesmo vocabulário que oprime e objetifica o feminino, transformando-no em pura corporalidade, funciona, também, como estratégia de resistência. Como mostra Butler 14, o nome que fere fornece, paradoxalmente, a possibilidade de existência social para o sujeito, uma vez que esse é inserido na vida temporal da linguagem. Assim, os nomes cachorra ou gatinha, quando enunciados pelos sujeitos que deveria silenciar, assumem outros significados, transformando-se em signos de agência. Esses deixam de ser termos negativos e passam a constituir a identidade de sujeitos femininos que desafiam a autoridade masculina no jogo da sedução. Faixa 3: Sou feia, mas tô na moda O título desse rap Sou feia, mas tô na moda, juntamente como os enunciados não tenho cabelo liso, não sou gostosa, mas tô comendo o seu marido viraram, sem dúvida, os dois bordões mais populares de Tati Quebra-barraco. O primeiro deles serviu até como o título do documentário sobre as mulheres no funk produzido pela cineasta Denise Garcia. Destaco abaixo a letra do rap Sou feia, mas tô na moda. Sou feia, mas to na moda Eta lele, eta lele Eu fiquei 3 meses sem quebrar o barraco, Sou feia mais to na moda, To podendo pagar hotel pros homens isso é que mais importante. Quebra meu barraco. Nesse rap, Tati narra o porquê de ter recebido o seu nome artístico: quebra-barraco, uma metáfora utilizada para significar relações sexuais. Em entrevista ao Jornal da Tarde 15, Tati explica: ganhei esse nome porque estava há três meses sem namorar. Aí o único meio que tive dos homens saberem de minha carência foi fazendo essa música. Nessa mesma entrevista, Tati, também, explica o conteúdo de suas letras, eu só canto a realidade, as mulheres que não gostam da minha letra são as que fazem tudo isso, mas não admitem, não tem coragem de falar Mais uma vez, ela resignifica o lugar silencioso da objetificação sexual. Se a mulher é imaginada como puro corpo, é dessa construção que ela se apropria, porém retira-na do lugar de objeto, pois, na voz de Tati, esse objeto transforma-se em sujeito que enuncia. Nesse rap, fica implícito que tal sujeito que enuncia é também atravessado por significados raciais. Digo implicitamente, pois Tati, em nenhum momento, tanto em suas letras, quanto em suas

6 entrevistas, se autodenomina negra. No entanto, é por uma série de outras metonímias, como por exemplo, meu cabelo não é liso e sou feia, que o significado racial vai se constituindo. No Brasil, a formas de classificação do belo e do feio estão intrinsecamente relacionadas com as formas de classificação racial. Apesar de sua população majoritariamente negra e do predomínio dos ritmos culturais negros, no Brasil, o padrão de beleza branca é a medida utilizada para significar e valorar as características fenotípicas 16. Assim, Tati é feia e o seu cabelo não é liso em relação a tal padrão branco. Porém, Tati cita esses padrões para inverter completamente o seu sentido, uma vez que ela está na moda e é desejada pelo seu marido. Butler 17, em sua psicanalítica do poder, desataca como os significados de gênero e raça do ocidente também informam os desejos que determinam quais as pessoas são passiveis de serem amadas e desejadas, bem como aquelas para as quais o amor e o desejo são sentimentos impensáveis. Nesse sentido Tati, por meio desses enunciados, evidencia e desafia essas fronteiras do desejo, habitando como a diferença lugares sociais que lhe seriam um tabu. Acredito que Tati, incorporando metonimicamente a jovem negra e favelada, causa estranhamento na estética hegemônica, uma vez que ganha visibilidade no espaço da moda ou do belo povoado por mulheres brancas e, ainda, coloca-se como uma mulher passível de ser desejada. Faixa 4: Palavras Finais Bell hooks 18 destaca que o erotismo pode ser uma forma de cura pela qual mulheres negras transformam certa imagem estigmatizante em símbolo de orgulho, poder e auto-estima. Nesse sentido, Tati, ao falar e assumir a sua sexualidade, (des)mestifica a posição de objeto, vira sujeito de seu enunciado, ganha visibilidade pública e, dessa forma, quebra tabus, questionando os padrões de beleza raciais. Enquanto, para boa parte do movimento feminista, principalmente aquele elaborado e reivindicado por intelectuais brancas, uma das questões centrais era a luta contra o estigma de objetos sexuais como uma forma de alcançar a igualdade entre homens e mulheres, para jovens, como a Tati, a igualdade entre homens e mulheres é buscada por meio de um discurso que prioriza tanto o reconhecimento, quanto a celebração de sua própria sexualidade. Quando Tati foi questionada por um repórter 19 se ela se consideraria uma feminista do século 21, a MC responde, se o povo acha isso, deixa achar e, completa, explicando o seu comportamento, falou o que eu não gosto, eu revido porque acho que não vim a esse mundo para ser humilhada. Sou uma mulher de atitude. Sem utilizar o rótulo feminista, até pelos significados de classe, raça e geração que o sujeito do feminismo parece

acionar, Tati é porta-voz de uma mulher que não silencia o erotismo, mas lhe resignifica, reclamando para si não só a beleza, como também a agência no jogo sexual. 7 Notas 1 Doutoranda em Lingüística pelo IEL/Unicamp. 2 Além de ser uma prática cultural que introduziu, ampliou ou reforçou oportunidades de trabalho, sobretudo para jovens pobres, abrindo, por essa via, perspectivas profissionais criativas e sensíveis à cultura própria desses jovens (Souto, J. Os Outros lados do funk carioca. In: Vianna, H. (org.) Galeras Cariocas. Territórios de conflitos e encontros culturais. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003, p. 67. 3 Além das inúmeras associações que recorrentemente são feitas não só pela mídia nacional, como também por setores da classe média entre funk carioca e narcotráfico. Porém, nesse trabalho não entrarei nessa questão. 4 Gilroy, P. The Black Atlantic. Modernity and Double Conscioness. Cambridge: Harvard University Press, 1996. 5 Rose. T. Never Trust a Big Butt and a smile. In: Forman, M. & Neal, A. (org.). That s the joint! The hip hop studies reader. New York: Roudtledge, 2004 (pp. 292-309) 6 Butler, J. Bodies that Matter. On the discursive Limits of sex. Great Britain: Routledge, 1993 7 Nicholson, L. Interpretando o gênero. In: Revista Estudos Feministas, 8(2):09-41, 2000. 8 O barraco virou predio, Jornal da Tarde, 20 de junho de 2005. 9 Disponivel em http://www.jornalmusical.com.br, acessado em 30/05/2008 10 Viana, H. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995. 11 Keys, C. L. Empowering Self, making choices, creating spaces: black female identity via Rap Music Performance In: Forman, M. & Neal, A. (org.). That s the joint! The hip hop studies reader. New York: Roudtledge, 2004 (pp. 265-276). 12 Gilroy, Gilroy, P. The Black Atlantic. Modernity and Double Conscioness. Cambridge: Harvard University Press, 1996. 13 Butler, J. J. Excitable speech: a politics of the performative. New York: Routledge, 1997. 14 Ibidem. 15 O barraco virou predio, Jornal da Tarde, 20 de junho de 2005. 16 Como mostra Gilroy (1996:25), o fenótipo não tem qualquer sentido natural anterior a seus códigos culturais e historicamente mutáveis. O processo de significação é a única questão que importa. 17 Butler. J. On speech, race and melancolia: an interview with Judith Butler. Disponível em http://tcs.sagepub.com/cgi/content/abstract/16/2/163. Acessado em, 14/04/2008 18 Hooks, b. Sisters of the Yam: Black women and self-recovery. Boston: South End Press, 1993. 19 O barraco virou predio, Jornal da Tarde, 20 de junho de 2005.