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Transcrição:

A Carcinicultura e os Mangues no Ceará: Novo estudo demonstra com maior precisão os fatos Padrões de uso direto de unidades de paisagem costeiras pela carcinicultura marinha cearense Por: Prof. Dr. Márcio Vaz UFMA Uma das questões centrais sobre a sustentabilidade da carcinicultura marinha diz respeito ao status das áreas utilizadas para sua implantação, se ambientalmente protegidas ou estratégicas para a manutenção do equilíbrio ecológico e manutenção de populações tradicionais. Dentre as acusações mais comuns temos a destruição dos manguezais e o impedimento de acesso de moradores a seus tradicionais pontos de pesca e extrativismo. A associação da atividade com a destruição de manguezais é especialmente forte na sociedade em geral, sendo geralmente citado o Equador como exemplo de país que devastou seus manguezais para a instalação de viveiros. Este estigma de destruidora de manguezais foi automaticamente transferido para a atividade quando esta se instala e expande no nordeste brasileiro. O debate sobre a sustentabilidade ambiental da carcinicultura marinha brasileira encontra-se ideologizado há pelo menos dez anos, considerando as discussões à época para a elaboração das resoluções CONAMA 303 e 312. Quase nenhum progresso foi realizado na tentativa de alcançamos posição intermediária quanto à viabilização e regularização de empreendimentos novos ou já em operação. A ideologização do debate é sem dúvida uma das grandes responsáveis por este impasse, pois impede a racionalização do debate entre os grupos de interesse envolvidos e a utilização de fundamentação técnica e científica para subsidiar acusações e defesas destes grupos. As tentativas de fornecer embasamento técnico ao debate sobre a sustentabilidade da carcinicultura marinha não são necessariamente recentes. Um trabalho conjunto do LABOMAR, realizado em 2005 e financiado pela ABCC (Associação brasileira de Criadores de Camarão), mapeou a evolução dos manguezais em vários estados nordestinos e detectou um aumento de 36,11% da área dos mesmos para o período em que a carcinicultura marinha apresentou maior taxa de expansão (1978 a 2004). O trabalho de 2005, contudo, não foi conclusivo, uma vez que não quantificou a área original de mangue efetivamente ocupada por viveiros de camarão. Esta lacuna foi preenchida, pelo menos para o Estado do Ceará, em 2010, com um trabalho realizado por nossa equipe com apoio financeiro da ACCC (Associação dos Criadores de Camarão do Ceará). Objetivos O objetivo do referido trabalho foi a quantificação das áreas de unidades de paisagens da zona costeira ocupadas por viveiros de camarão marinho. Para tanto foi criado banco de dados SIG (Sistema de Informações Geográfico) para toda a zona costeira cearense abaixo da cota de 15 m IBGE, abrangendo aproximadamente 266.000 hectares. Inicialmente foi montada uma base cartográfica digital utilizando imagens satélite LANDSAT GEOCOVER de 1999-2000, com resolução de pixel de 15 m. Estas, por sua vez, serviram de base para georeferenciar imagens satélite CBERS de 2009 e 2010 com resolução de pixel também de 15 m, Todas as imagens satélite utilizadas são de domínio público e são disponibilizadas gratuitamente em sites da Internet. Paralelamente foram montados mosaicos digitais georeferenciados de todos os estuários cearenses a partir de fotos da década de 1960, obtidas na Diretoria de Hidrografia e Navegação (DHN) da Marinha de Guerra do Brasil em Niterói, RJ. Nesta década não existiam viveiros de camarão marinho no Brasil e, portanto, é possível identificar quais unidades de paisagem foram ocupadas com a implantação da carcinicultura.

O passo seguinte foi realizar a vetorização (mapeamento) a partir da base CBERS de todas as estruturas de uso potencial para a aqüicultura, tais como tanques, viveiros e canais de captação de água na região de estudo. Na base CBERS, foram também mapeados os manguezais, salinas, e apicuns. A verificação e detalhamento da vetorização da imagem CBERS foi feito com auxílio das imagens de alta resolução disponíveis no site Google Earth (a totalidade da vetorização não utilizou este site, pois grande parte da região costeira do estado ainda está com imagens de 2003 ou 2007). As áreas potenciais foram então triadas a partir de trabalho de campo que separou as salinas dos viveiros de camarão e identificou as fazendas atualmente em operação. A etapa final consistiu na superposição das poligonais de viveiros aos mosaicos digitais com aerofotos da década de 1960, e classificação e quantificação das unidades de paisagem ocupadas. As unidades de paisagem consideradas foram os canais englobando curso d água, gamboa, e igarapés; mangue considerando como tal formação arbustiva ou arbórea das espécies: mangue vermelho (Rhizophora mangle), mangue branco (Laguncularia racemosa) e mangue preto (Avicennia germinans); marisma tropical hipersalino formações herbáceas na região de transição para as áreas de terra firme, conhecidas; salinas estruturas semelhantes aos viveiros de camarão em imagens satélite, mas que se distinguem pelas dimensões de espelho d água e layout; terra firme nesta categoria estão agrupadas diferentes unidades de paisagem tais como tabuleiros, caatinga etc. Figura 1. Unidades de paisagem utilizadas como referência para mapeamento temático da zona costeira cearense O banco de dados SIG final traz informações sobre o estuário de localização, nome da fazenda, área de viveiros e de estruturas de apoio, e tipo e área das unidades de paisagem da década de 1960 ocupadas. O levantamento cadastral da carcinicultura marinha cearense para os anos de 2009 e 2010 revela um total de 5.750 ha. A tabela 1 mostra a distribuição relativa de viveiros e estruturas de apoio nas unidades de paisagem da década de 1960. O Impacto da Carcinicultura Marinha sobre os Manguezais Cearenses Uma análise da Tabela 1 revela que 285 ha de viveiros ocupam sítios que tinham mangues na década de 1960. Este valor representa 5% da área dos viveiros em operação e 1,5% da área atual de manguezais no estado do Ceará (ver Tabela 2).

É importante ressaltar que as estatísticas apresentadas aqui se constituem um cenário extremo, pois existe lapso de quase cinquenta anos entre o mapeamento de viveiros em, a partir de imagens de satélite de 2009-2010, e a situação de unidades de paisagem na década de 1960. Em outras palavras, não necessariamente um viveiro de camarão mapeado em 2010 foi o responsável pela destruição de determinado mangue identificado na aerofoto da década de 1960, pois o mesmo pode ter sido instalado em área já degradada anteriormente por terceiros.

Figura 2. Superposição de vetores de viveiros e mangue, retratando situação nos anos de 2009 e 2010, sobre aerofoto DHN da década de 1960 Figura 3. Outras áreas - Superposição de vetores de viveiros e mangue, retratando situação nos anos de 2009 e 2010, sobre aerofoto DHN da década de 1960 Figura 3. Avanço da área de manguezal no estuário do Rio Curú. Observar que os viveiros estão todos localizados em terra firme O Impacto da Carcinicultura Marinha sobre as Atividades Econômicas Tradicionais O mapeamento das principais unidades de paisagem da zona costeira cearense também permitiu constatar que é pouco provável que exista conflito de carcinicultura com a pesca artesanal.

A carcinicultura ocupa geralmente as zonas interiores da região entre-marés (apicuns e salgados) e áreas da planície costeira acima da preamar. A pesca artesanal ocorre nos canais (igarapés e gamboas) e na floresta de mangue (tapagem e coleta de caranguejo). O conflito potencial com as atividades tradicionais ocorre somente em cenários de viveiros impedindo o acesso de populações litorâneas aos manguezais e canais. Contudo, se considerarmos que mesmo em trechos de maior adensamento da atividade, como na região de Acaraú e Itarema, os viveiros não formam faixa contínua entre os manguezais e terra firme, veremos que este potencial de conflito não é significativo para a zona costeira cearense. O Impacto da Ocupação de Apicuns e Marismas Hipersalinos por Viveiros A alegação de que o impacto decorrente da implantação de viveiros seria maior, se fossem considerados os apicuns e marismas tropicais hipersalinos como parte indissociável do manguezal, é típico exemplo de como a ideologização do debate sobre a sustentabilidade da carcinicultura marinha brasileira compromete a análise técnica racional. A correta abordagem para avaliação desta questão acima teria que inicialmente discutir o papel ecológico das diferentes unidades de paisagem da região entre-marés. Em outras palavras teríamos que apresentar um modelo conceitual de referência que permitisse contextualizar o potencial ecológico das diferentes unidades de paisagem e também avaliar os impactos positivos e negativos da carcinicultura marinha ao ocupar os mesmos. A dinâmica de exportação e importação de material dissolvido e particulado em apicuns, marismas tropicais hipersalinos e manguezais pode ser utilizada como critério técnico para avaliar o papel ecológico destas unidades de paisagem (na década de 1960 o estudo do papel ecológico da exportação de detritos de folhas do mangue vermelho para o estuário deu início ao paradigma da importância do manguezal para a manutenção de populações estuarinas de peixes e crustáceos). No modelo conceitual acima a floresta de mangue seria um sistema aberto em matéria e energia. Importaria material dissolvido na forma de nutrientes e exportaria material particulado, a partir da decomposição do material vegetal, e também material dissolvido, na forma de nutrientes dissolvidos no fluxo de maré vazante. A floresta de mangue pode também ser subdivida a partir da contribuição relativa de material dissolvido e particulado. Nas regiões inundadas diariamente pelas marés predominaria a exportação de material particulado, enquanto que naquelas inundadas apenas quinzenalmente pelas marés de sizígia, a exportação de matéria orgânica ocorreria basicamente como material dissolvido nos fluxos de maré. A explicação para esta diferença é que nas regiões atingidas apenas pelas marés de sizígia, o material vegetal depositado na superfície ficaria um maior período exposto à decomposição e lixiviação, antes de ser carreado pelas marés para o estuário. Sob este prisma funcional apicuns não seriam manguezais uma vez que são bacias de acumulação do ponto de vista biogeoquímico. Em outras palavras, apicuns podem apresentar altos teores de nutrientes no solo, mas estes estão sendo acumulados in situ e não exportados para o estuário, e a evidência para esta afirmação está no alto teor de salinidade do solo e subsolo. O cloreto de sódio (sal) é uma das substâncias mais solúveis que conhecemos, sendo possível diluir até aproximadamente 350 gramas em um litro de água. Assim, um simples balanço de massa mostraria que não

seria possível que apicuns fossem importantes exportadores de nutrientes dissolvidos particulados para o estuário, e no processo deste transporte hídrico não ocorrer também o transporte do sal. Em outras palavras, se apicuns fossem exportadores de material dissolvido eles não seriam hipersalinos. Os marismas tropicais hipersalinos seriam ambientes intermediários entre os apicuns e manguezais. Apesar de terem biomassa com potencial de produzir material particulado e estar submetidos a uma maior frequência de inundação do que os apicuns, estes teriam uma contribuição relativa pequena na exportação de material particulado para os estuários, pois sua biomassa herbácea seria bem inferior àquela apresentada pela floresta de mangue. A avaliação do impacto negativo potencial decorrente da ocupação de apicuns e marismas hipersalinos tem que considerar também a extensão areal destas unidades de paisagem que não foram ocupadas pela carcinicultura marinha. A Tabela 1 mostra que 1.469 ha de apicuns foram transformados em viveiros. A Tabela 2, por sua vez, lista que 10.357 ha de apicuns e marismas hipersalinos, ainda se apresentavam livres de ocupação por viveiros e salinas em 2009-2010. Mesmo desconsiderando as áreas de apicum e marisma convertidas em salinas, teríamos uma taxa de ocupação de 14% destas unidades de paisagem. A Regeneração de Floresta de Mangue em Salinas Abandonadas Seria Evidência de que Apicuns São Manguezal? Apicuns são ambientes hipersalinos tanto na superfície quanto em profundidade. Isto ocorre porque o sal acumulado na superfície por evaporação migra, por difusão, para as camadas subsuperficiais. Dependendo da idade geológica dos apicuns, este perfil vertical hipersalino pode atingir vários metros de profundidade e é muito estável, pois persiste mesmo na estação chuvosa e sob cenários de lixiviação a partir de escoamento superficial originado de terra firme. Outros requisitos essenciais para desenvolvimento de apicuns são a baixa frequência de inundação por maré, pois em regime de inundação diária todo o sal acumulado por evaporação em baixa-mar é lixiviado pela maré seguinte; e condições de clima que acelerem o processo de evaporação. Em síntese, apicuns só ocorram naturalmente em regiões submetidas a climas secos ou sazonalmente secos, com inundação direta apenas nas marés de sizígia e topografia de declividade mínima. As regiões salineiras sofreriam as mesmas restrições climáticas apresentadas pelos apicuns, contudo, devido ao controle de inundação por maré por meio de diques e comportas podem ser instaladas em cotas inferiores da região entre-marés, chegando em alguns casos até as margens de igarapés e gamboas. A salinização do subsolo pode ocorrer também em salinas, mas como o processo de difusão vertical é lento, estas teriam de ter décadas de operação para poder desenvolver perfis verticais semelhantes aos observados em apicuns. A chave para a colonização efetiva pelo mangue de apicuns e salinas abandonadas está na eliminação da hipersalinidade das camadas mais profundas de solo. Naturalmente este processo seria muito lento, e sem haver modificações na frequência de inundações é praticamente impossível que um apicum natural dê lugar a floresta de mangue. No caso das salinas, a colonização por mangue pode ser facilitada se a mesma estiver em cota de inundação diária por marés e não tenha desenvolvido um perfil vertical hipersalino. Neste caso a simples remoção do sistema de comportas e a livre inundação por marés restabeleceriam o mangue.

Em síntese, poderíamos afirmar que apicuns naturais com perfil vertical hipersalino e baixa frequência de inundação por marés são ambientes muito estáveis que não podem ser colonizados por mangue. Os casos observados de salinas abandonadas sendo revegetadas por mangue, como no caso da foz do Rio Ceará, podem ser explicados como salinas em cotas de marés de quadratura e sem ocorrência de perfil vertical hipersalino. Próximos Passos A principal contribuição do presente trabalho é a prova qualitativa e quantitativa de que a carcinicultura marinha cearense não se desenvolveu às custas das áreas de mangue e tão pouco pode ser considerada como a atividade responsável pelos principais impactos ambientais negativos a este ecossistema. O presente banco de dados SIG pode ser futuramente trabalhado para elaborar cenários sobre a dinâmica de uso de unidades de paisagem pela carcinicultura marinha em escala local, permitindo um aprofundamento da discussão técnica no contexto dos diversos estuários cearenses. É importante ressaltar que todas as imagens digitais utilizadas e os vetores dos mapeamentos temáticos serão disponibilizados gratuitamente ao poder público e organizações não-governamentais permitindo assim que as conclusões e cenários por eles produzidos sejam verificados e avaliados de forma independente. Fontes utilizadas: Créditos Artigo: Prof. Dr. Márcio Vaz (UFMA) Bibliografia: Santos, M.C.F.V; Rocha, I.R.C.B & Dominguez, F.M. Padrões de uso direto de unidades de paisagem costeiras pela carcinicultura marinha cearense. Revista da Associação Brasileira de Criadores de Camarão (ABCC), Ano 13, Ed. 02, pg. 28-32, Maio,2011.