Cantos xamânicos, performance ritual e agência entre os Yanomae do alto Toototobi 1



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GT: Performance, drama e sociedade Coordenadores: John Dawsey - USP Esther Jean Matteson Langdon - UFSC Cantos xamânicos, performance ritual e agência entre os Yanomae do alto Toototobi 1 Maria Inês Smiljanic Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná. Introdução 2 Os Yanomami constituem uma família lingüística isolada, formada por quatro línguas distintas Yanomae, Yanomami, Sanumá e Yanam, cujo processo de diferenciação lingüística iniciou-se há aproximadamente 7 séculos. A pesquisa que deu origem a este trabalho foi realizada entre os Yanomae do alto Toototobi numa região fronteiriça entre as comunidades Yanomae e Yanomami entre janeiro de 1997 e maio de 1998 e entre os meses de outubro e novembro de 2004. Durantes décadas a troca constante de conhecimento estes os Yanomae dessa região e grupos vizinhos e até mesmo distantes fez surgir um xamanismo hibrido que congrega vozes de diferentes línguas e dialetos falados pelos Yanomami. Depois de décadas de troca de informações com outros grupos e do investimento feito por parte de alguns xamãs que viajaram por territórios distantes para adquirirem novos conhecimentos, canções e espíritos auxiliares, os xamãs do alto Toototobi adquiriram fama e são reconhecidos como xamãs poderosos em várias regiões da T. I. Yanomami. Neste paper, parto do pressuposto que os cantos xamânicos são, como os gêneros literários analisados por Mikhail Mikailovich Bakhtin, atos sociais que desvelam uma matriz ideológica e uma forma particular de agência. Este trabalho explora, assim, uma veia aberta por Oakdale (1996) que demonstrou como os conceitos bakhtinianos aplicados à análise dos eventos rituais indígenas podem colocar em evidência a forma como as performances narrativas de líderes e xamãs indígenas podem fornecer a uma coletividade os 1 Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq - por ter financiado minha pesquisa sobre cantos xamânicos Yanomae, Edital MCT/CNPq 006/2003, processo 403513/2003-0. 2 Este texto apresenta reflexões sobre um material cuja transcrição, tradução e sistematização ainda encontrase em elaboração. Pede-se, portanto, a gentileza de não citá-lo sem a prévia autorização da autora. 1

conceitos a partir dos quais seus membros apreendem o mundo a sua volta e agem sobre ele. Xamanismo e cantos xamânicos entre os Yanomae do alto Toototobi Para os Yanomae, a fala articulada, aka xaari, é um atributo humano que se opõe à fala desarticulada, aka porepë, dos fantasmas, dos animais e daqueles que não falam a língua yanomae. Ela recorta as diferentes categorias ontológicas distinguindo vivos e mortos, humanos e animais, os espíritos dos ancestrais da humanidade atual e os espíritos das plantas. A capacidade de falar corretamente é uma qualidade que se adquire com a idade. Ela é produto tanto das mudanças que ocorrem no corpo físico ou invólucro corporal, pei siki, como de um aprendizado contínuo que se inicia na infância e que se prolonga por toda a vida 3. É na medida em que o pescoço enrijece, por volta dos quatro meses de idade, que a criança torna-se mais atenta, conseguindo fixar seus olhos mais demoradamente num mesmo ponto, reconhecendo as pessoas e escutando com mais atenção o que dizem. Os Yanomae consideram que é por meio da atenção, yãmaka tao, e da repetição, uwemai que se adquire conhecimento. Saber ouvir, como em muitos grupos indígenas, é uma qualidade cultivada pelos Yanomae, de tal forma que ser chamado de surdo, yãmaka komi, é sinal de ignorância e um grave insulto entre eles. É apenas quando a criança adquire firmeza e começa a andar que ela se torna capaz de repetir aquilo que escuta. E se ela for um bom ouvinte, quando atingir a maturidade plena, o que ocorre quando uma pessoa tem filhos criados e, quiçá, netos, ela terá a eloqüência, aka hwayu, comum àqueles que pensam com sapiência, pihi moyãmi e será capaz de dominar as diferentes práticas discursivas não coloquiais reconhecidas pelos Yanomae, que podem ser divididas em cinco gêneros distintos: as falas dos homens velhos 3 Farage (1997), num estudo sobre a retórica Wapishana, propõe que a palavra é um atributo importante na definição da humanidade entre os povos indígenas da região guianense. Os dados Yanomae corroboram com afirmação da autora. 2

e sábios, hwërëamou, os cantos festivos, heri, os diálogos convidativos, hiimu, os diálogos cerimoniais, wayamu e os diálogos de troca de bens, yaimu 4. Os discursos dos homens velhos e sábios, pata thëpë hwëreamou, ocorrem um pouco antes do amanhecer, quando as pessoas ainda estão sonolentas em suas redes, e ao anoitecer, quando todos estão deitados, conversando. Este tipo de discurso é direcionado a toda a comunidade e geralmente é um privilégio masculino. Mas não existe nenhuma restrição ao uso da palavra pelas mulheres e na região de serras, horepëha, as mulheres mais velhas, patayoma, também discursam. Nas terras planas, yariha, presenciei mulheres discursando em poucas ocasiões 5. Não é incomum a esposa compor um tipo de dueto com o marido, fazendo, em voz baixa, sugestões, dando sua opinião sobre os assuntos discutidos e até mesmo sussurrando o que deverá ser dito por ele. Em seus discursos, os mais velhos falam sobre as atividades diárias, repreendem os mais jovens, alertam sobre possíveis ataques de feiticeiros inimigos, contam histórias de viagens a outras terras, de conflitos presentes e passados. A entonação da voz do narrador e a resposta da audiência dependem do assunto que está sendo tratado. Muitas vezes, os discursos são entrecortados por piadas e comentários engraçados de pessoas da platéia. Outras vezes, as discordâncias fazem com que os discursos se intercalem, numa discussão que adentra a noite. Os cantos heri ocorrem durante as festas intercomunitárias. Eles são, geralmente, inspirados na mitologia ou nas atividades associadas às festas e ritos fúnebres como as caçadas coletivas e o preparo dos alimentos a serem consumidos nestas ocasiões 6. São cantos curtos executados pela noite a fora, quando grupos de homens ou de mulheres, em fileiras de três, quatro, cinco pessoas alternam-se competitivamente, contornando a maloca num bailado que avança alguns passos para retroceder dois ou três. Esta modalidade de canto deve ser executada à noite, quando o sol brilha na terra onde habitam os mortos e, embora não exista nenhuma proibição explícita ou sanção para sua execução em outras situações, as pessoas afirmam sentirem vergonha de executá-los fora do contexto ritual. 4 Os cantos heri e os diálogos cerimoniais hiimu, wayamu e yaimu ocorrem, geralmente, por ocasião dos ritos fúnebres e já foram descritos por vários autores. Para uma descrição dos mesmos no contexto dos ritos fúnebres Yanomae, remeto os leitores à tese de Albert (1985). 5 A distinção entre regiões de serra, horepëha, e regiões planas e barrentas, yariha, é uma distinção estabelecida pelos Yanomae do alto Toototobi. 6 Albert (1985) relata que no Catrimani alguns destes cantos são considerados hea, conceito que designa um ser que é a contrapartida sonora de outro ser de tal forma que o som do primeiro anuncia a chegada do segundo. Uma das mulheres entrevistadas por mim concordou que tais cantos seriam hea dos alimentos preparados pelas mulheres, mas ela os classificou como heri, cantos apropriados para as festas comunitárias. 3

Os diálogos hiimu também ocorrem por ocasião dos ritos fúnebres e das festas organizadas para recepcionarem visitantes de outras regiões. Quando uma pessoa morre, os jovens são encarregados de avisar as comunidades próximas e convidar seus moradores para se despedirem do corpo que deverá ser pendurado na floresta, onde será decomposto pelo tempo para que, posteriormente, sejam preparadas as urnas funerárias. Estes jovens partem sozinhos ou em duplas para as comunidades vizinhas, onde entabulam um diálogo com os moradores destas localidades para convidá-los para chorar o morto. Como o nome das pessoas falecidas e a referência à morte entre os Yanomae estão cercados por restrições, os jovens fazem o convite por meio de um diálogo rico em metáforas que aludem tangencialmente ao fato. Estes convites se repetirão, posteriormente, por ocasião do preparo das urnas funerárias, e nas festas que se seguem e que tem por objetivo chorar o morto e consumir suas cinzas e objetos pessoas, apagando todo e qualquer traço de sua existência sobre a terra. Por ocasião da chegada dos convidados para os ritos fúnebres, os diálogos hiimu são mais uma vez executados, enquanto os visitantes aguardam, em pé, serem levados aos compartimentos domésticos de seus anfitriões, onde deverão amarrar suas redes e onde receberão ofertas de água e alimento. Segundo Albert, estes diálogos também ocorriam ao fim dos ritos fúnebres, quando os convivas eram instigados por seus anfitriões a participarem das incursões guerreiras que tinham por finalidade vingar o morto (1985: 448). Entretanto, talvez pelo fato das expedições guerreiras não serem mais realizadas pelos moradores do alto Toototobi, não presenciei tais diálogos e nem mesmo coletei referência a eles em minhas entrevistas. Os diálogos rituais wayamu são os mais complexos e requerem um conhecimento aprimorado de rima e métrica próprias a este gênero discursivo. Os diálogos wayamu ocorrem por ocasião dos ritos fúnebres ou festas intercomunitárias e envolvem um ou mais pares formados por um anfitrião e um convidado. Estes dois homens, devidamente paramentados para a ocasião, abraçam-se, agachados e trocam informações sobre fatos ocorridos em suas comunidades ou alhures. Os diálogos obedecem a uma cadência própria, de tal forma que as silabas são recortadas e repetidas, sendo, muitas vezes, a recitação de uma mesma palavra estendida por várias estrofes. O outro participante responde com monossílabos ou frases que muitas vezes repetem ou rimam com os enunciados daquele que repassa as informações. Os pares de visitantes e anfitriões se alternam até o amanhecer 4

e, dependendo da tensão existente entre os grupos dos participantes do diálogo wayamu, eles podem terminar em brigas de bater no peito ou brigas com varas. Os diálogos yaimu não diferem em sua forma dos diálogos wayamu. Mas o yaimu têm por objeto as trocas que ocorrem durante as visitas intercomunitárias. Estes diálogos ocorrem no pátio da maloca, paralelamente às discussões que acontecem nos compartimentos domésticos, onde os anfitriões procuram certificarem-se dos objetos que desejam e aquilo que dispõe para dar em troca aos seus convidados. Muitas vezes, tratandose de visitantes de comunidades distantes, os anfitriões poderão realizar um esforço coletivo para responder às demandas dos convidados, mesmo que os objetos oferecidos por eles estejam muito aquém do que desejariam receber. O status ontológico da fala e dos cantos xamânicos Em seus cantos, os grandes xamãs e seus espíritos-auxiliares lançam mão de todos os recursos utilizados pelos Yanomae em seus discursos. As sessões xamânicas Yanomae são comparadas a festas nas quais os xamãs são os anfitriões e os espíritos-auxiliares, os visitantes. Assim, em seus diálogos, xamãs e espíritos fazem hwëreamu, entabulam diálogos hiimu, fazem wayamu, informando uns aos outros sobre o que se passa noutras localidades e realizam trocas que são negociadas em diálogos yaimu. Não é, portanto, por sua forma, que os cantos xamânicos se distinguem das demais manifestações da fala, mas, como veremos a seguir, por seu status ontológico. Os Yanomae consideram que a fala é um componente da pessoa. Assim, a voz e o som, wã, ã; os nomes, wãha, ãha; são geralmente incorporados a uma base nominal, verbal ou são acompanhados do suporte pro-forma nominal pei, pois são partes ontologicamente ligadas a um ser ou a uma totalidade da qual compõem apenas uma parte 7. O mesmo ocorre com os demais componentes imateriais que formam a pessoa Yanomae, com as partes morfológicas de um animal ou vegetal ou qualquer outro elemento que é parte de uma totalidade maior. O canto, amoa, em certas expressões, também pode estar incorporado a uma base nominal ou verbal. Mas na maior parte das vezes, os cantos dispensam o uso dos 7 Ver Ramirez 1994: 37. 5

incorporados. Os cantos podem ser bens alienáveis, matihipë, cuja posse pode ser indicada pelos nominais ipa (1 a. pessoa do singular e do plural), aho (2 a. pessoa do singular ou do plural) e pelo incorporado e (3 a. pessoa do singular ou do plural) 8. Da mesma forma que os cantos, em certas expressões, a voz (pei wã) também pode assumir a forma de um bem alienável - como na expressão ipa thë ã, meu discurso. Mas a voz não apresenta o mesmo estatuto ontológico que os cantos xamânicos, pois apenas estes últimos podem se apresentar tanto como objetos, sob a forma de galhos de canto, amoahiki, como sob a forma de entidades personificadas em espíritos, amoayomapë. Assim, os cantos podem ser dados, trocados, negociados. Eles são bens valiosos e são oferecidos pelos espíritos-auxiliares aos espíritos maléficos em seus diálogos yaimu quando os primeiros pedem a estes últimos que devolvam o princípio vital, pei ani utupë, dos Yanomae, capturado por eles. Os cantos xamânicos e a experiência visionária Os cantos xamânicos Yanomae são formados pela voz de inúmeros seres que falam por meio da voz do xamã. O xamã Yanomae canta aquilo que escuta e sua própria voz é a de um outro, pois os xamãs, ao perderem a consciência, assumem no mundo dos espíritos, uma forma distinta daquela que é visível às pessoas comuns. Saber ouvir é um atributo fundamental na prática do xamanismo. Desta forma, em outubro de 2004, pude observar que um xamã que já havia sido poderoso e respeitado, mas que havia perdido progressivamente sua audição, não participava mais de forma ativa das sessões xamânicas, permanecendo sentado próximo aos outros xamãs e apenas respondendo ao apelo dos demais com monossílabos, pois não era mais capaz de ouvir os espíritos-auxiliares e, portanto, de cantar. Os xamãs, ao descreverem suas experiências visionárias, afirmam que a aproximação dos espíritos-auxiliares é pressentida por uma série de sons ininteligíveis que aos poucos adquirem clareza e constituem os versos de seus cantos. Como nos diálogos wayamu, as palavras dos cantos xamânicos podem ser desdobradas, por meio da divisão e repetição dos fonemas que as formam. Os Yanomae afirmam que desta forma as palavras 8 Ver Ramirez 1994: 71. 6

são abertas, estendidas, thë ã karoprarema; ou limpas, tornadas claras, thë ã wawëprarema, como uma clareira sem mato. É cantando que os xamãs formam as imagens que são os caminhos, os enfeites, objetos e seres deste outro mundo, visível apenas aos xamãs. Os xamãs do alto Toototobi afirmam que seus cantos podem ser molhados, como os cantos dos neófitos; ou secos, como os cantos dos xamãs mais experientes. Durante a iniciação xamânica, os neófitos têm a casa de seus espíritos auxiliares construída pelos xapiri, termo que em Yanomae designa tanto os xamãs como os espíritos-auxiliares. Esta casa recebe forma terrena por meio de um tronco que é adornado com pinturas e penas, tomando forma antropomórfica. Este tronco, denominado pei maaki 9, é fincado no chão da maloca, na parte onde o teto da casa coletiva se abre para o pátio central. Quando a iniciação está próxima do fim, o tronco pei maaki é levado para a floresta ou porção da roça próxima a floresta, onde ele é deixado no alto de uma série de estacas, até deteriorar-se com o tempo. Enquanto a pei maaki de um neófito permanecer no interior da casa coletiva, ele deverá cantar para ela, aumentando gradativamente a entonação de sua voz, até que seus cantos sequem e subam aos céus, onde assumem as formas visualizadas pelos xamãs. O neófito, em seus cantos, refere-se a casa de seus espíritos, pei maaki, como napata; termo carinhoso utilizado pelos Yanomae como vocativo para se dirigirem às meninas antes da maturidade sexual, e que deriva da junção de dois termos na, vagina, pata, grande. Nos cantos do jovem iniciante, a partir de um jogo de palavras, o epíteto carinhoso cede lugar a uma grande vagina sangrante. Nos cantos dos xamãs mais experientes, os caminhos podem se transformar em grandes rios de sangue ou podem cair do céu como gotas de chuva 10. Segundo os xamãs da região do alto Toototobi, as iniciações xamânicas devem ocorrer no início da estação seca. Eles afirmam que durante os primeiros dias de iniciação, quando os cantos dos neófitos estão molhados, a chuva cai torrencialmente. É apenas com o passar dos dias e na medida em que seus cantos tornam-se mais secos, que sol volta a brilhar, e inicia-se a estiagem. 9 Onde pei, conforme afirmei anteriormente, é um incorporado que indica a pertença a um todo e maaki, serra ou montanha. 10 Alguns mitos que discorrem sobre o vermelho na plumagem de alguns pássaros associam o vermelho ao sangue derramado por eles ou sobre eles no tempo em que eles viviam como Yanomae sobre terra. 7

Canto e agência entre os Yanomae Para os Yanomae, os cantos dos grandes xamãs são registros em forma de imagem, utupë, de todos os sons já emitidos, que permanecem gravados na Árvore de Cantos, Amoahi, localizada no peito do céu. Os cantos xamânicos estão repletos de citações aos eventos transcorridos no tempo em que os ancestrais da humanidade atual viviam sobre a terra. Estas seqüências podem ser expressas pelo uso do passado simples, mas, os grandes xamãs fazem uso de um tempo especial que no discurso cotidiano distingue os eventos atuais daqueles que tiveram lugar na época em que os ancestrais míticos viviam sobre a terra. Este tempo é formado pela combinação de duas ou três partículas, o pretérito mais que perfeito no, o afirmativo wë e o testemunhal i, resultando nas partículas nowei, em Yanomami, e noi, em Yanomae 11. Por exemplo: Omawë yanomami a rë përioninowei (Omawë morou nesta floresta como Yanomami). Mas os cantos xamânicos Yanomae não são eventos passados, eles necessitam ser cantados para terem existência. Neste sentido, os cantos xamânicos Yanomae parecem se aproximar dos cantos maracá Kayabi que, segundo Oakdale (1996), relatam as experiências oníricas dos xamãs que, ao serem cantadas, são re-sonhadas pelos xamãs que dormem sobre seus próprios pés. Para os Kayabi, os cantos xamânicos são re-ocorrências dos sonhos que os originaram. Da mesma forma, para os xamãs Yanomae seus cantos são re-ocorrências de eventos passados que tomam forma por meio dos cantos. Em seus cantos, os xamãs nomeiam exaustivamente diferentes localidades e nomes dos ancestrais da humanidade. Os xamãs expandem os nomes, dividindo suas sílabas e repetindo-as. Desta forma, eles dão materialidade a palavra. A associação entre cantos, desenhos e sangue, verificada nos cantos iniciáticos coletados na região do alto Toototobi, fortalecem está idéia. O sangue é considerado pelos Yanomae uma substância associada ao princípio vital ani utupë 12. Assim, ao nomearem seres e objetos no mundo dos espíritos, os xamãs Yanomae dão continuidade à ordem cósmica. A palavra xamânica, neste sentido, se opõe a palavra mundana, circunscrita a restrições e tabus. Entre os Yanomae, as pessoas 11 Ver Ramirez 2001: 215. 12 Sobre esta associação, ver Albert 1985. 8

sentem vergonha em pronunciar o próprio nome e o nome de um morto não deverá ser mais pronunciado, sob a pena de provocar sua volta ao mundo dos vivos 13. Nos cantos xamânicos, as palavras possuem extensão e nitidez, elas são corpos que podem ocupar uma fração do espaço. Quanto mais poderosos são os xamãs, mais nítidas são as imagens formadas por seus cantos. Assim, quando os grandes xamãs ensinam aos xamãs mais novos o caminho de um novo espírito, os aprendizes reconhecem o poder de seus mestres ressaltando a nitidez da imagem que os cantos destes últimos proporcionamlhes. Eles afirmam que antes não eram capazes de verem os xapiri; mas que agora, eles os vêem claramente. *** A pessoa Yanomae é formada por um invólucro corporal frágil e mortal, pei siki, e um interior, pei ũũxi, que compreende uma série de componentes que possuem destinos diferenciados após a morte de um indivíduo. A fala, pei wã, constitui um componente da pessoa partilhado com os ancestrais da humanidade atual. Nos cantos xamânicos, a fala, destituída de um invólucro corporal, assume forma própria. Os cantos xamânicos podem ser molhados ou secos, eles podem conter mais ou menos sangue, eles podem ser etéreos e subirem aos céus e/ou materializarem-se em diferentes seres. Os cantos xamânicos colocam em evidência a importância da fala para os Yanomae. Entre os Yanomae, a fala articulada não conforma as pessoas às regras que lhes são exteriores, mas as forma como seres humanos. E é desta capacidade que decorre seu poder de convencimento. 13 Embora não tenha sido citado no corpo deste texto, a leitura do trabalho de Cesarino (2003) sobre os cantos xamânicos ameríndios foi importante para a compreensão dos cantos xamânicos entre os Yanomae. 9

Bibliografia Albert, Bruce. 1985. Temps du sang, Temps des Cendres: Représentation de la maladie, système rituel et espace politique chez les Yanomami du sud-est, Tese apresentada para obtenção do título de doutor na Universidade de Paris X. Bakhtin, M.M. 1981. The Dialogic Imagination. Austin: University of Texas Press. Cesarino, Pedro de Niemeyer. 2003. Palavras Torcidas: metáfora e personificação nos cantos xamanísticos ameríndios. Rio de Janeiro: Dissertação Apresentada como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Antropologia Social ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Museu Nacional / UFRJ. Farage, Nádia. 1997. As Flores da Fala: Práticas retóricas entre os Wapishana. São Paulo: Tese de doutorado apresentada à Área de Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Gebhart-Sayer, Angelika. 1986. Una terapia estetica. Los diseños visionarios del ayahuasca entre los shipibo-conibo. In America Indígena, vol. XLVI, núm. 1. pp. 189-218. Langdon, E. Jean Matteson. 1996. Introdução: Xamanismo - Velhas e Novas Perspectivas. In (org.). Xamanismo no Brasil: Novas Perspectivas. Florianópolis: Editora da UFSC. pp. 09-37. Lizot, Jacques. 1975. Diccionário Yanomami-espanhol. Caracas: Universidad Central de Venezuela. Facultad de Ciencias Edconómicas Y Sociales, División de Publicaciones. Oakdale, Suzanne. 1996. The Power of Experience: Agency and Identity in Kayabi Healing and Political Process in the Xingu Indigenous Park. Chicago, Illinois: A Dissertation submitted to The Faculty of the Division of the Social Sciences in Candidacy for the Degree of Doctor of Philosophy, Department of Anthropology. Ramirez, Henry. 1994. Iniciação à Língua Yanomama. Boa Vista: Diocese de Roraima. 2001. Le Parler Yanomami des Xamatauteri. Guajará-Mirim: Cepla Working Papers (1994), n o 1. s/d. Iniciação à Língua Yanomami. São Gabriel da Cachoeira: Diocese de São Gabriel da Cachoeira; Manaus: Inspetoria Salesiana Missionária da Amazônia. Smiljanic, Maria Inês. 1999. O Corpo Cósmico: O xamanismo entre os Yanomae do Alto Toototobi. Tese apresenta ao Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília para obtenção do título de Doutor em Antropologia. 10