SUJEITOS HÍBRIDOS E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES EM ROMANCES DE TONI MORRISON E DANZY SENNA



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SUJEITOS HÍBRIDOS E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES EM ROMANCES DE TONI MORRISON E DANZY SENNA Luciana de Mesquita Silva 1 A palavra diáspora está relacionada à idéia de deslocamento de povos de seus locais de origem para outras regiões, deslocamento esse podendo se configurar de maneira forçosa ou por vontade própria. Independentemente da forma como ocorre tal migração, a condição do sujeito diaspórico abre discussões que se debruçam, ao mesmo tempo, na relação desse indivíduo com sua terra natal e com seu novo lar. Tal tópico é discutido teoricamente por Clifford (1997), Brah (1996), Hall (1990; 2004), Bhabha (1998), entre outros. No campo da literatura, o referido tema vem sendo tratado de diferentes maneiras. As escritoras Toni Morrison e Danzy Senna podem ser citadas como exemplo disso a partir de seus respectivos romances Tar Baby (1981) e Caucasia (1998) nos quais se fazem presentes as complexidades vivenciadas por personagens femininas mestiças na busca de suas individualidades, já que ambas são de descendência negra, mas devido à sua pele clara podem passar como brancas. O romance Tar Baby tem como personagens principais Son e Jadine, ambos com ascendência negra, mas que vivenciam mundos totalmente diferentes. Son é um homem pobre, sem estudo, que demonstra orgulho de ser negro e valoriza suas origens. Certo dia, ele foge da Florida, pois estava sendo acusado de matar sua própria esposa e aparece na propriedade dos Streets, situada em uma ilha do Caribe. Depois de certo tempo, Son acaba sendo acolhido pelos Streets, uma família branca cujos empregados domésticos Sydney e Ondine são tios de Jadine, criada por eles desde a infância. Através do incentivo financeiro fornecido pela família Street, Jadine se tornou modelo, além de ter se formado em História da Arte pela conceituada Sorbonne. 1 Mestre em Teoria da Literatura, CEFET/RJ, PUC-Rio. E-mail: lusincera@yahoo.com.br

Totalmente assimilada à cultura e valores europeus, incluindo o uso de uma linguagem padrão, Jadine sente aversão à presença de Son na casa dos Streets, colocando-o em um patamar de inferioridade, destacando, por exemplo, seus cabelos agressivos, selvagens, viçosos, que deveriam estar presos em segurança para não atacarem. Cabelos de prisioneiro 2. Além disso, Jadine está certa de que Son tinha a intenção de violentá-la, como pode ser observado no seguinte diálogo entre os dois: Violentar? Quem disse isso? Por que será que todas as menininhas brancas vivem pensando que vão ser violentadas por alguém? Branca? ela chegou a engasgar de ódio. Eu não sou...você sabe muito bem que eu não sou branca![...] Você não pode coisa nenhuma, seu miserável macaco descalço 3. Essa situação demonstra o quanto Jadine vivencia um conflito de identidade: ao mesmo tempo que reconhece não ser branca, acaba rejeitando sua herança racial. Tal distanciamento em relação às suas origens é reforçado quando Jadine se recorda de um episódio ocorrido em Paris. Após ser escolhida para ser capa da revista Elle, ela vai ao supermercado para comprar produtos para uma festa de comemoração. Nesse local, uma mulher negra alta, com um vestido amarelo, chama a atenção dos demais clientes, incluindo Jadine. No entanto, esta é surpreendida quando após sair do recinto a mulher se voltou, encarando Jadine fixamente do outro lado da vidraça [...] e cuspiu em sinal de desprezo para o chão, um insulto que feriu seu coração como uma flecha de saliva 4. Essa atitude mexeu com a cabeça de Jadine, que se sentiu sozinha e inautêntica: ela começou a ponderar sobre o fato de seu namorado, Ryk, ser um branco europeu. Seguem-se uma série de questionamentos expostos pelo narrador: Será que [Ryk] queria realmente casar-se com ela, ou apenas com uma garota negra? Se ele não estivesse encantado por mim, mas sim pelo mito da mulher negra, o que aconteceria quando descobrisse que eu detesto usar argolões exóticos, que não preciso 2 MORRISON, Toni. Pérola negra. Trad. Augusto Meyer Filho. São Paulo: Best Seller, 1981. p. 140. 3 MORRISON, Toni. Pérola negra. Trad. Augusto Meyer Filho. São Paulo: Best Seller, 1981. p. 149. 4 MORRISON, Toni. Pérola negra. Trad. Augusto Meyer Filho. São Paulo: Best Seller, 1981. p. 57.

esticar os cabelos [...]? 5. Mais uma vez fica clara a não-identificação de Jadine com uma imagem de negritude. Na verdade, com relação à sua identidade, ela tem o seguinte desejo: sair de dentro de minha pele e ser somente uma pessoa, eu mesma, não uma americana, uma negra, mas apenas eu, um ser humano 6. Retornando à ilha caribenha, com o passar do tempo Son se apaixona por Jadine e é alertado por Gideon, empregado da casa: As mestiças nunca conseguem ficar com sua cor natural. Precisam escolher entre uma raça e outra e a maioria não escolhe a negra... 7. Diante disso, Son resolve resgatar Jadine do mundo branco ao levá-la para a sua terra natal, Eloe, Florida. No entanto, sua tentativa não tem sucesso, uma vez que Jadine, embora tenha aceitado viajar com ele, não consegue transitar nesse universo tipicamente negro. Ao chegarem ao vilarejo, Son encontra um velho colega dos tempos de Exército e os dois começam a conversar eles falam o dialeto African American English. Jadine não entende essa linguagem, que para ela remete à falta de cultura e à pobreza, mas de qualquer forma, tenta interagir com outras mulheres: Jadine sorria, tomava copos de água e tentava falar de maneira simples 8. Apesar de todo o seu esforço para se adequar àquela comunidade, Jadine não se identifica com ela e começa a se desentender com Son. Ao propor que ele cresça intelectualmente através do estudo, é surpreendida pelo seguinte comentário sobra sua educação eurocêntrica: Tudo o que você aprendeu naqueles colégios e que não me incluía foi uma merda. O que eles lhe ensinaram a meu respeito? [...] não lhe ensinaram nada, porque enquanto não me conheceu você não sabia nada de você mesma 9. Por fim, Jadine conclui que Eloe não era o seu lugar: Lá não havia vida. Talvez um passado, mas definitivamente não um futuro, portanto não a interessava 10. 5 MORRISON, Toni. Pérola negra. Trad. Augusto Meyer Filho. São Paulo: Best Seller, 1981. p. 52. 6 MORRISON, Toni. Pérola negra. Trad. Augusto Meyer Filho. São Paulo: Best Seller, 1981. p. 52. 7 MORRISON, Toni. Pérola negra. Trad. Augusto Meyer Filho. São Paulo: Best Seller, 1981. p. 189 8 MORRISON, Toni. Pérola negra. Trad. Augusto Meyer Filho. São Paulo: Best Seller, 1981. p. 304. 9 MORRISON, Toni. Pérola negra. Trad. Augusto Meyer Filho. São Paulo: Best Seller, 1981. p. 319. 10 MORRISON, Toni. Pérola negra. Trad. Augusto Meyer Filho. São Paulo: Best Seller, 1981. p. 313.

Diante dessa constatação, ela decide ir para a casa dos Streets no Caribe. Chegando lá, ela conversa com sua tia Ondine. Esta lhe diz que Jadine precisa aprender a ser filha: uma filha é uma mulher que se incomoda em saber de onde veio e que cuida daqueles que cuidaram dela 11. Ondine gostaria que Jadine fosse uma mulher de verdade que casasse, cuidasse do seu marido e tivesse filhos. Jadine, por outro lado, esclarece que há outras maneiras de ser mulher, Nanadine [...] A sua maneira, suponho, não é a mesma que a minha. Não quero ser... como você 12. Nesse sentido, Jadine defende a ideia que retornar às suas origens significa voltar a uma condição submissa. Por essa razão, ela finalmente decide voltar para a Europa, optando por uma identidade que não abre espaço para uma conjectura de hibridismo. Focalizando o romance Caucasia, este retrata a vida de Birdie Lee, filha de um intelectual negro, Deck Lee, e de uma mulher branca natural de Boston, Sandy Lee, nos anos de 1970 e 1980. Narradora e protagonista do romance, Birdie é descrita como uma menina de pele clara e cabelos lisos enquanto sua irmã mais velha Cole tem é mulata com cabelos cacheados. Tal particularidade se revela como um importante fator para o deslocamento de Birdie em diferentes espaços acompanhado de uma mudança na linguagem: são alternados momentos em que a personagem fala o inglês padrão, o African American English e o Elemeno língua inventada por ela e a irmã, que só as duas conseguem entender. No início de Caucasia, Birdie e Cole são tão próximas que falam Elemeno. Cole explica que Elemeno é mais do que uma língua. Trata-se também de um povo: Os Elemenos, ela dizia, poderiam mudar não só de negros para broncos, mas de marrons para amarelos para roxos para verde e voltar à cor natural. Ela disse que eles eram um povo que se movimentava, mudando constantemente sua forma, cor, padrão 13. Nesse momento, Birdie está com oito anos e gostaria de se parecer com Cole, três anos mais velha. Mas 11 MORRISON, Toni. Pérola negra. Trad. Augusto Meyer Filho. São Paulo: Best Seller, 1981. p. 336. 12 MORRISON, Toni. Pérola negra. Trad. Augusto Meyer Filho. São Paulo: Best Seller, 1981. p. 337. 13 SENNA, Danzy. Caucasia. New York: Penguin Group, 1998. p. 7.

gradualmente ela se torna ciente de que ela e sua irmã não se parecem: sua mãe, por exemplo, enfatiza que apesar de Birdie ser descendente de um negro, ela aparenta ser uma pequena siciliana 14. Sua avó materna reforça essa ideia ao afirmar que além de italiana ela poderia ser uma francesa. Depois de inúmeras discussões entre Deck e Sandy, eles decidem matricular as filhas em uma escola negra, que seguia os princípios do movimento Black Power. Nesse ambiente, Birdie foi vítima de estranhamento por parte dos outros alunos. É o que se percebe em passagens como: Quem é essa? ; Ela é porto-riquenha ou algo do tipo? ; Eu pensei que essa deveria ser uma escola negra, O que você tá fazendo nessa escola? Você é branca? 15. Diante disso, Birdie resolve mudar alguns aspectos em sua linguagem e na forma de vestir para poder se adequar ao contexto de sua nova escola. Cole percebe que ela e Birdie falam o inglês padrão, como se fossem meninas brancas, e ensina Birdie a falar de acordo com a pronúncia do African American English: Não diga, I m going to the store. Diga, I m goin to de sto. Entendeu? E não diga, Tell the truth. Em vez disso, diga, Tell de troof. Okay? 16. Além disso, Birdie faz questão de apresentar um novo visual: Eu comecei a usar meu cabelo com uma trança apertada para mascarar sua textura. Furei as orelhas e convenci minha mãe a comprar um par de argolas douradas como as outras garotas da escola usavam 17. Sua mudança surpreende os colegas, que passam a vê-la de outra forma, conferindo-lhe abertura para fazer parte do grupo. Birdie passou a se sentir confortável nesse cenário, conforme se observa no seguinte comentário: Eu realmente me sentia diferente mais consciente do meu corpo como brinquedo e das maneiras como eu poderia usá-lo para desaparecer no mundo em minha volta 18. Como os Elemenos, Birdie parece brincar com seus diferentes eus, jogo que é reforçado por ela própria ou por pessoas de seu convívio. Esse jogo se torna mais intenso quando sua própria mãe lhe impõe uma nova identidade. 14 SENNA, Danzy. Caucasia. New York: Penguin Group, 1998. p. 27. 15 SENNA, Danzy. Caucasia. New York: Penguin Group, 1998. p. 43. 16 SENNA, Danzy. Caucasia. New York: Penguin Group, 1998. p. 53. 17 SENNA, Danzy. Caucasia. New York: Penguin Group, 1998. p. 63. 18 SENNA, Danzy. Caucasia. New York: Penguin Group, 1998. p. 65.

As discussões entre Deck e Sandy os conduziram ao divórcio e, consequentemente, ao distanciamento de Birdie com relação ao pai e à irmã. Isso porque Deck havia tomado a decisão de ir para o Brasil levando Carmen, sua namorada, e Cole. Ainda abalada pela notícia, Birdie foi acordada de madrugada por Sandy com uma nova cor de cabelo dizendo que as duas teriam que fugir porque o FBI estava à procura de uma mãe com sua filha negra. No entanto, de acordo com Birdie, o fato de que eu poderia passar, explicou ela [Sandy], com meu cabelo liso, pele clara, minha semelhança fenotípica geral com a raça caucasóide os desviaria da nossa trilha 19. A mãe sugere o apagamento de suas histórias de vida, de suas ascendências, com o objetivo de ceder lugar a memórias inventadas Birdie, portanto, passou a ser Jesse Goldman, filha de um professor judeu chamado David Goldman e de uma mulher branca com o nome de Sheila. Tal transformação na trajetória de Birdie revela-se como mais uma etapa na busca pelo auto-descobrimento. Após quatro anos movimentando-se entre diversos hotéis, Sandy e Birdie encontraram um lugar em que pudessem se estabelecer. Tratava-se de uma comunidade de mulheres, consideradas como fugitivas de causas nobres, localizada em Aurora, Nova York. Em tal ambiente, as pessoas tinham em comum uma constante reinvenção, uma vez que suas verdadeiras identidades eram inexoravelmente suprimidas por outros eus, os quais tinham o poder de escondê-las e, dessa forma, livrá-las de uma possível perseguição. Desse jogo também participavam Sandy e Birdie, com a idade de doze anos. As duas não ficam muito tempo em Aurora. Motivadas pelo objetivo de se estabelecerem em um local fixo, elas vão para New Hampshire. Elas acabam alugando uma casa dentro da propriedade do casal Libby e Walter Marsh. Para Birdie, acostumada a se mover de um lugar para outro, ter estabilidade não era uma condição natural. Vendo-se obrigada a fazer parte daquele novo contexto, Birdie faz amizade com o filho do casal Nicolas que, como ela, sentia-se um estrangeiro naquela cidade pequena, formada apenas por brancos, uma vez que havia permanecido durante 19 SENNA, Danzy. Caucasia. New York: Penguin Group, 1998. p. 128.

longo tempo em um internato. Nicholas a chama de Pocahontas, já que ao sol ela se parecia com uma índia. O tempo foi passando e as mudanças ocorrendo: Sandy encontra um companheiro, Jim, do qual Birdie desconfia por achar que se tratava de um espião. Birdie, por sua vez, começa a evidenciar alterações acerca de sua identidade: o nome Jesse Goldman não mais soa estranho para ela, o Elemeno, que serve de conexão com sua irmã, não está mais tão presente em sua lembrança, e ela não apresenta qualquer reação diante das piadas racistas contadas por Nicholas. Ela passar a frequentar uma escola e, após extenso período tendo que se camuflar, chega a esta conclusão: Eu anseio fazer parte dele. O mundo visível 20. Para tanto, com o objetivo de ser aceita pelas colegas na escola, Birdie dizia gostar das mesmas bandas de rock que elas, mantendo-se, todavia, consciente de suas invenções: Eu constantemente lembrava a mim mesma que eu estava fingindo, que elas não conheciam o meu verdadeiro eu, que isso tudo fazia parte de um jogo 21. Com isso, Bridie mostra que a identidade não é biológica ou essencialista, é uma escolha que o sujeito faz. Nesse grupo, não havia espaço para uma garota chamada Samantha, que era visivelmente mulata. Porém, Birdie sempre a observava, por se identificar com ela. Na ocasião de uma festa, Birdie resolve lhe fazer uma pergunta: De que cor você é?. Samantha, por sua vez, responde a ela com prontidão: Sou negra. Como você 22. Ao se defrontar com a declaração de Samantha, Birdie pondera sobre seu destino e toma uma importante decisão. O relacionamento entre Birdie e Sandy estava cada vez mais conflituoso: a amizade que ambas nutriam ficou abalada após Jim ter se mudado para a casa delas e Birdie ter descoberto, em meio a objetos da mãe, um cartão postal de Dot, irmã de Deck. Esse episódio foi determinante na fuga de Birdie, em 1982, de New Hampshire, em direção à sua cidade natal, Bos- 20 SENNA, Danzy. Caucasia. New York: Penguin Group, 1998. p. 220. 21 SENNA, Danzy. Caucasia. New York: Penguin Group, 1998. p.222. 22 SENNA, Danzy. Caucasia. New York: Penguin Group, 1998. p. 286.

ton, com o intuito de encontrar sua tia e, a partir dela, obter informações sobre o pai e a irmã. Depois de muita procura, Birdie chega à casa de Dot e é acolhida por ela. Nesse novo contexto, a protagonista reflete sobre sua identidade: Era estranho demais pensar que Jesse Goldman tinha ido embora, que eu a tinha apagado em apenas uma noite 23. Em busca de suas origens, de sua verdadeira história, Birdie, munida do endereço do pai, que havia conseguido através de um amigo dele de infância, segue para Oakland, Califórnia. Ao se deparar com a casa almejada, ela adentra o recinto e, minutos depois, é surpreendida por Deck, o qual revela estar surpreso e, ao mesmo tempo, envergonhado por não ter dado notícias para a filha durante todos aqueles anos. Ao perguntar sobre Cole, Birdie é informada de que ela estava morando em outro bairro. Ela imediatamente vai ao seu encontro. Ao rever a irmã, elas conversam em Elemeno. Essa linguagem conduz Birdie a uma reflexão sobre sua vida e sua constante busca por uma identidade: Eu falei meus pensamentos em voz alta. Eles dizem que você não tem que escolher. Mas a questão é: você escolhe. Porque há conseqüências se você não fizer isso 24. Cole complementa as palavras de Birdie com a seguinte afirmação: Sim, e há conseqüências se você fizer isso 25. Finalmente, Birdie ao se deparar com uma menina e se identificar com ela conclui: ela é negra como eu, uma garota mestiça 26. Conclusão Jadine Childs, em Tar Baby, e Birdie Lee, em Caucasia apresentam em comum o fato de terem ascendência negra, mas evidenciarem um tom claro de pele. Isso faz com que elas possam, dependendo do contexto em que estão inseridas, passar como brancas. Trata-se de uma escolha, uma 23 SENNA, Danzy. Caucasia. New York: Penguin Group, 1998. p. 306. 24 SENNA, Danzy. Caucasia. New York: Penguin Group, 1998. p. 408. 25 SENNA, Danzy. Caucasia. New York: Penguin Group, 1998. p. 408. 26 SENNA, Danzy. Caucasia. New York: Penguin Group, 1998. p. 413.

vez que, segundo Hall, a identidade é vista como uma produção que nunca está completa, sempre em processo, e sempre constituída dentro, não fora da representação 27 (HALL, 1990, p. 234). Dessa forma, enquanto Jadine optou por sua assimilação aos valores hegemônicos brancos, deixando de lado suas raízes negras em diversos aspectos, incluindo a linguagem, Birdie se permitiu transitar entre diferentes ambientes, mesclando o inglês padrão com o African American English e o Elemeno. Com essa atitude, Birdie demonstra seu poder em traduzir o hibridismo característico de sua identidade. 27 HALL, Stuart. Cultural identity and diaspora. In: RUTHERFORD, I. (org.). Identity. Londres: Lawrence and Wishart, 1990. p. 234.

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