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Transcrição:

Catalogação: Cleide de Albuquerque Moreira Bibliotecária/CRB 1100 Revisão: Elias Januário Revisão final: Karla Bento de Carvalho Projeto Gráfico/Diagramação: Fernando Selleri Silva Grafismos: Bakairi Capa: Fotos: Elias Januário Arte: Fernando Selleri Silva Dados internacionais de catalogação Biblioteca Curt Nimuendajú CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA - 3º GRAU IN- DÍGENA. Barra do Bugres: UNEMAT, v. 2, n. 1, 2003 - Semestral ISSN 1677-0277 1. Educação Escolar Indígena I. Universidade do Estado de Mato Grosso II. Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso III. Departamento de Documentação / FUNAI. CDU 572.95 (81) : 37 UNEMAT - Universidade do Estado de Mato Grosso Campus Universitário de Barra do Bugres Projeto 3º Grau Indígena Caixa Postal nº 92 78390-000 - Barra do Bugres/MT - Brasil Telefone: (65) 361-1964 www.unemat.br/indigena / indigena@unemat.br SEDUC/MT - Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso Superintendência de Desenvolvimento e Formação de Professores na Educação Travessa B, S/N - Centro Político Administrativo 78055-917 - Cuiabá/MT - Brasil Telefone: (65) 613-1021 FUNAI - Fundação Nacional do Índio Departamento de Educação DEDOC - Departamento de Documentação SEPS Q. 702/902 - Ed. Lex - 1º Andar 70390-025 - Brasília/DF - Brasil Telefone: (61) 313-3730/226-5128 dedoc@funai.gov.br

LITERATURA E EDUCAÇÃO INDÍGENA Cláudia Neiva de Matos* No primeiro número dos Cadernos de Educação Escolar Indígena, publicado em agosto de 2002, eram expostos dados e reflexões sobre as disciplinas oferecidas nas duas primeiras etapas do Projeto 3 Grau Indígena, implementado em Mato Grosso pela UNEMAT, SEDUC e FUNAI. Na seqüência dessas exposições, venho tecer alguns comentários sobre o trabalho com Literatura neste mesmo contexto, ideológica e pedagogicamente caraterizado por princípios e procedimentos de educação diferenciada, específica, bilíngüe e intercultural. Foi na III Etapa presencial, em julho de 2002, que pela primeira vez se ofereceu, neste projeto, um curso da disciplina consagrada especificamente aos estudos literários. Também, no quadro geral da educação indígena no Brasil, ainda não é freqüente que os usos artísticos da linguagem ocupem espaço próprio na grade curricular. Não se pode portanto fazer economia das questões que isso levanta, a começar pelas mais simples e abrangentes: que significa a presença de uma disciplina chamada Literatura no currículo de formação de professores indígenas? Quais são seus pressupostos teóricos, seus objetivos pedagógicos? Que papel a Literatura deve cumprir na formação do professor indígena? E quais podem ser os desdobramentos dessa formação disciplinar na atuação dos professores nas escolas das aldeias? * Doutora em Letras, professora de Literatura na UFF, docente na Etapa de Línguas, Artes e Literaturas III. 99

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA No 3 Grau Indígena da UNEMAT, a disciplina Literatura está alocada na área de Línguas, Artes e Literatura, ao lado de Língua portuguesa, Lingüística e Artes. Tal como esta última, trata de questões estéticas e expressivas; tal como as duas primeiras, explora os territórios da linguagem verbal. São muito consistentes as afinidades e interações potenciais entre elas todas, como apontaram os professores responsáveis pela subárea de Lingüística: Conhecer a língua é pré-requisito para falar de análise do discurso; uma análise do discurso atenta aos contextos sociais e culturais permite falar dos gêneros de arte verbal, sua universalidade e especificidades, como a narrativa (mítica, ficcional, histórica), a oratória, a poética etc. O ritmo está nas línguas e nas formas de arte verbal, sobretudo em sociedades de tradição oral (mas não somente). Ritmo, simetria, representação (em seus vários níveis) atravessam a linguagem, as línguas e as artes. Consideramos que esta maneira de construir as relações entre as três sub-áreas uma entre as possíveis é interessante, não trivial, para docentes e discentes (Franchetto et alii, 2002: 50-51). Na denominação geral da área, entretanto, chama atenção o tratamento singular dado ao termo literatura, enquanto os termos línguas e artes encontram-se devidamente pluralizados, o primeiro por referir-se ao conjunto de idiomas concernidos pelo programa grande número de línguas indígenas, além do português -, o segundo por indicar uma variedade de sistemas estéticos, manifestações e práticas criativas, suportes e técnicas no domínio das artes visuais. Acredito que, no decorrer do Projeto, esse espectro possa ser ampliado e aprofundado por exemplo, com a inclusão de abordagens do campo musical. E certamente se evidenciará a conveniência de também pluralizar o termo literatura : porque o sentido que lhe dermos deverá estar aberto à pluralidade de manifestações de arte verbal das diversas culturas concernidas, indígenas e não-indígenas, de dominância oral ou escrita; e porque o próprio fato de pautarmos nossa abordagem por uma ótica valorizadora das linguagens poéticas externas ao cânone ocidental nos conduz a 100

LITERATURA E EDUCAÇÃO INDÍGENA descompartimentar e problematizar a idéia que fazemos sobre o que é literatura. É no sentido indicado por tais considerações que passo agora a expor e discutir alguns aspectos do estudo/ensino de Literatura(s) no âmbito da educação indígena. Começo sublinhando que, no trato das questões literárias (mas tenho certeza de que a maioria dos docentes das outras disciplinas, neste e em outros programas, concorda comigo), trabalhar com os professores-cursistas indígenas é sob vários aspectos especialmente fácil e produtivo. Menos propensos que os estudantes brancos da cidade à censura e à insegurança provocadas pelo sistema de ensino civilizado, são eles pródigos em oferecer feed-back aos estímulos e problemas levantados em classe, facilitando um fluxo comunicativo precioso, notadamente para operações de percepção, discussão e produção poéticas. Mostram também grande capacidade de concentração e esforço de compreensão, atitudes que entre os estudantes não índios são freqüentemente negligenciadas em prol do empenho na retenção de informação. Destaque-se além disso seu alto grau de sensibilidade e disponibilidade para a fruição dos aspectos lúdicos e estéticos dos textos. Por outro lado, como acontece aliás em qualquer disciplina, colocam-se muitas dúvidas e delicadezas quanto à organização básica de um curso de Literatura para professores indígenas: prioridades, conteúdos, materiais e métodos pedagógicos adequados à especificidade de suas culturas e de sua inserção no quadro social do país. Neste sentido, é preciso estar disposto a retificar constantemente os planos iniciais de um curso; e a aptidão para tais retificações, isto é, a disposição para responder às colocações e necessidades do grupo, fazendo da atividade pedagógica uma forma efetiva de troca cultural, constitui-se afinal num verdadeiro princípio de trabalho. Porque, muito mais do que transmitir conhecimentos e competências, no caso da construção de um quadro educacional indígena, trata-se de viabilizar e apoiar a elaboração de algo com caracte- 101

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA rísticas particulares e novas. O que, e de que forma, importa praticar nas escolas da floresta? E, questão subordinada à primeira, porém mais imediata em nosso caso, o que e de que forma importa praticar na formação dos professores que atuam nessas escolas? As sugestões que podemos oferecer a respeito de tais questões são fruto de uma experiência ainda incipiente. Sublinhe-se ainda que é sobretudo aos próprios agentes de educação indígenas que cabe dar conta delas, numa perspectiva de educação e ação social que não pretende impor concepções e condutas, mas assegurar condições para a afirmação e expansão de personalidades culturais diferenciadas. O problema já se manifesta na denominação da disciplina. Vale recordar aqui os primeiros passos de minha atuação em educação indígena, em 1994, quando estava tratando de elaborar e oferecer, na ONG Comissão Pró-Índio do Acre, o primeiro curso especificamente voltado para questões literárias naquele programa de formação de professores indígenas. Propus inicialmente à instituição um curso intitulado Iniciação à linguagem literária, mas, uma vez encetadas as aulas, logo decidi abandonar essa expressão carregada de ranço acadêmico em favor de um termo mais abrangente, mais bonito e mais adequado à captação imediata pelo público envolvido: poesia. Íamos simplesmente tratar de Poesia coisa de que todo mundo já ouviu falar e sobre o que tem alguma idéia mais ou menos formada. Poesia foi portanto a noção com a qual iniciamos os estudos literários na CP-I/AC, em 1994, como parte da formação de professores indígenas em nível de 2 grau. No 3 Grau Indígena da UNEMAT, em 2002, o ponto de partida foi a idéia de linguagem poética, elaborada com base no confronto com outros tipos de linguagem: científica, técnica, jornalística, coloquial etc. Em qualquer caso, o importante é que o conceito seja construído pelo conjunto dos professores-cursistas e por cada um individualmente, com base em experiências de recepção de textos escritos ou orais/oralizados, 102

LITERATURA E EDUCAÇÃO INDÍGENA mas sobretudo em conexão com os repertórios discursivos representativos de suas próprias experiências lingüísticas, estéticas e culturais. Na III Etapa presencial, o primeiro passo no curso de Literatura foi a leitura de textos diversificados, abrangendo discursos de matriz indígena e não-indígena, oral e escrita. Com base em abordagens comparativas, tentamos encetar coletivamente a construção de uma noção de linguagem poética. Evidentemente, não se tratou de nomear ou distinguir autores, obras, escolas literárias. Não se privilegiou a transmissão de informações sobre o sistema literário nem se investiu na aquisição de nomenclaturas ou espectros conceituais. A pouca terminologia especializada que comparecia em nossas atividades remetia a conceitos muito simples, ligados a uma descrição técnica do texto poético: verso, prosa, ritmo, rima, imagem etc. Os professores/estudantes indígenas costumam reagir com interesse e sensibilidade à abordagem de textualidades poéticas, expressivas e criativas. Na escola branca, ao contrário, uma deficiência pedagógica pertinaz (muito mais do que o alto consumo de histórias em quadrinhos ou programas de televisão, aos quais freqüentemente se imputou a culpa pelo desapego dos alunos à leitura) é capaz de criar nos estudantes certa resistência a textos que consideram difíceis ou chatos na mesma medida em que são percebidos como literários. Muitos professores atualmente tentam contornar o problema trabalhando, por exemplo, com letras de canções. Mas também textos sem dimensão melódica podem, mediante um adequado tratamento pedagógico, ganhar voz, incrementando as possibilidades de uma recepção ricamente intelectiva, emocionada e/ ou lúdica (cf. MEDEIROS, 2001: passim). É fundamental explorar pedagogicamente o prazer do texto, mesmo porque, como lembra Paul Zumthor (2000: 29), para o leitor, esse prazer constitui o critério principal, muitas vezes o único, de poeticidade (literariedade). Importa não bacharelizar a literatura, não convertê-la em fator de status social, nem solenizá-la como ícone histórico. Se a his- 103

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA tória literária tem-se mantido como a forma predominante de ensinar literatura, isso se deve em boa parte à dificuldade, experimentada inclusive por muitos docentes, de promover e explorar a riqueza das performances receptivas, estabelecendo com os textos uma relação mais íntima, de alma e corpo presentes. A experiência que tenho de trabalho com professores indígenas aponta boas condições para praticarmos esse tipo de abordagem, descartando qualquer protocolo de espírito museológico. Toda literatura que vale a pena é viva e contemporânea, assim como um canto ritual, haja ele surgido num tempo imemorial entre ancestrais humanos e espíritos da natureza, tem de ser vivo e atual para poder funcionar e significar. Em boa medida, a conduta pedagógica assim sugerida implica pôr em cheque a noção tradicional e o próprio termo literatura, historicamente vinculados a ideologias de caráter elitista e a poéticas de feição canônica. Além de tentar adequar-se às necessidades e peculiaridades do corpo discente do projeto, essa postura participa de uma problematização do campo literário que vem sendo levada a cabo nas últimas décadas, estimulada por diferentes fatores, alguns dos quais me contento em mencionar de passagem: as diluições pós-modernas de circunscrições artísticas e estatutos semânticos; a expansão e evolução da etnopoética; a constituição de campos textuais regidos pela nova oralidade mediatizada de que fala Paul Zumthor (1997:28); o desenvolvimento do estudo e da compreensão de muitas formas de literatura vocal; o interesse pela performance como elemento fundamental em vários modos de comunicação estética; os condicionamentos e reações da produção literária em face dos imperativos do mercado e da indústria cultural. Segundo apontava Zumthor em 1990, grande parte do intelecto universitário padeceria do que ele chamou de preconceito literário e estaria assim precisando fazer um esforço de desalienação crítica. Para isso, é necessário romper os limites da própria literatura, esta noção historicamente demarcada, de pertinência limitada no espaço e no tempo, que desde o século XVII se refere a um domínio 104

LITERATURA E EDUCAÇÃO INDÍGENA restrito da cultura ocidental. Zumthor faz questão de distingui-la claramente da idéia de poesia, que é [para ele] a de uma arte da linguagem humana, independente de seus modos de concretização e fundamentada nas estruturas antropológicas mais profundas (ZUMTHOR, 2000:15). Essa perspectiva abre um largo caminho de articulação entre as variadas experiências (indígenas e não indígenas) de arte verbal presentes no ambiente intercultural dos programas de educação indígena. O território em comum é balizado por uma noção tão simples quanto seminal: A poesia (se a entendemos como o que há de permanente no fenômeno que, para nós, tomou a forma da literatura ) repousa em última análise sobre um fato de ritualização da linguagem (id. ibid.: 36). O redimensionamento do campo poético/literário no sentido de torná-lo mais inclusivo não acarreta afrouxamento ou rarefação da nossa percepção estética, mas sim a possibilidade de garantir conexões dessa percepção, e do pensamento crítico que lhe é correlato, com formas diferenciais e não-hegemônicas de arte verbal: da vanguarda mais radical e cosmopolita aos discursos mais populares ou tradicionais. Nesse quadro, destaca-se o resgate de numerosas modalidades de vocalidade poética, cuja importância veio se afirmando nas últimas décadas, inclusive no campo da literatura escrita. Uma das questões que se colocam para o ensino de literatura na atualidade, em qualquer contexto escolar mas, particularmente na escola indígena e na formação de seus professores, há de ser esta: como criar as condições para fazer uso e tirar partido, no trato pedagógico com formas poéticas de discurso, da poderosa energia comunicativa da voz? Em contraposição ao grafocentrismo que determinou durante os últimos séculos a circunscrição social e estética da literatura e do seu ensino, é o medium oral ou vocal que melhor acolhe e estimula a performance estética de um discurso; é nele que podem associar-se as formas mais ancestrais e mais contemporâneas de comunicação poética. No caso da educação indígena, a exploração áudio-vocal do poema, por si só uma prática estimulante e sensibilizadora de qualquer estudo de poesia, é um procedimento 105

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA que nos aproxima e nos capacita a tirar melhor proveito da experiência de arte verbal já trazida pelos professores-cursistas. Ele se inscreve também no quadro geral de valorização da cultura oral que tem sido sublinhado e encarecido no âmbito das outras disciplinas, como apontou a profª Susana M. G. Guimarães (2002: 31) a propósito das Ciências Sociais no 3 Grau Indígena: Temos que nos recordar que as sociedades indígenas, nos dias de hoje, ainda têm na oralidade um forte mecanismo de reprodução social. O estudo da força e dinamismo dessa forma de reprodução sociocultural ainda é pouco desenvolvido. [...] A pedagogia crítica indígena deve pesquisar a oralidade, seu valor e uso como instrumento pedagógico. Evidentemente, o estudo de literatura também é uma ferramenta eficaz para desenvolver as habilidades relativas ao consumo e produção de textos escritos, e além disso uma atividade fundamental para o aprimoramento da expressão e compreensão em língua portuguesa. Mas estes objetivos não se devem sobrepor a outro, mais importante, que é o de contribuir para o conhecimento e revitalização das línguas e culturas dos povos indígenas. Na presente situação dos cursos de habilitação docente, que atendem a um público muito diversificado (no caso do 3 Grau Indígena são 36 etnias e 28 línguas nativas), o português é forçosamente a língua de comunicação geral e de todos os textos trabalhados em classe, excluindo-se portanto a abordagem dos repertórios originais em línguas indígenas. Isso reforça a necessidade de capacitar os professores-cursistas a desenvolverem, individualmente e em cooperação com seus colegas da mesma etnia ou grupo lingüístico, uma compreensão mais completa e aparelhada de suas próprias bagagens e sistemas poéticos. Um objetivo primordial do estudo de Literatura na licenciatura indígena será portanto estimular e instrumentalizar tanto a pesquisa, registro e revitalização das tradições e artes verbais orais quanto o desenvolvimento do conhecimento reflexivo sobre esses repertórios. Assim estaremos correspondendo a uma premissa importante da atuação de muitos programas de formação de 106

LITERATURA E EDUCAÇÃO INDÍGENA professores indígenas na atualidade, que é assegurar os meios para que eles cumpram, além da função pedagógica, o seu papel de intelectuais orgânicos, pesquisadores e auto-etnógrafos. A multiplicação e elaboração político-pedagógica dos programas de educação indígena diferenciada, específica e bilíngüe no Brasil já vem produzindo resultados consistentes nessa área, estimulando e instrumentalizando as atividades de recuperação e pesquisa dos vários repertórios de literatura oral nas línguas maternas, inclusive o registro e observação dos cantos indígenas, domínio de expressão poético-cultural que tem sido muitíssimo negligenciado pelos pesquisadores brancos, provavelmente devido às dificuldades de documentação e tradução. Essas tarefas, bem como a reflexão sobre o valor de representação da subjetividade indígena, em seus aspectos sociais e/ou individuais, que possui o texto poético, cabem prioritariamente aos próprios intelectuais/professores indígenas. Quanto aos objetivos escolares, ainda é cedo para avaliar os níveis e modalidades de aproveitamento pedagógico, nas aldeias, da formação em Literatura recebida pelos professores indígenas. Mas já é possível notar, a partir do que foi relatado, por exemplo, pelos professores da Comissão Pró-Índio com os quais trabalhei, que seus resultados não repercutem apenas na área de Língua Portuguesa. Os conteúdos e competências elaborados nas aulas de Literatura sofreram transformações operacionais bastante livres, criativas e mesmo inesperadas, revertendo-se para procedimentos de comunicação oral (dramatizações etc.), muitas vezes realizados nas línguas maternas. Nas escolas da floresta, o texto escrito é freqüentemente tomado como referência a partir da qual se retorna ou se avança com vigor e interesse renovados para usos comunitários e interativos da linguagem. A produção e leitura de textos poéticos escritos em Português estimula uma fruição, reflexão e elaboração crítica valorizadoras da própria existência cultural identitária dos diversos povos indígenas, que passam a projetar também na escrita aspectos históricos e 107

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA criativos de sua visão de mundo, práticas estéticas, tradições e expectativas. As conexões entre literatura e cultura, detectadas nos textos indígenas, nos textos brancos, e nas aproximações e confrontos entre eles, são trabalhadas como estímulo e parte integrante do processo de auto-construção, preservação, revitalização e promoção da cultura identitária. Também é certo que esse tipo de trabalho vem encaminhando a produção, em línguas maternas, em português ou em edições bilíngües, de um acervo cada vez mais amplo e acessível de literaturas indígenas. E não há dúvidas de que a comunicação intercultural aí possibilitada e desenvolvida é algo de extremamente importante, útil e agradável para todos os que, índios e não índios, compartilham o desejo e a necessidade de autoconhecimento, eqüidade e cooperação em nossa sociedade multifacetada. Bibliografia FRANCHETTO, Bruna; MAIA, Marcus; SANDALO, Filomena; STORTO, Luciana R. A construção do conhecimento lingüístico: do saber do falante à pesquisa. Cadernos de educação escolar indígena - 3 grau indígena. Barra do Bugres: Unemat, v. 1, n. 1, 2002. GUIMARÃES, Susana Martelletti Grillo. Ciências Sociais no Projeto 3 Grau Indígena: focos principais. Cadernos de educação escolar indígena - 3 grau indígena. Barra do Bugres: Unemat, v. 1, n. 1, 2002. MEDEIROS, Fernanda Teixeira de. Pipoca moderna: uma lição estudando canções e devolvendo a voz ao poema. In: MATOS, Cláudia Neiva de; TRAVASSOS, Elizabeth; MEDEIROS, Fernanda Teixeira de (org.). Ao encontro da palavra cantada: poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001. ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997.. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Educ, 2000. 108