A Matricialidade Sociofamiliar do SUAS: diálogo entre possibilidades e limites



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Transcrição:

A Matricialidade Sociofamiliar do SUAS: diálogo entre possibilidades e limites Luciana Marques 1 Resumo: Este artigo objetiva refletir sobre a matricialidade sociofamiliar que é uma diretriz do Sistema Único de Assistência Social. Esta diretriz percebe e orienta a família na centralidade da oferta dos serviços, programas, projetos e benefícios ofertados pela política de assistência social. Desenvolve-se uma abordagem teórica sobre o significado do conceito de matricialidade sociofamiliar identificando os avanços decorrentes e os limites apresentados, bem como o risco de práticas conservadoras e ambíguas, que levam a responsabilização das famílias muito mais do que a garantia de direitos. Por fim, apresentam-se apontamentos concernentes ao risco da manutenção do conservadorismo na prática profissional. Palavras-chave: assistência social, família, políticas públicas. 1 Introdução A centralidade da família tem sido objeto de muitos debates no que diz respeito às políticas públicas, como se percebe no momento, em especial a assistência social, que traz à tona a discussão acerca do atendimento integral à família, almejando considerar a totalidade das relações e dinâmicas que perpassam a vida familiar. Este debate, no entanto, não está concluído. O presente artigo insere-se neste debate. Ele é fruto das reflexões do cotidiano profissional, com relação à família e a matricialidade sociofamiliar, no âmbito da política de assistência social e das buscas teórico metodológicas realizadas no intuito da produção científica, na interlocução da política social e família, resultado do processo de aprendizado no curso de pós-graduação, nível de mestrado em serviço social. Neste texto, abordar-se-á a política de assistência social, especificamente a sua demonstração de atenção à família, na lógica do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que estabeleceu a matricialidade sociofamiliar como um dos seus eixos estruturantes. Ao mesmo tempo em que apresenta a assistência enquanto política pública de direito social, também elucida as contraditoriedades presentes neste processo. 1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, pela Universidade Federal de Santa Catarina, integrante do Núcleo de Pesquisa Interdisciplinar Sociedade, Família e Política Social. 1

Ao referenciar a matricialidade sociofamiliar do SUAS o presente artigo realiza um diálogo que gira em torno dos avanços e dos desafios e limites desta opção política em evidenciar a família na centralidade da oferta das ações. 2 A assistência social enquanto política pública A assistência social ganha estatuto de política pública a partir de 1988, quando passa a integrar a seguridade social, juntamente com a previdência social e a saúde. A partir deste momento a assistência social compõe o sistema brasileiro de proteção social, de responsabilidade do Estado, ofertado como direito social não contributivo, para aqueles que dela necessitarem. Essa nova perspectiva para a assistência social precisa ser contextualizada em sua historicidade marcada por ações benevolentes e caridosas de ajuda ao próximo, ligada à filantropia, que se vinculou, por muito tempo, a práticas religiosas, ações paternalistas e interesses políticos, sendo até mesmo confundida com estas ações. Esta inclusão da assistência social no rol de políticas públicas de proteção social é marcada por tensões, que orientaram a trajetória histórica na passagem da prática caridosa para o seu reconhecimento como política pública, de direito do cidadão e de dever do Estado. Isto é garantido na Constituição Federal, artigo 203, que rege: A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social (BRASIL, 1988, p. 34). Para Sposati (2008, p.42) [...] a inclusão da assistência social na Constituição repudia o conceito de população beneficiária como marginal ou carente. O cidadão passa, desde então, a ser entendido, pela força da lei, como portador de direitos e não como merecedor de favores e benesses, rompendo com a tradição de caridade e assistencialismo. Essa pretensão em construir uma política pública de proteção social pela perspectiva do direito social, indicada pelo Constituição demonstra as possibilidades de ampliação da cidadania e da proteção social brasileira. A assistência social como política pública de direitos de cidadania e dever do Estado, no campo da dívida social brasileira com os excluídos, portanto, da inclusão dos invisíveis dentre os brasileiros, implica possibilidade de ampliar o alcance da cidadania e da proteção social, para uma lógica contrária à contributiva, e à cidadania regulada, pela inclusão pelo critério de cidadania, pelo direito à vida, 2

à proteção social, independente de contribuição, embora mantenha o critério de necessidade (TEIXEIRA, 2009, P. 256). A inclusão da assistência social como política pública provocou a elaboração de textos legais e institucionais, regulamentando estas mudanças, como é o caso da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), de 1993, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) de 2004, a Norma Operacional Básica do SUAS (NOB SUAS) de 2005 e tantas outras normas técnicas e orientações prestadas, no intuito de garantir legitimidade à assistência enquanto política pública, dever do Estado. Esse marco de conquistas acontece não sem inúmeras contradições e resistências. Nesse contexto, conforme definiu Potyara Pereira na 1ª Conferência Nacional de Assistência Social, ocorre contradição em implantar uma política pública num reinado de não política (LOPES, 2006, p. 77). Conforme enfatiza Lopes (2006, p. 77) o pressuposto legal não iria significar, como não significou, absolutamente, a superação da concepção conservadora e uso histórico da assistência social no campo do assistencialismo, clientelismo e benemerência eleitoreira. Segundo Mota (2009, p. 186) mesmo com a Constituição Federal de 1988 e a aprovação da LOAS, que são consideradas divisores de águas entre o feitiço da ajuda e a criação de uma política pública, constitutiva de direitos, estas práticas não foram totalmente superadas. E a implantação da LOAS, para Mota (2009, p. 186) revelou uma acentuada tendência à focalização, seletividade e fragmentação, comprometendo o princípio da universalidade, continuidade e sistematicidade das ações. Apesar das limitações e dos imensos desafios, a assistência social encontra destaque em alguns aspectos, principalmente no campo político jurídico, assegurando a partir da legislação, conquistas como a aprovação da PNAS, a implantação do SUAS, a definição de equipamentos públicos de atendimento, que são os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS). Foram avanços importantes e de acordo com Teixeira (2009, p. 257) os avanços jurídicos políticos são incontestáveis, e as possibilidades de práticas profissionais inovadoras, fundamentadas na lei, são grandes. Porém permanecem os riscos do conservadorismo, dados os aspectos contraditórios na legislação e no próprio campo conceitual utilizado, ou não utilizado, como embasamento destas leis. 3

3 A matricialidade sociofamiliar Entre os avanços na Assistência Social está a matricialidade sociofamiliar, compreendida a partir das diretrizes estabelecidas pela PNAS para o território nacional, com a opção pela centralidade na família para concepção e implementação dos benefícios, serviços, programas e projetos (Brasil, 2004, p.33). Como demonstração direta da opção da PNAS em colocar a família no foco do atendimento socioassistencial, tem-se a adoção do princípio da matricialidade sociofamiliar, entre os que regem o SUAS. Segundo a PNAS (Brasil, 2004, p.40) a matricialidade sociofamiliar se refere à centralidade da família como núcleo social fundamental para a efetividade de todas as ações e serviços da política de assistência social. O princípio da matricialidade sociofamiliar constitui um avanço na assistência social, que anteriormente à aprovação da PNAS e da instauração do SUAS se detinha, mais diretamente, ao atendimento dos indivíduos, de forma isolada da família. Neste sentido a matricialidade sociofamiliar surge como antidoto à fragmentação dos atendimentos, como sujeito à proteção de uma rede de serviços de suporte à família (Teixeira, 2010, p. 05). Atualmente, considera-se a família, com seus membros, inclusos em um contexto social e econômico, que reflete diretamente na forma de organização e dinâmicas familiares. Esse avanço é perceptível, Na matricialidade sociofamiliar, em que se dá primazia à atenção às famílias e seus membros, a partir do território de vivência, com prioridade àquelas mais vulnerabilizadas, uma estratégia efetiva contra a setorialização, segmentação e fragmentação dos atendimentos, levando em consideração a família em sua totalidade, como unidade de intervenção; além do caráter preventivo da proteção social, de modo a fortalecer os laços e vínculos sociais de pertencimento entre seus membros, de modo a romper com o caráter de atenção emergencial e pós-esgotamento das capacidades protetivas da família. (TEIXEIRA, 2009, p. 257) Esta centralidade dada à família na política de assistência social é justificada pelo reconhecimento da responsabilidade estatal de proteção social às famílias, apreendida como núcleo social básico de acolhida, convívio, autonomia, sustentabilidade e protagonismo social e espaço privilegiado e insubstituível de proteção e socialização primárias dos indivíduos (MDS, 2009, p.12). 4

Ao eleger a matricialidade sócio familiar como pilar do SUAS, a Política Nacional de Assistência Social enfoca a família em seu contexto sociocultural e em sua integralidade. Neste sentido, para realizar o trabalho social com as famílias é necessário focar todos os seus membros e suas demandas, reconhecer suas próprias dinâmicas e as repercussões da realidade social, econômica, cultural vivenciadas por elas (SOUZA, 2010, p.02). A abordagem que eleva a família a encontrar espaço central na política de assistência social também se apresenta fragilizada e contraditória. O arcabouço conceitual utilizado para fundamentar a matricialidade sociofamiliar não elimina a contradição e o conservadorismo. Neste aspecto cabe um diálogo, observando a dicotomia que existe entre os avanços e os retrocessos da política de assistência social em relegar à família a centralidade na política pública. Existem riscos e transgressões nesta prática, como os já identificados, presentes na crítica literária de autores da área, como se percebe através do: a) Ocultamento das contradições da sociedade de classe, sem o devido reconhecimento dos determinantes sócio-históricos e das expressões de desigualdades nas demandas para a assistência social, e ainda o vício analítico e prático-operativo que consiste em entender a atenção à família como uma via de superação das expressões da questão social (...); b) Prevalência do metodologismo e adoção acrítica de referenciais conceituais para o atendimento; c) Existência de práticas que centralizam as demandas nas famílias com trabalho psicossocial de alteração de caráter, de comportamentos considerados patológicos, de conflitos internos da família, culpando-a pelas situações de vulnerabilidade e riscos, gerando sentimento de inadequação; d) Regressões conservadoras no trato com as famílias que ampliam ainda mais as pressões sobre as inúmeras responsabilidades que devem assumir, especialmente no caso das famílias pobres. (SILVEIRA, 2007 apud TEIXEIRA, 2009, p. 258). Da mesma forma, é salutar a superação que a PNAS apresenta com relação a concepção de família, desvinculando-a de um modelo padrão, idealizado na sociedade diante de um contexto histórico burguês. Nesta perspectiva de superação concebe a família em seus diversos arranjos, variações, dinâmicas e modelos distintos. No texto da PNAS se encontra a referência definindo que estamos diante de uma família, quando encontramos um conjunto de pessoas que se acham unidas por laços consanguíneos, afetivos e, ou de solidariedade (Brasil, 2004, p. 28). Esta definição amplia a imagem de família projetada pelo modelo padrão, reconhecendo que não existe modelo 5

idealizado de família, mas sim família resultante de uma pluralidade de arranjos e rearranjos estabelecidos pelos integrantes dessa família (Teixeira, 2009, p. 260). Esta concepção ampliada sobre os arranjos familiares é legitima na medida em que encontra respaldo nas expressões da realidade. Da mesma forma que a compreensão e o empenho em atender a família em sua unidade é importante e diga-se também, necessário, tendo em vista o indivíduo na sua integralidade. Há, porém, a orientação na política de assistência de forma ambígua, pois ao mesmo tempo em que considera os processos sociais, econômicos, políticos e culturais, que fragilizam as relações pessoais e familiares, também compreende e orienta que a família constitui espaço privilegiado e insubstituível de proteção social e socialização primárias, provedora de cuidados aos seus membros, mas que precisa também ser cuidada e protegida (Brasil, 2004, p. 41). Portanto, há nesta compreensão um reforço das funções familiares, ao passo que, considera a família independentemente dos formatos, modelos e feições que tem assumido com as transformações econômicas, sociais e culturais contemporâneas (Souza, 2010, p.01), a responsável pela proteção social primária dos seus membros. De acordo com Teixeira (2009, p. 259) a contradição entre cuidar e proteger a família ou fornecer meio para que ela cuide de seus membros, está posta. Com base nestas indicações desenvolve-se o diálogo sobre as formas e processos assumidos pelos SUAS para organizar a matricialidade sociofamiliar no âmbito dos serviços, benefícios, programas e projetos elencando elementos questionadores desse percurso. A centralidade da família na política de assistência social não pode significar a responsabilização da família, mas sim uma superação da focalização das ações históricas. Esta responsabilização, porém, é claramente percebida nos serviços, programas e projetos oferecidos pela política de assistência social. Fornecem serviços para reforçar as tradicionais funções da família, de proteção social, aumentando a dependência dos indivíduos da família e exigindo-se delas mais responsabilidades e serviços, como condição para poder ter acesso a algum benefício ou serviço público (TEIXEIRA, 2009, p.259). Isso demonstra que a matricialidade sociofamiliar aponta para um horizonte de responsabilização das famílias, desvelando seu verdadeiro significado, de ampliar e contar mediante estratégias de racionalização e orientação com a proteção da família, reforçando a tendência familista da política social brasileira (Teixeira, 2010, p. 10). 6

Esta prática não é exclusividade da política de assistência social. É possível identificar expressões semelhantes em diversos momentos do processo histórico do País na oferta das políticas sociais. Para Pereira (2010), o Estado brasileiro historicamente se apropriou do voluntarismo familiar para responsabilizá-los pela proteção social de seus membros. Fato este que recebe diversas nomenclaturas e contextualizações teóricas no arcabouço conceitual. Para Pereira (2010, p.25) esta ação corresponde a formação de um modelo misto ou plural de proteção social, denominado pluralismo de bem-estar, o qual, paulatinamente, foi colocando a família na berlinda, ao tempo que foi exigindo a participação direta da família no cuidado e atendimento de seus membros. Conforme Pereira, percebe-se cada vez mais a tentativa de responsabilização da família frente as problemáticas sociais, através da redescoberta da família como importante substituto privado do Estado na provisão de bens e serviços sociais básicos (PEREIRA, 2010, p. 25). É neste campo que se delimitam os principais problemas e prejuízos inerentes a opção de considerar a família como centro das políticas públicas. Muitas vezes, olha-se para a família de forma isolada. Conforme Pereira (2010, p. 25) procede-se a uma análise das funções sociais da família de forma isolada o que obscurece o conhecimento conjunto das condições contemporâneas de funcionamento da sociedade e do Estado. O Estado tem deixado responsabilidades que são de natureza pública para o universo privado, a família. A partir da trajetória de centralização da família, conforme já descrito acima, observa-se que ao tempo em que o Estado entende a família como a principal e mais importante esfera social, por vezes também a culpabiliza diante das situações e problemáticas sociais decorrentes. Isso se demonstra principalmente pelo fato de que a família é constantemente cobrada a realizar as mudanças no universo privado, que diz respeito diretamente ao cotidiano, sem considerar o nível da sociedade macroeconômica na qual as famílias estão inseridas. Considerações finais A política de assistência social recebeu o seu espaço nos debates teóricos e políticos pela sua relevância e por constar tardiamente no rol das políticas públicas de 7

responsabilidade do Estado. Na atualidade, embasada pelas orientações legais disponibilizadas pela PNAS e seguindo a perspectiva do SUAS, tem-se o princípio da matricialidade sociofamiliar acompanhando a oferta dos serviços, programas, projetos e benefícios relacionados a política pública de assistência social. Nesta perspectiva, seguiu-se uma linha de percepção observando o significado do conceito matricialidade sociofamiliar para a política de assistência, bem como aos desdobramentos que isto tem apresentado para a garantia da oferta dos serviços à população. É preciso considerar que existem avanços na forma da condução da política de assistência, com a adoção do princípio da matricialidade sociofamiliar pela ruptura de um modelo de assistência voltado para os segmentos e da fragmentação no atendimento social. No entanto, estes avanços não representam a garantia de uma política social coerente, pois também se apresentam possibilidades de retrocessos e conservadorismos, quando não se rompe com a constante responsabilização das famílias. Permanecem também contradições no arcabouço conceitual da matricialidade sociofamiliar, o que também oferece um risco ao conservadorismo através, principalmente, de práticas profissionais que assumem um caráter relativo a este conceito. Destarte, esta perspectiva, apesar de não fazer parte do escopo deste trabalho, permanece como um questionamento inerente às práticas profissionais. Por isso, existe a preocupação sobre a compreensão teórica do referencial família, que precisa ser compreendida em sua dimensão crítica, para além da compreensão dos valores e do campo moral, presente nos técnicos responsáveis pela política pública. Quanto ao arcabouço conceitual referente à família presente na PNAS e no SUAS é perceptível a modernização conceitual com relação à composição e estrutura das famílias, porém, permanece ainda o conservadorismo nas concepções profissionais voltadas as às funções da família. Tendo por referência o desenvolvimento desta reflexão, torna-se imprescindível ressaltar que não foi pretensão deste trabalho esgotar o tema. Existem questões para serem aprofundadas e fundamentadas. Um dos exemplos seria o caso de identificar no ordenamento legal do SUAS, nos diversos materiais de orientação e formação, se existe alguma relação entre a matricialidade sociofamiliar e a indicação da família como primeira fonte de proteção social. 8

Da mesma forma, faz-se necessária a discussão no campo profissional sobre a apropriação do conceito de matricialidade sociofamiliar e das formas de atuação profissional diante deste princípio, observando os processos metodológicos e encaminhamentos políticos executados. Nesta perspectiva, este debate precisa perpassar pelos espaços de exercício profissional das diversas categorias envolvidas na oferta de política de assistência social e de forma especial, na atuação do assistente social, exigindo deste um olhar crítico e questionador, quanto às ações do Estado, com caráter político e ideológico. Referências bibliográficas LOPES, Márcia Helena Carvalho. O tempo do SUAS. Serviço Social e Sociedade. São Paulo, n. 87, p. 76-95, trimestral. 2006. MOTA, Ana Elizabete (org.). O mito da assistência social: ensaios sobre Estado, Política e Sociedade. 3. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2009. PEREIRA, PotyaraAmazoneida Pereira. Mudanças estruturais, política social e papel da família: crítica ao pluralismo de bem estar. Política Social, Família e Juventude: uma questão de direitos. 6. Ed. São Paulo: Cortez Editora, 2010. SPOSATI, Aldaíza. A menina LOAS: um processo de construção da Assistência Social. 4. Ed. São Paulo: Cortez Editora, 2008. SOUZA, Fátima de Oliveira. A centralidade da família no Sistema Único de Assistência Social e questões de gênero. Fazendo gênero, 9. ed. UFSC, Florianópolis/Santa Catarina, 2010. TEIXEIRA, Maria Solange. Família na Política de Assistência Social: avanços e retrocessos com a matricialidade sociofamiliar. Revista Política Públicas, São Luiz, 2009, v.13, n.2, p.255-264, jul./dez. 2009.. Trabalho social com famílias na Política de Assistência Social: elementos para sua reconstrução em bases críticas. Serviço Social em revista, Londrina, v.13, n.1, p. 04-23, jul./dez/2010. BRASIL. Constituição Federal. 1988. Disponível em: http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/con1988_05.10.1988/con1988.p df Acesso em: 26/09/2013.. Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8742.htm Acesso em: 26/09/2013 9

. Política Nacional de Assistência Social. Brasília: 2004. Disponível em file:///c:/users/user/downloads/politica%20nacional%20de%20assistencia%20social %202013%20PNAS%202004%20e%20Norma%20Operacional%20Basica%20de%20S ervico%20social%202013%20nobsuas%20(1).pdf Acesso em: 26/03/2014 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Orientações Técnicas: Centro de Referência de Assistência Social CRAS.1. ed. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2009. 10