O léxico de Drummond na caracterização do amor



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Transcrição:

O léxico de Drummond na caracterização do amor Elis de Almeida Cardoso 1 1 Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo (USP) Caixa Postal 2530 São Paulo SP Brasil elisdacar@yahoo.com Abstract. This work aims to analyze which are the stylistic effects acquired with lexical choices and the creation of new words to characterize love in Carlos Drummond de Andrade`s poetry. From the point of view of Lexical Stylistics we intend to examine the expressiveness attained with lexical unities related to the universe of love. A very usual theme in his poetry, love is sometimes considered as a positive sentiment without which the poet is not even able to love, and sometimes as a negative sentiment, capable of destroying. In analyzing three of his poems, we intend to observe how the lexical unities used by him provide the expressive necessities and intention, showing his vision of the world. Keywords. Lexical Stylistics; expressiveness; Drummond; love. Resumo. Este trabalho tem o objetivo de analisar, na poesia de Carlos Drummond de Andrade, quais os efeitos estilísticos obtidos com as escolhas lexicais e a criação de novas lexias para caracterizar o amor. Do ponto de vista da Estilística Léxica, que se preocupa com os aspectos expressivos ligados aos componentes semânticos e gramaticais das palavras, pretende-se verificar a expressividade obtida com as unidades lexicais relacionadas ao universo do amor. Tema recorrente na poesia de Drummond, o amor é visto às vezes como um sentimento positivo, sem o qual o poeta sequer consegue viver; outras vezes, como um sentimento negativo, amargo, capaz de destruir. Analisando-se três poemas, pretende-se observar de que maneira as unidades lexicais utilizadas atendem às necessidades expressivas e à intenção do enunciador, mostrando sua visão de mundo. Palavras-chave. Estilística léxica; expressividade; Drummond; amor. 1. Introdução Um dos objetivos da Estilística é indicar como se processa a escolha feita pelo enunciador, dentre os elementos lingüísticos disponíveis, verificando de que maneira tal escolha determina efeitos estéticos e de expressividade e acenando para uma possível intenção do enunciador a partir de seu estilo. A Estilística Léxica, por sua vez, ocupa-se com a expressividade obtida com as palavras, seja por sua flexão, sua formação, sua classificação ou pelo seu significado no contexto, focalizando os aspectos expressivos ligados aos componentes semânticos e gramaticais das palavras. Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 77 / 86

Este trabalho, baseando-se na Estilística, tem por objetivo analisar de que maneira Carlos Drummond de Andrade realiza suas escolhas lexicais e cria novas lexias para caracterizar o amor. Tema recorrente na poesia de Drummond, o amor é visto, às vezes, como um sentimento necessário sem o qual o poeta sequer consegue viver; outras vezes, como um sentimento negativo, amaro, capaz de destruir. Para mostrar como o poeta trabalha com essa dicotomia, foram selecionados três poemas Quero, Amar e Amar-amaro dos quais se analisam as escolhas e criações lexicais. Pretende-se, dessa forma, verificar de que forma as unidades lexicais utilizadas atendem às necessidades expressivas e à intenção do enunciador, mostrando sua visão de mundo sobre o amor. Drummond, um grande mestre da palavra, é um poeta que apresenta uma riqueza e uma originalidade muito grandes. Principalmente em sua fase madura, o autor experiente mostra com suas inovações criadoras sua criatividade lingüística. Pode-se dizer que o amor é uma das sete faces de um poeta que se preocupa em seus textos em retratar a terra natal, a infância, os amigos, a própria poesia, o sentimento do mundo. Percebe-se ora um poeta conformado que conhece esse sentimento e está fadado a ele, ora um poeta que necessita do amor e quer ouvir da amada o tempo todo uma declaração, e, por vezes, um poeta que só vê a amargura que esse sentimento é capaz de gerar. 2. A escolha lexical O direito de escolher o que usar, quando usar e como usar faz com que escritores marquem épocas. Guiraud (apud Martins, 1997, p. 2), entre outros autores, associa estilo a escolha: Estilo é o aspecto do enunciado que resulta de uma escolha dos meios de expressão, determinada pela natureza e pelas intenções do indivíduo que fala e que escreve. Para Cressot (1976), a escolha está ligada à flexibilidade da língua. Pode-se optar entre a objetividade e a subjetividade, entre o discurso direto e o indireto, pode-se escolher formas de tratamento diferentes. Pensando na organização de períodos, pode-se optar entre a subordinação e a coordenação, ou ainda, pensando na organização da frase, opta-se pela ordem direta ou inversa. A língua é, portanto, uma grande aliada do enunciador por dar a ele tantas opções. É claro que se pode escolher sempre dentro daquele conjunto de possibilidades; caso contrário, corre-se o risco de se cair na falta de comunicação. Quanto à escolha lexical, pode-se usar palavras gramaticais com valor lexical, optar entre palavras de valor emotivo ou avaliativo, entre a utilização deste ou daquele sinônimo ou, ainda, entre uma palavra do universo lexical e uma simplesmente criada para aquela situação de enunciação. É possível, também, tentar uma nova combinação entre elementos, criando formas novas que, se compreendidas, podem ser utilizadas. Para criar, entretanto, muitas vezes é necessário desviar-se da forma padrão. Desde que haja intenção, o desvio pode ser visto como criação e, a partir daí, o texto é motivado, e o autor valorizado. Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 78 / 86

O desvio estilístico é caracterizado pela expressividade. Em sua busca o autor experimenta um sem-número de procedimentos para muitas vezes dizer o que já foi dito e repetido por outros escritores. O que importa não é o que dizer e sim como dizer. Quando se inicia o estudo da expressividade das palavras lexicais também chamadas lexicográficas, nocionais, reais, plenas, percebe-se que muitos autores se preocupam com o caráter afetivo das palavras e as consideram como unidades estilísticas. Entretanto, além de verificar que algumas palavras são mais ou menos expressivas que outras, é preciso perceber que determinados morfemas formadores de palavras carregam também expressividade (Câmara Jr. 1978, p. 60). Por isso, um conjunto de palavras formadas pelo mesmo processo, que apresentam um conjunto mórfico semelhante, pode constituir um expressivo campo léxico-semântico. Um dos objetivos da Estilística Léxica é exatamente o de mostrar que os aspectos morfológicos da língua são importantes para que se possa obter expressividade. A essa parte da Estilística Léxica dá-se o nome de Estilística Morfológica. A Estilística Morfológica preocupa-se com o estudo da expressividade obtida com a formação e com a flexão de palavras (Martins, 1997, p. 110). Em se tratando dos processos de formação de palavras, percebe-se que, além de serem essenciais para a ampliação e renovação do léxico, sufixação, prefixação e composição, também podem atender às necessidades expressivas dos usuários da língua. Muitas vezes, uma nova palavra é utilizada muito mais com valor estético do que com o objetivo apenas de suprir uma lacuna existente no léxico. 3. O léxico de Drummond na caracterização do amor 3.1. O amor como palavra Quero (As impurezas do branco) Quero que todos os dias do ano todos os dias da vida de meia em meia hora de 5 em 5 minutos me digas: Eu te amo. Ouvindo-te dizer: Eu te amo, creio, no momento, que sou amado. No momento anterior e no seguinte como sabê-lo? Quero que me repitas até a exaustão que me amas que me amas que me amas. Do contrário evapora-se a amação Pois ao dizer: Eu te amo, desmentes apagas teu amor por mim. Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 79 / 86

Exijo de ti o perene comunicado. Não exijo senão isto, isto sempre, isto cada vez mais. Quero ser amado por e em tua palavra Nem sei de outra maneira a não ser esta de reconhecer o dom amoroso a perfeita maneira de saber-se amado: amor na raiz da palavra e na sua emissão, amor saltando da língua nacional, amor feito som vibração espacial. No momento em que não me dizes: Eu te amo, inexoravelmente sei que deixaste de amar-me, que nunca me amaste antes. Se não me disseres urgente repetido Eu te amoamoamoamoamo, verdade fulminante que acabas de desentranhar, eu me precipito no caos, essa coleção de objetos de não-amor. Quero ser amado por e em tua palavra Nem sei de outra maneira a não ser esta de reconhecer o dom amoroso a perfeita maneira de saber-se amado: amor na raiz da palavra e na sua emissão, amor saltando da língua nacional, amor feito som vibração espacial. No momento em que não me dizes: Eu te amo, inexoravelmente sei que deixaste de amar-me, que nunca me amaste antes. Se não me disseres urgente repetido Eu te amoamoamoamoamo, Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 80 / 86

verdade fulminante que acabas de desentranhar, eu me precipito no caos, essa coleção de objetos de não-amor. Um poeta desesperado não propriamente pela falta de amor, mas pela falta de ouvir a pessoa amada dizer a todo momento eu te amo é o que se encontra no poema Quero. Como o próprio título do texto avisa, o verbo na primeira pessoa do singular já deixa claro qual o desejo desse eu: ele primeiramente quer, ao longo do poema ele passa a exigir (exijo) a repetição exagerada da frase Eu te amo. Para mostrar seu desejo e reforçar a idéia de que o que importa é a raiz da palavra, o poeta utiliza no texto não só o verbo amar (amo, amas, sou amado, ser amado, amar, amaste), mas também o substantivo amor, o adjetivo amoroso, formando ainda amação e não-amor, além do composto amoamoamoamoamo. Percebe-se que Drummond utiliza a repetição, indicando não só a continuidade da ação como também a intensificação do movimento. Com a pluri-repetição de amo (cinco vezes) para a formação do composto amoamoamoamoamo, Drummond faz realmente uma súplica à amada, mostrando a necessidade que tem de ouvir todos os dias do ano/ todos os dias da vida/ de meia em meia hora/ de 5 em 5 minutos a frase Eu te amo. Ele se precipitará no caos se não ouvir repetidamente Eu te amoamoamoamoamo. O objetivo claro do texto é mostrar que mais do que se sentir amado, o poeta precisa - e quer - que a pessoa repita exageradamente e à exaustão a frase fabricada. Não é propriamente o amor que vai evaporar-se se ele não ouvir a frase, mas a amação, derivação sufixal formada por amar +-ção. A criação lexical reforça a idéia de que o que o poeta deseja, ou melhor, o que quer que permaneça, não é o amor em si (talvez esse sequer exista), mas a amação, ou seja, o ato de vivenciar essa situação amorosa em que a única preocupação é com o som (amor/feito som), com a palavra (amor/saltando em língua nacional) e não propriamente com o sentimento. No momento em que ele não ouve a frase que quer ouvir, tem a sensação de que o amor nunca existiu (deixaste de amar-me /nunca me amaste antes). Essa é a amação a que ele se refere, um sentimento exagerado que não tem simplesmente o significado de ato ou efeito de amar, um sentimento que só se realiza pela palavra. Já ao anexar o prefixo não- ao substantivo amor, formando não-amor, o poeta reforça a idéia de negação e dúvida que o atormenta e que o levará a precipitar-se no caos. Terminando o texto com essa palavra negativa, o autor recupera o significado já anunciado com as escolhas do advérbio nunca (nunca me amaste antes) e dos verbos deixar, evaporar, desmentir e apagar. 3.2. O amor como sina Amar (Claro Enigma) Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar? amar e esquecer, amar e malamar, Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 81 / 86

amar, desamar, amar? sempre, e até de olhos vidrados, amar? Que pode, pergunto, o ser amoroso, sozinho, em rotação universal, senão rodar também, e amar? amar o que o mar traz à praia, o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha, é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia? Amar solenemente as palmas do deserto, o que é entrega ou adoração expectante, e amar o inóspito, o áspero, um vaso sem flor, um chão de ferro, e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina. este o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, doação ilimitada a uma completa ingratidão, e na concha vazia do amor a procura medrosa, paciente, de mais e mais amor. Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita. No poema Amar percebe-se um eu fadado ao amor, uma criatura que pelo simples fato de viver está predestinada e deve cumprir sua sina: amar. O ato de amar, no poema, não necessita obrigatoriamente do outro. O destino do poeta é simplesmente amar o que quer que seja sem medida: este o nosso destino: amor sem conta. A busca incessante pelo amor pode transformar um sentimento positivo amar em negativo malamar, desamar. O elemento de composição com valor prefixal mal-, que significa feito de maneira incorreta ou aquilo que se antepõe a bem, pode unir-se a bases adjetivas ou verbais, dando-lhes uma idéia de modo. Em malamar, lexia não dicionarizada, percebese claramente a idéia negativa associada à base amar. Já em desamar, nota-se que o prefixo des-, também negativo, é responsável por estabelecer a idéia de contrariedade. Desamar, segundo o dicionário Houaiss, pode significar: deixar de amar(-se); não (se) amar, não gostar de; ter resistência a, cessar de amar um ao outro. Os dois prefixos negativos mal- e des- unidos à base amar mostram quão inexplicável é esse sentimento que domina o ser amoroso, fazendo-o amar medroso e de olhos vidrados qualquer coisa, por mais pérfida, nula ou vazia que ela seja: o que o mar traz à praia, o que ele sepulta, as palmas do deserto, o inóspito, o áspero, um vaso sem flor, um chão de ferro, o peito inerte, uma ave de rapina. O ato de amar é duro, difícil, rude. À idéia negativa dos prefixos, soma-se, então, esse campo léxico-semântico do inócuo, que culmina no pior dos destinos: amar a nossa Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 82 / 86

falta mesma de amor. Essa falta de amor conduz à secura, uma vez que a água está implícita e essa secura conduz à sede infinita. Dessa maneira, mesmo sabendo que o ato de amar pode levar o ser que ama a uma completa ingratidão, se ele vive em rotação universal, não conseguirá fugir desse destino. 3.3. O amor como sofrimento Amar-amaro (Lição de Coisas) Por que amou por que a!mou se sabia p r o ib id o p a s s e a r s e n t ime n t o s ternos ou nesse museu do pardo indiferente me diga: mas por que amar sofrer talvez como se morre de varíola voluntária vágula ev idente? ah PORQUEAMOU e se queimou todo por dentro por fora nos cantos nos ecos lúgubres de você mesmo (o,a) irm(ã, o)retrato espéculo por que amou? se era para ou se era por como se entretanto todavia toda vida mas toda vida é indagação do achado e aguda espostejação da carne do conhecimento, ora veja permita cavalheir(o,a) amig(o,a) me releve este malestar cantarino escarninho piedoso este querer consolar sem muita convicção o que é inconsolável de ofício a morte é esconsolável consolatrix consoadíssima a vida também tudo também mas o amor car(o,a) colega este não consola nunca de núncaras O sofrimento amoroso é descrito nesse poema, cujo título é Amar-amaro. É a decepção amorosa e o amargor que ela traz que predominam em todo o texto. Para o poeta, o amor não consola nunca de núncaras ; assim, o ato de amar só pode ser realmente amaro. Percebe-se com a justaposição amar-amaro que, mais do que caracterizar o substantivo amar, o adjetivo amaro o contém, ou seja, não existe amar que não seja amaro. Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 83 / 86

No pessimista poema, Drummond pergunta a si mesmo no verso inicial: Por que amou por que a!mou, mostrando toda sua originalidade, ao intercalar na forma verbal amou o ponto de exclamação (a!mou).o ponto de exclamação mostra que, mesmo sendo amaro, o amor é lembrado com certa nostalgia. Parece que a lembrança de um amor vem acompanhada de um suspiro. A seguir, chama-se atenção para o adjetivo desesperados, grafado de pontacabeça, acentuando o desespero daqueles que amam. A idéia de desespero se reforça com a quebra do vocábulo evidente nada mais é evidente. A sonoridade obtida com a aliteração do /v/, na seqüência varíola voluntária vágula ev, pode ser associada ao sopro, ao expirar. Além disso, ev é forma equivalente de eu e a parte idente pode ser relacionada à identidade. Embora distante da origem, pode-se entender que a desagregação ev/idente poderia estar associada à identidade do eu. O eu que ama e sofre, como se morresse de varíola, parece estar aos pedaços. O jogo lúdico continua quando, com letras maiúsculas, ele grita: PORQUEAMOU. O inconformismo pelo fato de o amor ser amaro e não consolar nunca de núncaras é percebido com a criação do verbo porqueamar. Trata-se de um verbo que soa como um castigo para os que amam e não são amados: quem ama sofre e se queima. Para Drummond, o ato de amar é comprado a uma aguda espostejação da carne do conhecimento. O sufixo -ção é extremamente produtivo na formação de substantivos deverbais, ao lado de mento. Por serem concorrentes, é comum um bloquear o outro. No poema, Drummond prefere espostejação, embora a forma dicionarizada seja espostejamento. Pode-se dizer que por causar estranhamento, a forma escolhida consegue transmitir uma idéia de intensificação. Para reforçar a idéia de que o amor produz muitos males, o poeta refere-se a um mal-estar, ou melhor, um malestar escarninho cantarino piedoso. Há em malestar uma nova apresentação para a forma dicionarizada mal-estar. O significado mantém-se o mesmo indisposição, incômodo, inquietação, constrangimento, mas a união dos dois elementos sem hífen agrega graficamente e sonoramente os dois elementos, reforçando a idéia negativa. Recorrendo à ironia, o poeta diz que se trata de um malestar cantarino. O adjetivo tem uma carga positiva e qualifica o substantivo malestar (negativo), que só é cantarino por ser escarninho, sarcástico. Toda essa situação é inconsolável de ofício, diz o poeta. Nada se pode, portanto, fazer. Até a morte é esconsolável, mas o amor não. O prefixo es-, de origem latina, indica, segundo Houaiss, movimento para fora, separação, transformação, intensidade, ausência, negação. Na formação esconsolável, ele indica mudança de estado. Ao criar o vocábulo esconsolável, CDA faz um jogo com o radical consol-, encontrado em consolar, inconsolável e consolatrix e, sobretudo, com o vocábulo inconsolável. Há coisas que são inconsoláveis, ou seja, impossíveis de serem consoladas. Já a morte é esconsolável, ou seja, é possível uma mudança de estado; logo, ela pode ser consolada, por mais difícil que seja e exija um certo esforço. Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 84 / 86

O poeta utiliza uma série de adjetivos para caracterizar a morte, dentre eles consolatrix (a que consola). O amor não consola nunca de núncaras, mas a morte é consolatrix assim como Nossa Senhora, que mesmo tendo o filho morto consola os aflitos (consolatrix aflictorum), como diz um dos versos da ladainha. Em Amar-amaro, Drummond utiliza a forma consoadíssima para referir-se à morte; a morte é esconsolável, consolatrix, consoadíssima. No Houaiss, consoada é um substantivo e significa: pequena refeição noturna, em dia de jejum ou ceia da noite de Natal. Não é, portanto, esse o significado proposto por CDA. Para o poeta, a morte e a vida têm consolo, mas o amor não. Dizer que a morte é consoadíssima, é dizer que ela pode ser aceita, está em total consonância, em total conformidade com a vida. Drummond, com a escolha de consoadíssima, pode estar referindo-se também ao poema Consoada (Opus 10), de Manuel Bandeira, em que o poeta pernambucano fala da chegada da morte: Quando a indesejada das gentes chegar/ (Não sei se dura ou caroável),/ Talvez eu tenha medo./ Talvez sorria, ou diga:/ - Alô, iniludível!. Como o amor pode atingir qualquer pessoa, independentemente do sexo, Drummond cria um feminino para cavalheiro (cavalheira), ao utilizar a desinência de gênero entre parênteses: cavalheiro (a). Com esse recurso, o poeta, que se dirige ao leitor de forma irônica, fazendo questão de mostrar que os males do amor ocorrem não só com homens, mas também com mulheres. Já em relação à flexão de número, percebe-se, na pluralização do advérbio nunca a busca da expressividade. Além da criação do plural para o advérbio, Drummond o estica, formando a proparoxítona núncaras que, por ser a última palavra do poema, parece que o leva realmente ao infinito. 4. Considerações finais Nos três poemas analisados, percebe-se que a relação do poeta com o amor não é física, mas sentimental. Para Gledson (1981, p. 228): Drummond faz parte de uma tradição já venerável de poetas cujo assunto é a natureza do amor e os seus efeitos sobre o poeta, para quem, portanto, a pessoa amada vem a ser poeticamente secundária. A suas próprias preocupações dão uma originalidade ao tratamento do tema, que o faz insubstituível como poeta do amor, tal como noutros gêneros. Suas escolhas e criações lexicais revelam sua preocupação com o sentimento que pode precipitá-lo no caos, provocar uma sede infinita e não consolar nunca de núncaras. O poeta deixa claro que livrar-se do amor, é tarefa impossível. Uma vez que o ser humano, ou em sua concepção, o ser amoroso está em rotação universal, seu destino é amar. Amar a palavra amor, amar a falta de amor, amar, mesmo sabendo que esse sentimento fere. Em Quero, o poeta está condenado ao caos e ao não-amor se não ouvir a repetição da frase Eu te amo.o amor realiza-se somente pela palavra, a palavra pronunciada como som, emissão vocal, vibração. A palavra que o próprio poeta usa para Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 85 / 86

sua expressão é agora responsável pela presentificação do amor. Caso não ouça a palavra, o amor deixa de existir. A escolha dos verbos evaporar, desmentir, apagar, deixar relaciona-se ao campo semântico dos substantivos não-amor e caos, onde o poeta se precipitará no momento em que não for amado por e na palavra. Em Amar e Amar-amaro, o léxico de Drummond na caracterização do amor estabelece-se no campo semântico da negatividade, o que pode ser percebido com a escolha ou criação dos verbos esquecer, malamar, desamar, sepultar (Amar), sofrer, queimar (Amar-amaro); dos substantivos ingratidão, falta, deserto, inóspito, áspero, secura, sede (Amar), espostejação, malestar (Amar-amaro); dos adjetivos inerte, pérfido, nulo, medroso (Amar), desesperado, indiferente, lúgubre, escarninho, inconsolável (Amar-amaro). A idéia negativa expressa-se também pelos prefixos in- inconsolável (Amar-amaro), infinito, ingratidão (Amar), des- desamar (Amar), mal- malestar (Amar-amaro), malamar (Amar). Tomando como base a definição de estilo de Guiraud (1975, p. 7), pode-se afirmar que por trás de uma escolha existe sempre uma intenção e, dependendo de sua intenção, esse indivíduo que produz o texto pode criar um ou outro efeito de sentido. Assim, pode-se dizer que as lexias, ao se manifestarem no discurso concretamente realizado, apresentam um significado exclusivo daquela situação de discurso e de enunciação. 5. Referências bibliográficas ANDRADE, Carlos Drummond de. Nova Reunião. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983. BALLY, Charles. Traité de stylistique française. Paris: Klincksiekc, 1951. CÂMARA Jr., Joaquim Mattoso. Contribuição à Estilística Portuguesa. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1978. CRESSOT, Marcel. Le style et ses techniques. Paris: PUF, 1976. GLEDSON, John Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Duas Cidades, 1981. GUIRAUD, Pierre e KUENTZ, Pierre. La stilystique. Paris: Klincksieck, 1975. HOUAISS. Antônio Dicionário eletrônico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2003. LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1959. MARTINS, Nilce Sant anna. Introdução à Estilística. São Paulo: T.A. Queiroz, 1997. Estudos Lingüísticos XXXVI(1), janeiro-abril, 2007. p. 86 / 86