A Tradução Cultural N A Varanda do Frangipani, de Mia Couto



Documentos relacionados
O homem transforma o ambiente

"Brasil é um tipo de país menos centrado nos EUA"

Filosofia da natureza, Teoria social e Ambiente Ideia de criação na natureza, Percepção de crise do capitalismo e a Ideologia de sociedade de risco.

O céu. Aquela semana tinha sido uma trabalheira!

O MUNDO É A CASA DO HOMEM

Adolescência Márcio Peter de Souza Leite (Apresentação feita no Simpósio sobre Adolescência- Rave, EBP, abril de 1999, na Faculdade de Educação da

O papel do CRM no sucesso comercial

Transcriça o da Entrevista

ESTUDO 1 - ESTE É JESUS

O Princípio da Complementaridade e o papel do observador na Mecânica Quântica

5 Considerações finais

APÊNDICE. Planejando a mudança. O kit correto

ADMINISTRAÇÃO GERAL MOTIVAÇÃO

1. Preconceito e discriminação, 14 Homofobia, 17

A Alienação (Karl Marx)

5 Dicas Testadas para Você Produzir Mais na Era da Internet

SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS ÀS AÇÕES DE FORMAÇÃO CONTINUADA DA REDE MUNICIPAL DE ENSINO DO RECIFE/PE

A origem dos filósofos e suas filosofias

Capítulo II O QUE REALMENTE QUEREMOS

Redação do Site Inovação Tecnológica - 28/08/2009. Humanos aprimorados versus humanos comuns

Mensagem de Prem Rawat

Setembro, Fátima Barbosa

POR QUE SONHAR SE NÃO PARA REALIZAR?

Educação Patrimonial Centro de Memória

Presidência da República Casa Civil Secretaria de Administração Diretoria de Gestão de Pessoas Coordenação Geral de Documentação e Informação

Lógicas de Supervisão Pedagógica em Contexto de Avaliação de Desempenho Docente. ENTREVISTA - Professor Avaliado - E 5

UMA TOPOLOGIA POSSÍVEL DA ENTRADA EM ANÁLISE 1

Construção, desconstrução e reconstrução do ídolo: discurso, imaginário e mídia

CONSTRUÇÃO DE QUADRINHOS ATRELADOS A EPISÓDIOS HISTÓRICOS PARA O ENSINO DA MATEMÁTICA RESUMO

A FIGURA DO ESTADO. 1. Generalidades

GRUPO IV 2 o BIMESTRE PROVA A

Exercícios Teóricos Resolvidos

As crianças adotadas e os atos anti-sociais: uma possibilidade de voltar a confiar na vida em família 1

Tecnologias e tempo docente

Resenha: SEMPRINI, Andrea. A Marca Pós-Moderna: Poder e Fragilidade da Marca na Sociedade Contemporânea. São Paulo : Estação das Letras, 2006.

CENTRO HISTÓRICO EMBRAER. Entrevista: Eustáquio Pereira de Oliveira. São José dos Campos SP. Abril de 2011

Mostra Cultural 2015

AS CONTRIBUIÇÕES DAS VÍDEO AULAS NA FORMAÇÃO DO EDUCANDO.

Quando vemos o mundo de forma diferente, nosso mundo fica diferente.

Eixo Anhanguera-Bandeirantes virou polo lean, diz especialista

UNIDADE I OS PRIMEIROS PASSOS PARA O SURGIMENTO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO.

O BRINCAR E SUAS IMPLICAÇÕES NO DESENVOLVIMENTO INFANTIL DENTRO DO PROCESSO GRUPAL (2012) 1

Internacionalização da Amazônia

GRUPO III 1 o BIMESTRE PROVA A

20 perguntas para descobrir como APRENDER MELHOR

2015 O ANO DE COLHER ABRIL - 1 A RUA E O CAMINHO

O AMBIENTE MOTIVADOR E A UTILIZAÇÃO DE JOGOS COMO RECURSO PEDAGÓGICO PARA O ENSINO DE MATEMÁTICA

Presidência da República Casa Civil Secretaria de Administração Diretoria de Gestão de Pessoas Coordenação Geral de Documentação e Informação

I OS GRANDES SISTEMAS METAFÍSICOS

O sucesso de hoje não garante o sucesso de amanhã

como a arte pode mudar a vida?

Aquecimento inespecífico: Os participantes devem andar pela sala não deixando nenhum espaço vazio, andando cada um no seu ritmo.

EIXO TEMÁTICO I: HISTÓRIAS DE VIDA, DIVERSIDADE POPULACIONAL E MIGRAÇÕES.

Os dois foram entrando e ROSE foi contando mais um pouco da história e EDUARDO anotando tudo no caderno.

4Distribuição de. freqüência

Presidência da República Casa Civil Secretaria de Administração Diretoria de Gestão de Pessoas Coordenação Geral de Documentação e Informação

Presidência da República Casa Civil Secretaria de Administração Diretoria de Gestão de Pessoas Coordenação Geral de Documentação e Informação

Indicamos inicialmente os números de cada item do questionário e, em seguida, apresentamos os dados com os comentários dos alunos.

A QUESTÃO ÉTNICO-RACIAL NA ESCOLA: REFLEXÕES A PARTIR DA LEITURA DOCENTE

Top Guia In.Fra: Perguntas para fazer ao seu fornecedor de CFTV

O Sofrimento humano.

Conferência sobre a Nova Lei das Finanças Locais

PEDAGOGIA EM AÇÃO: O USO DE PRÁTICAS PEDAGÓGICAS COMO ELEMENTO INDISPENSÁVEL PARA A TRANSFORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA AMBIENTAL

3º Seminário Internacional de Renda Fixa Andima e Cetip Novos Caminhos Pós-Crise da Regulação e Autorregulação São Paulo 19 de março de 2009

LIDERANÇA, ÉTICA, RESPEITO, CONFIANÇA

Sua Tríplice de um Curso de Sucesso

Consumidor e produtor devem estar

David Seymor (1948). Crianças em Deslocamento. Viena/Austria

ED WILSON ARAÚJO, THAÍSA BUENO, MARCO ANTÔNIO GEHLEN e LUCAS SANTIGO ARRAES REINO

Papo com a Especialista

Relações de trabalho contemporâneas: novas possibilidades de realização profissional ou reinvenção da intensificação do trabalho?

O fascínio por histórias


CÓDIGO CRÉDITOS PERÍODO PRÉ-REQUISITO TURMA ANO INTRODUÇÃO

um novo foco para as mudanças

SÓ ABRA QUANDO AUTORIZADO.

Meu nome é Elizeu Lopes, Ava Kuarahy, sou Guarani-Kaiowá, representante da

A Maquina de Vendas Online É Fraude, Reclame AQUI

Cadernos do CNLF, Vol. XVI, Nº 04, t. 3, pág. 2451

Para a grande maioria das. fazer o que desejo fazer, ou o que eu tenho vontade, sem sentir nenhum tipo de peso ou condenação por aquilo.

O professor que ensina matemática no 5º ano do Ensino Fundamental e a organização do ensino

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva & Guaciara Lopes Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2014.

MÓDULO 5 O SENSO COMUM

Presidência da República Casa Civil Secretaria de Administração Diretoria de Gestão de Pessoas Coordenação Geral de Documentação e Informação

A ENERGIA DO BRINCAR: UMA ABORDAGEM BIOENERGÉTICA

INQ Já alguma vez se sentiu discriminado por ser filho de pais portugueses?

COMO FUNCIONA NOSSA CONSULTORIA DE MARKETING DIGITAL ESPECIALIZADA EM VENDAS ONLINE

Carta do editor. Linguagem & Ensino, Vol. 7, No.2, 2004 (11-16) LARVAS OU BORBOLETAS?

20 perguntas para descobrir como APRENDER MELHOR

Meu nome é Rosângela Gera. Sou médica e mãe de uma garotinha de sete anos que é cega.

A Guarda Compartilhada

Refração da Luz Índice de refração absoluto Índice de refração relativo Leis da refração Reflexão total da luz Lentes Esféricas Vergência de uma lente

COMO TER TEMPO PARA COMEÇAR MINHA TRANSIÇÃO DE CARREIRA?

Jesus declarou: Digo-lhe a verdade: Ninguém pode ver o Reino de Deus, se não nascer de novo. (João 3:3).

Volte a ter o corpo que tinha antes da gravidez em 60 dias...

DESIGN DE MOEDAS ENTREVISTA COM JOÃO DE SOUZA LEITE

Sistemas de Informação I

A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA À DISTÂNCIA SILVA, Diva Souza UNIVALE GT-19: Educação Matemática

Transcrição Teleconferência Resultados 3T07 Trisul 14 de Novembro de 2007

Dicas para investir em Imóveis

Transcrição:

A Tradução Cultural N A Varanda do Frangipani, de Mia Couto Marcos Roberto Teixeira de Andrade 1 (UFJF) Resumo: Segundo Stuart Hall, no seu A Identidade Cultural na Pós-modernidade (1999), o conceito de tradução cultural pretende descrever a situação de pessoas dispersadas de sua terra natal e que, portanto, devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas. A proposta deste trabalho é, assim, averiguar o modo como a questão da tradução cultural emerge n A Varanda do Frangipani, de Mia Couto: baseando-me na trajetória de Domingos Mourão, um português exilado em Moçambique, pretendo abordar a presente questão levando em conta o diálogo cultural que sempre caracterizou as duas nações. O fato de Domingos Mourão, em Moçambique, passar a ser chamado de Xidimingo, bem como o fato de aderir à variante moçambicana do português, seguramente, fazem dele um ótimo exemplo de personagem traduzido culturalmente. Palavras-chave: Tradução Cultural; Identidade; Portugal; Moçambique. A identidade e a modernidade O sujeito [pós-moderno] está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. [Pois] a identidade [na Pós-modernidade] torna-se uma celebração móvel. (Stuart Hall A Identidade Cultural na Pós-modernidade). A Modernidade nasce sob o signo da tensão, da ruptura: ruptura entre o antigo e o novo, o tradicional e o moderno. Essa idéia da ruptura parecia estar presente desde o século XVI com o início da chamada Idade Moderna. A ascensão do Renascimento, com a sua evolução tecnocientífica, proporcionou uma ampla reavaliação crítica dos ideais medievais o que ocasionou um desejo de ruptura com esses mesmos ideais. O aperfeiçoamento do sistema de navegação provou a esfericidade da Terra, possibilitando, assim, a ultrapassagem dos horizontes antes limitados e, conseqüentemente, a descoberta do novo. A questão do novo marcará, também, a Modernidade nos princípios do século XIX. Segundo Antoine Compagnon, n Os Cinco Paradoxos da Modernidade, a palavra de ordem do moderno foi, por excelência, criar o novo (2003, p. 10). Mas o novo, então, parecia, essencialmente, vinculado à idéia de progresso. Essa concepção parecia vir já desde fins do século XVIII, por ocasião da chamada querela entre os antigos e os modernos: a crença na superioridade do progresso científico e filosófico ocidental, desde a Renascença, pôs em xeque o ideal de imitação dos antigos como o único critério para o belo. Isso porque, ainda segundo Compagnon, do ponto de vista dos modernos, os antigos são inferiores, porque primitivos, e os modernos, superiores, em razão do progresso, progresso das ciências e das técnicas, progresso da sociedade, etc. (2003, p. 20). Foi a partir daí que surgiu aquilo que Compagnon classificou como a possibilidade de uma estética do novo (2003, p. 20). Todavia, nem todos viam, no século XIX, essa sistematização do novo e do progresso com bons olhos: Nietzsche, por exemplo, atacava a Modernidade, chamando-a de decadência. Baudelaire, seguindo a mesma linha, considerava o progresso, na verdade, um fanal obscuro (apud COMPAGNON; 2003, p. 11). Dessa forma é que, para Compagnon, a modernidade baudelairiana já parecia trazer em si o seu oposto, qual seja, a resistência à modernidade (2003, p. 15). Contudo, se para Baudelaire o novo, ou o progresso, era pensado em termos de um fanal

obscuro, para Rimbaud, pelo contrário, o novo era sinônimo de multiplicador do progresso. Enquanto o novo, em Baudelaire, era desesperado, arrancado da catástrofe, do desastre de amanhã, Rimbaud proclama que é preciso ser absolutamente moderno (2003, p. 16). Mas o que mais me chama a atenção nessa divergência de opiniões entre Rimbaud e Baudelaire, e que gostaria de aqui destacar, não são nem tanto as suas percepções diametralmente opostas do fenômeno moderno, mas, sim, sobretudo, o fato de que essa mesma divergência já parece revelar em si duas das principais características que têm sido atreladas à Modernidade e, principalmente, à Pós-modernidade como veremos adiante: o paradoxo e a instabilidade. De fato, a Modernidade é, essencialmente, algo paradoxal. Acabamos de ver os olhares duvidosos que Nietzsche e Baudelaire lançaram sobre o fenômeno, colocando em xeque a idéia de progresso defendida pela modernização. Essa abordagem também foi feita por Anthony Giddens, no seu As Conseqüências da Modernidade: ele já inaugura seu texto questionando se estaríamos realmente vivenciando a chamada Pós-modernidade ou as conseqüências da Modernidade. Segundo ele, essa ambigüidade decorreria da própria dificuldade que teríamos em compreender o fenômeno moderno; assim, pelo fato de a ordem social vigente parecer estar fora do nosso controle, novos termos, como Pós-modernidade, são inventados com o fito de tentar organizar aquilo que tem escapado à nossa compreensão. Contudo, a atitude mais adequada, conforme Giddens, seria olhar novamente para a natureza da própria modernidade quando, então, poderíamos concluir: Em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que as conseqüências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas do que antes (1991, p. 12-13). E quais seriam essas conseqüências da Modernidade? Quais seriam os efeitos radicais desse fenômeno chamado moderno? Ainda conforme Giddens, a Modernidade parece se configurar como uma faca de dois gumes: há o seu lado benéfico e o seu aspecto sombrio. Se, por um lado, a Modernidade trouxe consigo avanços consideráveis em áreas como a medicina, informática, meios de transporte, etc. áreas que proporcionam um maior conforto e, por vezes, estabilidade à existência humana por outro, desenvolveu, também, aspectos que põem em risco a nossa segurança. Se a industrialização, por exemplo, promoveu o avanço de áreas que aumentaram o nosso bem-estar, essa mesma industrialização crescente tem provocado, cada vez mais, a degradação do meio-ambiente. Além disso, há de se considerar ainda que a emergência dos estadosnação modernos trouxe consigo, em vários contextos, a possibilidade do totalitarismo político em detrimento do despotismo tradicional. Na esteira desse totalitarismo político, veio o desenvolvimento do poder militar como um fenômeno geral. E o século XX, que testemunhou o nascimento do avião, o aperfeiçoamento do automóvel, o avanço da medicina, o surgimento da informática, dentre vários outros benefícios, testemunhou, também, o bombardeio nuclear de Hiroshima e Nagasaki (1991, p. 16-18). É por isso que Giddens afirma que, em sua análise do caráter da Modernidade, ele vê a necessidade de concentrar uma parte substancial da divisão sobre os temas segurança versus perigo e confiança versus risco (1991, p. 16; itálicos do autor). Esse caráter paradoxal e ambíguo da Modernidade tem gerado um ambiente, constantemente, de instabilidade. Tudo se torna cada vez mais provisório; a efemeridade parece estar se tornando a marca registrada dos tempos atuais; nossa percepção de tempo e espaço se altera cada vez mais; as distâncias diminuem. Todo esse complexo desenrolar, certamente, afeta a nossa percepção da realidade. Aliás, não apenas a nossa percepção da realidade: mas, também, as próprias identidades tanto as individuais, como as culturais. Hall parece ter percebido bem esse fenômeno. Através do seu A Identidade Cultural na Pósmodernidade é possível compreender, perfeitamente, como as mudanças estruturais da Modernidade e do que ele chama de Modernidade Tardia têm contribuído para o descentramento tanto das identidades, como do sujeito moderno. Ele já inaugura seu texto chamando a atenção para o fato de que as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em

declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado (1999, p. 7). Essa chamada crise de identidade faria parte de um processo mais amplo de mudança, que estaria deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social (1999, p. 7). Ele ainda diz o seguinte: Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Essas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Essa perda de um sentido de si estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito (1999, p. 9). Prosseguindo em suas reflexões, Hall passa a analisar três diferentes concepções de identidade e o modo como essas concepções foram se descentrando ao longo da Modernidade. A primeira concepção é a do sujeito do Iluminismo: esse sujeito seria totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação ; o seu centro consistiria num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo [...] ao longo da existência do indivíduo (1999, p. 10-11). Como é possível perceber, trata-se de uma concepção extremamente essencialista e individualista da identidade. A segunda concepção refere-se ao sujeito sociológico: aqui já é possível perceber um certo descentramento em relação ao sujeito do Iluminismo. Se o sujeito do Iluminismo é unificado, centralizado, autocentrado, o sujeito sociológico, por sua vez, já não é mais tão autônomo e autosuficiente, mas, pelo contrário, a identidade desse sujeito é formada através da interação entre o eu e a sociedade; o sujeito ainda possuiria um núcleo ou essência interior, que seria o seu eu real, contudo, esse núcleo seria formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais exteriores e as identidades que esses mundos oferecem (1999, p. 11). Essa noção, como é fácil notar, parecia já refletir a crescente complexidade do mundo moderno. A terceira concepção refere-se ao sujeito pós-moderno: agora, o distanciamento em relação ao sujeito do Iluminismo já é total. Já não há mais coerência e unidade: há fragmentação e ambigüidade. O sujeito sociológico, como vimos, já se distanciava bastante da concepção do sujeito do Iluminismo: a idéia de uma identidade única e estável parecia se tornar, cada vez mais, uma utopia. No caso do sujeito pós-moderno, já não se fala mais em identidade unificada e estável mas em identidades fragmentadas: algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas (1999, p. 12). Como se vê, a identidade do sujeito pós-moderno já não é mais fixa, essencial ou permanente mas uma celebração móvel (1999, p. 12-13). O fato de a identidade desse sujeito pós-moderno ser uma espécie de celebração móvel faz com que ele assum(a) identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um eu coerente (1999, p. 13). Além disso, Hall ainda ressalta que: Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. [...] A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia (1999, p. 13). Assim, todo o panorama traçado ao longo deste tópico nos permitiu perceber como que a questão da identidade tem sido retratada nesses tempos pós-modernos: de um modo um tanto

quanto confuso, ambíguo, incerto, inseguro, não-resolvido; as bases de qualquer segurança vacilam cada vez mais. Como acabamos de ver, dentro de nós existem identidades contraditórias, que nos empurram em diferentes direções, fazendo com que nossas identificações sejam continuamente deslocadas. Tudo isso é fruto, sem dúvida, das lentas, mas contínuas mudanças estruturais que a Modernidade tem acarretado, bem como, também, do próprio processo de descentramento que o Ocidente tem sofrido nessa era de Globalização. A identidade, então, torna-se, cada vez mais, um fenômeno ambíguo e confuso: e é exatamente nesse terreno, confuso e ambíguo, que floresce a questão da tradução cultural como veremos, a seguir, n A Varanda do Frangipani, de Mia Couto. Domingos Mourão, ou Xidimingo: O traduzido cultural Dizem que havia, nesse tempo, um velho preto que andava pelas praias a apanhar destroços de navios. Recolhia restos de naufrágios e os enterrava. Acontece que uma dessas tábuas que ele espetou no chão ganhou raízes e reviveu em árvore (Fábula narrada por Domingos Mourão, n A Varanda do Frangipani). Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado (Stuart Hall A Identidade Cultural na Pós-modernidade). Um dos aspectos presentes (e dos mais interessantes) no debate contemporâneo é a questão da tradução cultural. Num mundo em que as fronteiras estão cada vez mais diluídas, em que as distâncias diminuem, em que culturas intensificam cada vez mais seus contatos, em que o Centro é desestabilizado e as margens, então, são disseminadas; num mundo em que as identidades, antes sólidas e fixas, tornam-se transitórias, confusas, ambíguas: nesse mundo, em constante deslocamento, identidades e culturas parecem não guardar mais posições fixas e seguras. É nesse contexto que surge a reflexão sobre a noção de tradução cultural. Stuart Hall, no excerto escolhido para epígrafe deste tópico, chama-nos a atenção para o fato de que, em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas, pelo contrário, estão suspensas, em transição, entre diferentes posições ; essas identidades retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais ; além disso, elas são o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado. Dessa forma, muitos têm sido tentados a pensar na identidade, nessa era globalizada, como destinada ou a retornar a suas raízes ou a desaparecer através da assimilação e da homogeneização. Mas, segundo Hall, esse pode ser um falso dilema (1999, p. 88). É para esse impasse, então, que se propõe o conceito de tradução cultural. Tal conceito pretende descrever aquelas formações identitárias que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas dispersadas já não nutrem mais a ilusão de um retorno ao passado. Dessa forma, são obrigadas a negociar com as culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Surgem, então, novas identidades, híbridas, identidades que são o produto de várias histórias e culturas interconectadas, identidades que pertencem a uma e várias casas. As pessoas que vivem nesse contexto devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas pois estão irrevogavelmente traduzidas (1999, p. 88-89; itálico do autor). A questão da tradução cultural também está presente no enredo d A Varanda do Frangipani: e o personagem que nos servirá de exemplo para ilustrar essa imagem é o português Domingos Mourão. Uma das primeiras marcas que aponta para o fato de Mourão ser um personagem traduzido

culturalmente é o seu nome de rebaptismo em Moçambique: Xidimingo. Domingos Mourão é o seu nome de nascença : mas aqui me chamam Xidimingo (1996, p. 47). Esse rebaptismo, sem dúvida, aponta para o fato de que Domingos Mourão é um ser dispersado para sempre de sua terra natal : aponta, também, para o fato de que o velho português teve que aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas. Contudo, a meu ver, a imagem mais eloqüente desse seu estado de traduzido cultural é a fábula da árvore que ele narra ao inspetor Izidine Naíta e que serve de epígrafe para este tópico: reparemos que o fragmento de tábua que o velho preto planta no chão, fazendo com que ela ganhe raízes e reviva em árvore, vem de um outro local e se adapta a um novo mundo revivendo em árvore. Além disso, trata-se de um fragmento de madeira que interage com um novo solo, um novo ambiente: um fragmento de madeira que, ao se deslocar e interagir com esse novo e estranho ambiente, é traduzido em árvore e é exatamente essa árvore que Xidimingo assume ser: [...] eu sou essa árvore. Venho de uma tábua de outro mundo mas o meu chão é este, minhas raízes renasceram aqui. São estes pretos que todos os dias me semeiam (1996, p. 48). Ao assumir de maneira tão enfática ser essa árvore, Xidimingo está, ainda que não o diga com todas as letras, assumindo o seu estado de traduzido cultural. Outra imagem que me chama muito a atenção é a sua afirmativa de que são estes pretos que todos os dias me semeiam : essa imagem de ser semeado, diariamente, pelos pretos do asilo, parece apontar para o fato de que Xidimingo, cotidianamente, negocia com a nova cultura em que vive, interage com ela, contudo, sem ser simplesmente assimilado por ela e sem perder completamente sua identidade. Isso fica muito nítido na nova maneira como fala o português com a gramática toda suja, da cor desta terra : Desculpe-me este meu português, já nem sei que língua falo, tenho a gramática toda suja, da cor desta terra (1996, p. 48). Referências Bibliográficas: [1] COMPAGNON, Antoine. Os Cinco Paradoxos da Modernidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. [2] COUTO, Mia. A Varanda do Frangipani. Lisboa: Caminho, 1996. [3] GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: Ed. UNESP, 1991. [4] HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. 1 Marcos ANDRADE, doutorando (bolsista FAPEMIG) Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) marcostorga@yahoo.com