A Era dos Mosquitos Transgênicos Depois das plantas geneticamente modificadas, a ciência dá o passo seguinte - e cria um animal transgênico. Seus inventores querem liberá-lo no Brasil. Será que isso é uma boa ideia? O OX513, um mosquito geneticamente modificado que foi criado pelo homem com a missão de extinguir o Aedes aegypti e acabar com a epidemia de dengue. Depois de criar versões transgênicas de plantas como o milho e a soja, agora a humanidade modifica o DNA de um bicho e se prepara para liberá-lo na natureza. Aqui mesmo no Brasil - onde fica a primeira fábrica de mosquitos transgênicos do mundo. Entra em cena o OX513A, que foi criado pela Universidade de Oxford, na Inglaterra. Ele é idêntico ao Aedes aegypti - exceto por dois genes modificados, colocados pelo homem. Um deles faz as larvas do mosquito brilharem sob uma luz especial (para que elas possam ser identificadas pelos cientistas). O outro é uma espécie de bomba-relógio, que mata os filhotes do mosquito. A ideia é que ele seja solto na natureza, se reproduza com as fêmeas de Aedes e tenha filhotes defeituosos - que morrem muito rápido, antes de chegar à idade adulta, e por isso não conseguem se reproduzir. Com o tempo, esse processo vai reduzindo a população da espécie, até extingui-la (veja no infográfico abaixo como o processo funciona). Recentemente, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, um órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia, aprovou o mosquito. E o Brasil se tornou o primeiro país do mundo a permitir a produção em grande escala do OX513A - que agora só depende de uma última liberação da Anvisa. A Oxitec, empresa criada pela Universidade de Oxford para explorar a tecnologia, acredita que isso vai ocorrer. Tanto que acaba de inaugurar uma fábrica em Campinas para produzir o mosquito. O OX513A já foi utilizado em testes na Malásia, nas Ilhas Cayman (no Caribe) e em duas cidades brasileiras: Jacobina e Juazeiro, ambas na Bahia. Deu certo. Em Juazeiro, a população de Aedes aegypti caiu 94% após alguns meses de tratamento com os mosquitos transgênicos. Em Jacobina, 92%. As outras formas de combate, como mutirões de limpeza, campanhas educativas e visitas de agentes de saúde, continuaram sendo realizadas. "Nós não paramos nenhuma ação de controle. Adicionamos mais uma técnica", diz a bióloga Margareth Capurro, da USP, coordenadora técnica das experiências. Há indícios de que o mosquito transgênico funciona. Mas ele também tem seu lado polêmico.* (* Texto adaptado da seção de Ciência A Era dos Mosquitos Transgênicos, Revista Superinteressante, Edição 337, Setembro de 2014, pág. 60-65)
Há quatro anos, quando os mosquitos da Oxitec chegaram à Malásia para uma das primeiras rodadas de teste, surgiu uma preocupação. Quando um organismo geneticamente modificado é introduzido na natureza, seja eles, uma planta ou um animal, é complicado prever tudo o que pode acontecer - e muito difícil contê-lo se alguma coisa der errado. Em tese, os mosquitos transgênicos não têm como se espalhar. Três a quatro dias depois de serem soltos, e de fazer sexo com uma fêmea, eles simplesmente morrem. Seus filhotes não conseguem crescer, e também morrem. E a história acaba aí. Mas, e se o mosquito OX513A sofresse uma mutação, e se tornasse imune ao gene letal? Afinal, é assim que a evolução funciona. Mutações são inevitáveis. "Todas as espécies agem para burlar os fatores que tentam exterminá-las", afirma o biólogo Carlos Andrade, da Unicamp. Se o inseto transgênico conseguisse vencer o gene letal, ele poderia se reproduzir livremente - e se tornaria incontrolável. Foi essa a preocupação do grupo ambientalista inglês EcoNexus, que enviou uma carta às autoridades da Malásia. "Os [insetos] transgênicos podem não ser completamente erradicados do ecossistema, com consequências perigosas." A Oxitec diz que não há risco. Ela estima que até 5% dos filhotes transgênicos poderão sobreviver ao gene letal, e chegar à idade adulta. Mas eles serão menores e mais fracos do que os mosquitos "selvagens", e por isso não conseguirão se reproduzir. Mesmo se conseguirem, em tese não terão nenhuma característica que os torne mais perigosos que o Aedes comum. Além disso, como eles são criados em laboratório, seu DNA pode ser monitorado. "Os dois genes [que foram] inseridos são muito estáveis. A linhagem OX513A foi criada em 2002, e até agora teve mais de cem gerações em laboratório, sem nenhuma mudança nos genes inseridos", afirmou a empresa em nota enviada à SUPER. Os mosquitos machos se alimentam de frutas, e por isso não picam. Quem pica é a fêmea, que precisa de sangue humano para nutrir seus ovinhos. É ela que transmite a dengue. Por isso, as fêmeas de OX513A são separadas no próprio laboratório. Algumas são mantidas em cativeiro, para reproduzir a espécie, e as demais são mortas (veja no infográfico). Apenas os machos, que não picam, são liberados na natureza. O processo de separação não é perfeito. Até 0,2% dos mosquitos liberados são fêmeas, que podem picar seres humanos. Não é uma quantidade insignificante. A fábrica da Oxitec em Campinas tem capacidade para produzir 500 mil mosquitos machos por semana, podendo ser ampliada para 2 milhões. Isso significa que, devido à margem de erro, mil a 4 mil fêmeas seriam liberadas a cada semana. E elas poderiam transmitir dengue. A Oxitec questiona essa possibilidade. "Para transmitir dengue, a fêmea primeiro tem de pegar dengue", diz Sofia Pinto, supervisora de produção dos mosquitos. O ciclo da dengue, em que o mosquito pega o vírus de uma pessoa e o transmite para outra, leva cerca de dez dias. Um estudo 1 revelou que em
condições ideais, de laboratório, as fêmeas de OX513A podem alcançar 16 dias de vida. Mas, segundo a Oxitec, isso não ocorre na natureza - onde os insetos transgênicos não sobrevivem mais de quatro dias. Ou seja: em tese, as fêmeas liberadas acidentalmente não teriam tempo de espalhar a doença. Apesar de todos os poréns científicos, a crítica mais forte ao inseto transgênico está relacionada a algo trivial: a quantidade de mosquitos necessária. O OX513A é fisicamente mais fraco do que o mosquito natural, e por isso tem que ganhar em número. Para que a técnica dê certo, e o transgênico consiga acasalar com as fêmeas (para gerar descendentes inférteis e acabar com a espécie), é preciso liberar uma quantidade enorme dele: dez mosquitos transgênicos para cada mosquito selvagem. Na prática isso significa que, para tratar uma área bem pequena, com apenas 10 mil habitantes, seria preciso liberar 2 milhões de mosquitos por semana durante a fase inicial de tratamento, que dura de quatro a seis meses. Isso é alvo de críticas de alguns especialistas. "Liberar milhões de mosquitos numa área de alguns quarteirões urbanos é insano. É forçar para dar certo", diz o biólogo Carlos Fernando Andrade, da Unicamp. "Para tratar 1 milhão de pessoas, 10 milhões de pessoas, precisaríamos criar muitas fábricas", admite Glen Slade, da Oxitec. Ou seja: a quantidade necessária de mosquitos OX513A para erradicar a dengue, num país do tamanho do Brasil, pode acabar sendo inviavelmente grande. "Criar mosquito para depois matar mosquito não é nada inteligente. E, no caso de se usar transgênicos, é caro", afirma Andrade. A Oxitec estima que, para tratar uma cidade pequena, de 50 mil pessoas, o custo fique entre R$ 2 milhões e R$ 5 milhões no primeiro ano (em seguida, R$ 1 milhão anual para manutenção). "Com boas práticas domésticas e do poder público, evitando água parada, não se cria o vetor [o Aedes aegypti]", diz Andrade. O OX513A pode acabar se mostrando uma solução sofisticada demais para um problema que pode ser atacado com medidas mais simples. Talvez a vacina contra o vírus da dengue (leia no texto à esquerda) acabe funcionando e torne desnecessário o uso de mosquitos transgênicos. Ou, quem sabe, o inseto geneticamente modificado venha a ser liberado em grande volume - e de fato consiga exterminar o Aedes aegypti. E a humanidade terá conseguido extinguir uma espécie usando outra espécie - que ela mesma criou.