Palavras Chaves: Dança; Política Cultural; Fomento; Arte Experimental



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Transcrição:

Manobras de distensão: vestígios da atuação de grupos e da Oficina Nacional de Dança Contemporânea na organização político-cultural da dança no Brasil Maria Sofia Villas-Bôas Guimarães 1 Resumo: Compreendemos como manobras de distensão a participação da sociedade civil nos processos para inserção da dança, em sua diversidade, no âmbito das políticas públicas para a cultura no Brasil, já que estes processos se apresentam como nódulos estruturais que omitiram historicamente a dança. Neste âmbito, destacamos, entre finais dos anos 70 e início dos 80, as ações de grupos independentes e da Universidade Federal da Bahia, através da Oficina Nacional de Dança Contemporânea. O texto aqui apresentado se constitui num garimpo de discursos e textos de profissionais, da imprensa e de instituições, a partir dos quais levantamos vestígios de ações que se voltaram para legitimar a dança em seu formato emergente e experimental e garantir a permanência de grupos e fazedores 2. Palavras Chaves: Dança; Política Cultural; Fomento; Arte Experimental 1 Maria Sofia Villas-Bôas Guimarães é doutora em Artes Cênicas, pesquisadora colaboradora do Memorial da Escola de Dança da UFBA e integra o grupo de pesquisa LaPac Memória e Temporalidade CNP/UFBA. Atualmente é delegada suplente, representando o Nordeste, no Colegiado de Dança do CNPC. 2 Este texto, com algumas adaptações, integra a tese de Maria Sofia VB Guimarães intitulada O Meme Dança Moderna na Bahia: processos de transmissão cultural na formação e consolidação da Escola de Dança da UFBA, defendida como requisito para obtenção do grau de doutor pelo Programa de Pós- Graduação em Artes Cênicas da UFBA, Salvador, 2010.

no Brasil Um contexto geral do tempo-espaço do qual falamos e das políticas culturais No âmbito da dança no Brasil, entre os anos de 77 e 82, havia a Oficina Nacional de Dança Contemporânea (1980-1997). Originada no ambiente do Festival de Arte* da Bahia a Oficina e o Festival eram eventos articulados, criados como projetos de extensão dos cursos de Música e de Dança da Universidade Federal da Bahia. Busscavam articular arte e mercado fomentando, justamente, a participação de trabalhos e discussões que tratassem da natureza emergente, independente e contemporânea da arte, geralmente relegada pelo consumo de massa. Questionavam o sistema que favorecia o consumo de uma arte já estabelecida, de fácil assimilação, com mercado regido por produtores culturais, em sua grande maioria, interessados mais no capital econômico da arte do que em seu contexto simbólico ou em seu papel político. Para Ernest Widmer, então Diretor da Escola de Música e Artes Cênicas e Coordenador do Festival de Arte* da Bahia, de onde emergiu a Oficina Nacional de Dança Contemporânea, a Universidade Federal da Bahia cumpria a função de romper com o duro tecido, imposto pela ação dos programadores culturais no país que ignoravam a efervescência e a necessidade de uma arte experimental, em plena ebulição. [...] ao pensar num festival como uma tribuna que se oferece para que os artistas digam o que tem a dizer, hoje, o que queremos é inverter as prioridades dos programadores culturais em geral. Mais que mostrar o consagrado, o que buscamos é o emergente, é o fomento da arte contemporânea. (Um espaço para arte aqui e agora. s/n. Correio da Bahia, 2º Caderno, 01 de julho de 1980) Por sua vez, os objetivos da Oficina Nacional de Dança Contemporânea, idealizada e coordenada por Dulce Aquino, então Diretora da Escola de Dança da UFBA, se debruçavam sobre a dança emergente compreendendo a importância de seus processos de criação e as trocas entre artistas e diferentes fazeres da dança. Pretendia

em sua execução [...] estimular grupos que se formam em vários Estados (do Brasil) 3, que têm dificuldade de produzir e circular, para aqui em Salvador se apresentarem, num encontro onde não apenas o produto final importa, mas todo o processo de criação (Aquino, 1980, p.1) 4. O papel político praticado pela Oficina Nacional de Dança e pelo Festival de Arte* da Bahia, no contexto das ações de alargamento do fomento à dança, era atribuído pelos seus coordenadores, à posição crítica da universidade que abriu espaços que outros órgãos não conseguiram abrir, possibilitando um trabalho sério, que não se submete à simples satisfação de uma clientela (Idem, 1980, p, um). Neste período, os discursos de Aquino e Widmer questionavam a atitude vigente nos setores públicos para fomento das artes no Brasil. Os órgãos culturais, em geral, não possuem uma política de apoio à circulação e à produção dos bens culturais sem que se adote uma atitude paternalista com relação aos grupos. E os grupos produtores de arte estão sempre numa relação próxima à de mendigos pelos corredores das ante-salas oficiais. (Ibidem, 1980, p, um). Para entender melhor onde se localizam estes discursos nos reportamos a algumas iniciativas, ao longo da história do Brasil, que se detém para a efetivação de uma política cultural nacional. E aqui nos remetemos a elas como forma de compreender a dança neste contexto. Os estudos sobre a relação entre o Estado e Cultura no Brasil apontam para os anos 30, como a primeira intervenção estatal no campo da política cultural no governo de Getúlio Vargas (1930-1945) tendo o Ministro Gustavo Capanema (1934 a 1945) a frente da pasta de Educação e Saúde. Ao contrário do período imperial e da primeira República, quando a cultura era tratada como acessória, a era Vargas foi marcada pela atenção do Estado à atividade 3 Parêntese nosso. 4 Festival de Arte da Bahia. Dulce Aquino: produzindo com amor sempre há recompensa. s/n. Correio da Bahia, terça feira, 01 de julho de 1980, 2 Caderno, p, 1.

cultural no Brasil. Segundo Alberto Freire Nascimento (2007), nesse período, são criados órgãos culturais importantes como o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), o Instituto Nacional do Livro (INL), o Serviço Nacional do Teatro (SNT), o Instituto Nacional da Música (INM) e o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE). No Brasil, entre 1945 e 1964, o grande desenvolvimento na área cultural se deu no campo da iniciativa privada (Calabre, 2007). O Estado não promoveu, nesse período, ações diretas de grande vulto no campo da cultura. Em 1953, entretanto, o Ministério da Educação e Saúde foi desmembrado, surgindo os Ministérios da Saúde (MS) e o da Educação e Cultura (MEC). Este é o momento do crescimento e da consolidação dos meios de comunicação de massa o rádio e a televisão. Nos anos 50, no campo da produção artística em geral, surgiram grupos que propunham a utilização de novas linguagens. O Cinema Novo, a Bossa Nova, o Grupo Oficina, os trabalhos de Lígia Clarck e Hélio Oiticica, por exemplo, se incluem neste contexto. É também nos anos 50 que a Dança Moderna emerge mais significativamente no Brasil com a criação de Grupos de dança no Rio, e em São Paulo e a criação da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (1956). Ainda segundo CALABRE (2007), o período que vai de meados dos anos de 1960 até o final da década de 1970 deve ser considerado como um momento privilegiado no campo da ação do governo federal sobre a cultura. Para Gabriel Cohn, a tentativa de elaboração de uma política nacional de cultura, teve no início dos anos 70, um objetivo bem definido: "a codificação do controle sobre o processo cultural" (COHN, 1984, p. 88). Controle visto como necessário por um regime que se encontrava em desvantagem nesta área. Para isso, as Diretrizes para uma Política Cultural de 1973, deram à cultura uma ampla caracterização, subordinando-a a segurança e ao desenvolvimento. Em 1976, a Política Nacional de Cultura apresentou os mesmos fundamentos das Diretrizes. Reflete a "combinação entre uma concepção essencialista e uma concepção instrumental". Somente a "'plena realização do homem brasileiro como pessoa, levará ao fortalecimento e a consolidação da "nacionalidade" (COHN, 1984, p. 92). A postura antielitista da Política pretende salvaguardar, dentro do espírito humanista, "'o respeito à espontaneidade da criação popular" (COHN, 1984, p. 93).

Segundo Miceli a preocupação com o patrimônio histórico e artístico define a diretriz básica da Política, cujo objetivo é fazer emergir o "caracteristicamente nosso", triar "traços culturais 'perversos"', e "suprir de conteúdos e significações da 'alma brasileira' as metas de segurança e desenvolvimento" (MICELI, 1984, p. 106). O binômio segurança e desenvolvimento ainda está presente na gestão seguinte de Eduardo Portella, no governo do General João Baptista de Oliveira Figueiredo (1979 1985). Contudo, há claras resistências à vertente "patrimonial. Nesse período, o "nacional" dá lugar ao "regional" e a valorização do "local". Pontos para a vertente "executiva" do Ministério, que agora privilegia a "cultura da sobrevivência" e da "subsistência" (MICELI, 1984, p. 108-109). Segundo o Documento Diretrizes para uma política nacional de cultura de 1973 (Apud, Calabre 2006) a política nacional de cultura deveria estar pautada sobre três objetivos básicos: a preservação do patrimônio cultural, o incentivo à criatividade e a difusão das criações e manifestações culturais. A democratização do acesso à cultura se faria através da política de difusão. Este documento enumera ainda dez medidas básicas a serem implementadas para viabilizar a execução de uma política nacional de cultura: 1 Criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Cultura; 2 Criação do Serviço Nacional de Música; 3 Criação do Serviço Nacional de Artes Plásticas; 4- Criação do Serviço Nacional de Folclore; 5 - Levantamento e cadastramento dos bens culturais, cuja defesa seja obrigação do poder público; 6 - Estímulo ao funcionamento e à criação dos conselhos de cultura; 7 Criação das casas de cultura; 8 Implantação de um sistema de colaboração entre as universidades federais, estaduais e privadas, em seus diversos institutos como estímulo aos estudantes para o estudo e conhecimento da vida cultural do país; 9 Recuperação e restauração de bens privados tombados; 10 Financiamento de projetos de natureza cultural. Abrigados pela estrutura burocrática e administrativa do Ministério da Educação e Cultura alguns órgãos culturais importantes foram criados na gestão do Ministro Ney

Braga, durante o governo Geisel (1974-1978), no regime militar. Dentre eles tem-se a Empresa Brasileira de Filmes EMBRAFILME, em 1969, a redefinição do papel do SPHAN, passando a chamar-se IPHAN, em 1970, o Departamento de Assuntos Culturais, do MEC, o Conselho Nacional de Direito Autoral e o Centro Nacional de Referência Cultural, em 1973, a Fundação Nacional das Artes FUNARTE, em 1976, o Conselho Nacional de Cinema CONCINE, em 1976, e a Secretaria de Assuntos Culturais dentro do próprio MEC. A Fundação Nacional de Arte (Funarte), criada pela Lei 6.312, de 16 de dezembro de 1975, como órgão da então Secretaria de Cultura do Ministério da Educação e Cultura, tinha como objetivo promover, incentivar e amparar, em todo o território nacional, a prática, o desenvolvimento e a difusão de atividades artísticas, sempre resguardando a liberdade de criação. A Dança, como pode se observar, não é diretamente referenciada, tanto nas dez medidas básicas consideradas para a implantação do plano federal para acultura, quanto nos órgãos criados para tal execução. Era preciso, então, que se exigisse a sua inserção. E mais que isso: numa política patrimonialista era necessário lutar por uma arte emergente. Anos 70 Em meados dos anos 70, a situação da dança no contexto nacional das políticas públicas para as artes, que os discursos de Dulce Aquino e Ernest Widmer se referiam, aparece no movimento de mobilização de artistas e grupos independentes do Rio de Janeiro e de São Paulo 5 reivindicando da Funarte, criada recentemente (1975), ações de fomento específicas para a dança. O texto Intitulado Serviço Nacional do Teatro no Campo da Dança 6, produzido por este órgão e distribuído durante o 1º Ciclo de Dança Contemporânea 5 Embora os documentos garimpados não permitam a identificação de todos esses nomes é possível observar a participação de Rainer Vianna do Grupo Teatro do Movimento através de entrevista concedida ao Jornal da Bahia (8 de julho, 1979) durante sua participação no II Concurso Nacional de Dança Contemporânea (1979). 6 Cópia desse documento pode ser encontrado no CEDOC/Funarte.

(1978) 7, uma espécie de prestação de contas do SNT/Funarte a sociedade, revela a relação precária que os setores públicos estatais estabeleceram historicamente com a dança. Observa-se que somente em 1976, pela primeira vez no Brasil, através do Serviço Nacional do Teatro - SNT, a dança, foi reconhecida, em aspectos da sua diversidade, no âmbito dos processos organizados e incentivos públicos para as Artes, embora como uma espécie de apêndice do órgão fomentador do Teatro, o SNT. Em 1976, seguindo a orientação do Ministro Ney Braga, o Serviço Nacional de Teatro passou a incluir na sua esfera de atribuições a arte da dança completando uma visão e uma filosofia já estabelecida para o Teatro. Foi necessário definir uma linha de atuação, levando em conta a problemática específica da dança no Brasil, integrando-a efetiva e harmonicamente ao nosso contexto cultural. Foi adotado o termo dança como genérico e abrangente a todas as manifestações, tanto do balé clássico, como da dança moderna, contemporânea ou étnica. (Jornal de Santa Catarina. Blumenau/Santa Catarina, 26 de setembro de 1978) O documento Serviço Nacional do Teatro no Campo da Dança, produzido durante a gestão de Orlando Miranda frente ao SNT, descrevia o que o estado pretendia para atingir o máximo de desenvolvimento dessa arte em nosso país. Três linhas de atuação norteavam as ações do SNT: (1) ajuda financeira à atividade profissional; (2) orientação e recursos à formação de artistas e técnicos; (3) ampliar a faixa de público voltado para a dança, através de atividades específicas. Em relação à ampliação do público para dança o SNT focava na oferta de novos espaços onde a dança pudesse estabelecer contato mais direto e mais intenso com o público e a realização freqüente de espetáculos de dança. Justificava os incentivos ao Circo, através do Projeto permanente do Circo no Rio de janeiro, como um desses espaços alternativos para os espetáculos de dança. Ainda planejava conseguir casas de espetáculos para a realização de temporadas regulares de dança. No que se referia à atividade profissional O SNT pretendia desenvolver o espírito empresarial dentro da área. Dentro desse objetivo foram lançados os Editais 7 Realizado no Rio de Janeiro, no Teatro Experimental Cacilda Becker., entre três de julho a 28 de agosto de 1978,

regulamentando o patrocínio de montagem, em âmbito nacional concedendo recursos financeiros para 10 espetáculos que deveriam se expandir em número, a partir da demanda. Reconhecia ainda na importância das manifestações de caráter experimental, cuja contribuição é indispensável ao desenvolvimento da dança. O apoio ao 1º Ciclo de Dança é justificado nesta ação. Uma ação patrimonialista era também garantida através do Projeto Memória da Dança que deveria iniciar o registro de pessoas que contribuíram de forma relevante para o desenvolvimento da arte da dança neste país. Os problemas de infra-estrutura também eram focados com a subvenção à indústria de sapatilhas, buscando melhorar a qualidade do produto nacional. Em termos gerais essa espécie de programa traçava diferentes linhas de atuação e inaugurava um espaço de legitimação da Dança no interior do traçado de uma política cultural em organização. Sua elaboração parece ter tido a participação de diferentes segmentos da dança, revelando atuação em interesses diversos, inclusive da dança emergente, experimental. A inclusão do 1º Ciclo de Dança Contemporânea, e o apoio ao Concurso e a Oficina Nacional de Dança Contemporânea são exemplos. Embora, segundo Dulce Aquino 8, inicialmente os recursos destinados a estes últimos eventos tenham vindo mais das dez medidas básicas a serem implantadas para viabilizar a execução de uma política nacional de cultura que incluía a Implantação de um sistema de colaboração entre as universidades federais, estaduais e privadas, em seus diversos institutos como estímulo aos estudantes para o estudo e conhecimento da vida cultural do país e o financiamento de atividades culturais nas universidades. Pôde-se observar, entretanto, que entre a orientação do Ministro Ney Braga e sua concreta efetivação houve um descompasso de tempo em que as negociações entre dança e Estado nem sempre obtiveram êxito. Na matéria intitulada 1º Ciclo de Dança Contemporânea no Rio de Janeiro: Estímulo Oportuno, de Suzana Braga para o Jornal do Brasil, de 29 de julho de 1978, ela menciona a recusa do Serviço Nacional do Teatro 8 Em entrevista a esta autora em dezembro de 2005.

SNT em patrocinar esse evento no ano anterior (1977), na PUC - uma reivindicação de dançarinos e coreógrafos cariocas e paulistas. Na mesma reportagem, Suzana Braga (1978) apresenta a situação precária de incentivos públicos para a dança, na época, e as mudanças que se seguem. O novo alento ocorre numa hora em que bailarinos, coreógrafos e diretores já se sentiam fracos, inteiramente incapazes de reagir, sem vontade. Ocorre num momento em que a falta de dinheiro para produzir trabalhos apresentava-se como uma realidade inquestionável, as sedes dos grupos e seus dirigentes já não tinham mais suporte para ocupação e trabalho cotidiano de suas equipes (Ibidem, 1978, s/n). A condição de amadorismo desses grupos, apontada pela crítica, e presente nos discursos de seus integrantes 9, era fato comum na grande maioria daqueles que participavam do evento na Bahia no período entre 1977 e 1982. Além de grupos baianos, podemos constatar a presença de grupos originários dos seguintes estados e regiões: Alagoas, Ceará e Pernambuco (Nordeste); Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo (Sudeste); Paraná e Santa Catarina (Sul) e do Distrito Federal (Centro-Oeste). A grande maioria desses grupos, com propostas artístico-estéticas bastante diversificadas, apresentava traços comuns quanto à forma de sobrevivência: (a) não havia remuneração permanente para seus integrantes; (b) as condições para a manutenção dos grupos estavam ancoradas na entrega pessoal de seu elenco e da equipe técnica, movidos pela força do encontro e pelo interesse em fazer dança; (c) produziam com apoios esporádicos provenientes de fontes privadas e públicas. Identifica-se, entretanto, que a seriedade com que esses indivíduos encaravam a produção artística, as horas que disponibilizavam para essa produção, e o esforço desprendido para fazer circular suas obras, se constituía numa dinâmica que tornava possível sua viabilidade, embora na grande maioria, efêmera em sua permanência. Nas entrevistas realizadas para essa pesquisa observou-se, em geral, que os apoios sistemáticos (porém ainda escassos) para o funcionamento desses grupos 9 Ver PORTINARI, Mabel. No Cacilda Becker a dança contemporânea e seus amadores. RJ: Jornal O Globo, 01 de julho de 1978.

emergentes só serão efetivados a partir de 1978-1979 com a criação de editais para dança da Fundação Nacional de Artes - FUNARTE (1975) e de órgãos locais. Também é visível, tanto nas entrevistas como nos documentos visitados, a ação centralizadora do SNT entre Rio de Janeiro e São Paulo ficando o restante do país sem o benefício da maioria dessas ações. Antes disso, em termos dos órgãos oficiais da cultura, prevalecia uma política de balcão nos estados, municípios e federação que favorecia, em sua grande maioria, os grupos mais estáveis e com uma linguagem de fácil assimilação. A exceção se dava aos emergentes com apoios privados e órgãos educacionais. Em Salvador, encontramos três grupos que operavam nesta última categoria sendo estes: (a) o Grupo de Dança Contemporânea GDCA da Universidade Federal da Bahia que, desde 1965, se mantinha, com pequenas verbas provenientes da UFBA, destinadas ao pagamento de seus componentes e de suas montagens; (b) o Grupo Experimental de Dança que contava em parte com apoio da UFBA, através de sessão de espaço para ensaio, pauta; (c) e o Grupo Intercena que, enquanto grupo residente do ICBA, contava com o apoio dessa instituição no que se referia a utilização de espaço para ensaio, sessão de pauta, de recursos técnicos e eventuais recursos humanos para suas montagens. Como já mencionamos, na Bahia, o Concurso Nacional de Dança Contemporânea (1977-1979), assim como sua variante Oficina Nacional de Dança Contemporânea (1980-1997), tinham o apoio da FUNARTE, porém através de uma verba destinada à realização de atividades culturais nas universidades federais, não havendo vestígios de uma ação de fomento específica para a dança. Serviam de descompasso para a realização destes eventos anuais a demorada liberação dos recursos e a quantia que parecia insuficiente comparada a uma demanda crescente da dança apresentada pelos eventos. A instabilidade e a fragilidade desses incentivos são apontadas no depoimento de Dulce Aquino para o Jornal Estado de São Paulo, no encerramento do Concurso Nacional de Dança no ano de 1978. Este ano apesar da FUNARTE ter liberado a verba de 300 mil cruzeiros para sua realização há um mês - prejudicando todo o esquema de divulgação -, o número de trabalhos escritos duplicou, em comparação ao ano passado. Além da Bahia,

participaram representantes de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Brasília e Minas Gerais, num total de 68 inscrições, em grupos ou na categoria de solistas. (AQUINO, Jornal Estado de São Paulo, Dança Contemporânea é premiada, s/d, no ano de 1978. As fontes consultadas reforçam a lacuna existente, em termos nacionais, para apoio de grupos e artistas emergentes da dança. Embora a Funarte estivesse organizando uma espécie de plano piloto para o desenvolvimento das artes no país, de uma forma geral, não havia incentivos públicos ou privados suficientes que assegurassem a continuidade da produção da dança que nesta época encontrava uma espécie de efervescência se comparado aos anos 60 e início dos 70. Paradoxalmente, nessa época (1976-1980), - e provavelmente por isso, se conseguiu a inclusão da Dança no SNT de certa forma independentemente das ações do SNT, uma vez que sua atuação em relação aos incentivos para a dança ainda iniciava. É possível constatar, por exemplo, o aumento da produção artística na dança contemporânea, assim como a existência de um público cujo interesse parecia ampliar-se de forma surpreendente, como nos mostra a matéria de Leila Nobre referente ao primeiro dia de apresentação do 1º Ciclo de Dança no Rio de Janeiro (Jornal do Brasil, oito de julho de 1978). Para quem esperava uma assistência de umas 150 pessoas, especialistas ou interessadíssimas, foi surpreendido por um público enorme 500 pessoas dentro de um teatro cuja lotação é de 180 lugares e muitas outras voltando decepcionadas para casa por não terem conseguido entrar. [...] Existe público para dança no Rio de Janeiro e o público este ano está sendo estimulado para espetáculos, através de alguns patrocínios que proporcionam a oportunidade de encenação de muitos trabalhos. [...] (p, s/n) A afluência de um expressivo público para espetáculos de dança emergentes aparece também na Bahia com um expressivo público lotando a platéia tanto no Concurso Nacional de Dança Contemporânea e da Oficina Nacional de Dança Contemporânea, como podemos ver, na mesma matéria, do Jornal Estado de São Paulo, Dança Contemporânea é premiada, s/d, no ano de 1978. Entre todas as atividades da ampla programação do Festival de Arte Bahia 78, o II Concurso de Dança Contemporânea foi a

que teve maior participação de público. Durante os cincos dias de apresentação dos 19 grupos e 13 solistas finalistas, o Teatro Castro Alves, com seus 1.700 lugares, o acanhado e tradicional Teatro Santo Antônio e a discoteca Maria Phumaça onde os concorrentes mostraram seus trabalhos ficaram lotados e o público teve um verdadeiro comportamento de Festival: aplaudiu, vaiou, torceu, dançou e participou de cada espetáculo (p, s/n). Não podemos deixar de associar o movimento de mobilização dos grupos e artistas da dança no Rio de Janeiro e em São Paulo para reivindicar a realização do 1º Ciclo de Dança no Rio de Janeiro com a experiência da participação desses grupos e artistas na 1º edição do Concurso Nacional de Dança Contemporânea, na Bahia, uma vez que é possível identificar a presença de muitos desses grupos na Bahia em 1977 10. No Rio, há uma aproximação entre os grupos de dança contemporânea, excluídos em quase sua totalidade, dos programas públicos de apoio. É possível observar, nas matérias de jornais consultadas (CABALLERO, 1978; BRAGA, 1978 e PORTINARI, 1978) aspectos do contexto em que da dança emergente na época operava. Ressalta-se, entretanto, que o modo operar de cada dança, em cada tempo, são ocorrências distintas e, em termos evolutivos, apresentam, em sua grande maioria, sistemas operacionais bastantes diversos, em virtude das singularidades adaptativas que ocorrem na relação espaço-temporal. Sendo assim, concluímos que o que seria contemporâneo para os anos 70-80 no Brasil provavelmente não permanece sendo nos anos 2000, embora alguns princípios permaneçam em sua configuração transformada. A arte contemporânea, portanto, pode ser compreendida como arte emergente, pois é sempre propositora de novos paradigmas. Voltando para o contexto político-cultural do país em relação à dança emergente verificamos que a inserção da Dança no Serviço Nacional de Teatro - SNT integrou as mudanças processadas nos órgãos nacionais de cultura, em finais dos 70, tendo Orlando Miranda à frente. Miranda provocou uma articulação nacional com intenção de criar a 10 Entre eles encontramos: Grupo Coringa (RJ); Grupo Teatro do Movimento (RJ); Ruth Rachou (SP); Mara Borba (SP); Grupo Pró-Posição Ballet teatro (SP); Grupo Noves Fora, entre outros.

Fundação Nacional das Artes Cênicas - FUNDACEN 11. Segundo Miranda, em entrevista à Caballero, para o Jornal do Brasil (21 de julho de 1980), buscava-se a transformação do Serviço Nacional de Teatro - SNT num organismo ágil e capaz de atender às necessidades das artes cênicas brasileiras, no momento, numa expansão não acompanhada pelos órgãos oficiais de cultura (p, s/n). O organismo, que seria a futura FUNDACEN, além do Teatro, deveria atender a Dança, o Circo e a Ópera, já incorporados, desde 1976, ao SNT. A formação do órgão se deu numa ampla discussão com a classe. O processo de criação da FUNDACEN foi organizado no período de abertura do regime militar. Neste contexto, Miranda conduziu um processo que conclamava a participação das áreas envolvidas: Circo, Dança, Ópera e Teatro. Segundo ele, buscavase, com essa participação, um modelo que atendesse as necessidades de todos os envolvidos. Nessa condução observa-se a efetivação gradual de um novo contexto no âmbito do apoio oficial para as artes. Inicia-se, muito lentamente, e ainda insuficiente em recursos e métodos, uma pequena abertura para a dança emergente (contemporânea), um sistema totalmente tolhido pelas condições de mercado - favorável aos grupos de renome, e pela ausência de apoio oficial. Para Orlando Miranda, nesse contexto, não deveria prevalecer o interesse deste ou daquele grupo, mas o interesse de toda a área. As quatro áreas teriam autonomia artística e financeira, mas a administração seria centralizada num único setor. O importante em tudo que foi feito é a respeitabilidade, a luta contra a discriminação, as discussões que sempre tivemos com todos e, principalmente, termos acabado com as idas e vindas pelos corredores, os pedidos nos gabinetes aos deputados. Adotamos a política dos editais, oferecemos isso baseado em discussões com a classe. Antigamente, esses oferecimentos ficavam guardados nas gavetas, agora são públicos. (CABALLERO, 1980, p, s/n) Observa-se, nesse processo, a atuação política da Oficina Nacional de Dança Contemporânea, no que se refere ao estímulo para mobilização da classe da dança em 11 Criada pelo decreto de Lei n o 95.675, de 27 de janeiro de 1988 que estabelece seu estatuto e outras providências para seu funcionamento.

prol de uma política cultural que levasse em conta as especificidades da Dança. O evento provocava a classe para se mobilizar frente às questões que emergiam dos novos processos de organização cultural no país. Nos encontros e reuniões da Oficina evidenciamos questões referentes à profissionalização do artista da dança; à iniciativa para a criação de um sindicato próprio da dança e a criação da FUNDACEN. Já regulamentada pela Lei 6.533/78, a Lei do Artista, segundo os participantes dessas reuniões parecia não contemplar a dança contemporânea, uma vez que atendia a estrutura organizacional do balé, que difere, em muitos aspectos, daquela em que a dança contemporânea se organiza. A criação de um sindicato também não atendia os diferentes interesses presente na dança pois não compreendia a diversidades de seus fazeres. Nos encontros na Bahia onde se estabeleceu uma espécie de fórum de dança provisório, os participantes da I Oficina Nacional de Dança (1980), discutiam os encaminhamentos da FUNDACEN. No ano de 1980 deflagraram um movimento nacional reivindicando a autonomia da Dança em relação ao Serviço Nacional do Teatro SNT. Os participantes reivindicavam, na estrutura da FUDACEN, a criação de um instituto específico para a Dança, assim como o Teatro, a Música e as Artes Plásticas, que já contavam com órgãos específicos. Reivindicavam também a descentralização do apoio às artes pelas esferas públicas federais, muito focado no Sudeste e Sul do Brasil. Por isso precisamos de um órgão que apóie, veja nossas necessidades, estude o mercado de trabalho e principalmente, não fique preso ao Sul Maravilha como ocorre em outras áreas, justifica Dulce Aquino em depoimento ao Jornal do Brasil (CABALLERO, 1980). Essa discussão é incorporada ao processo de criação da FUNDACEN, regulamentada com o decreto n o 95.675, de 27 de janeiro de 1988, que estabelece seu estatuto e dá outras providências para seu funcionamento. Na sua estrutura básica (Artº seis) podemos observar a conquista das reivindicações da classe da dança com a inclusão do Instituto de Dança no seu organograma que apresentava ainda seguintes setores: Conselho Deliberativo; Presidência; Conselho de Administração; Instituto de Teatro; Instituto de Ópera; Instituto de Circo; Centro de Estudos; Centro de Técnico;

Diretoria de Planejamento e Administração. Estava assegurada, de alguma maneira, certa autonomia da dança com seu instituto. Com a concretização da Lei do Artista (6.533/78), um trabalho de base foi sendo desenvolvido em vários estados criando sindicatos e associações de classe. Essas questões aparecem na Oficina Nacional de Dança Contemporânea, no Diário do Festival na medida do possível..., uma publicação do evento Oficina, voltado para sua comunicação interna. As discussões giram em torno de quais afinidades teria o sindicato carioca com a dança contemporânea. O desenho traçado pelo discurso político da Oficina Nacional de Dança Contemporânea - ONDC 12, que dialogava na época com contexto nacional da dança contemporânea, nos remete a uma associação com o ambiente da sociologia moderna de Pierre Bourdier (2002), que se refere aos diagnósticos traçados ao sistema da arte, por onde o autor apresenta as amarras, as dependências, as forças e interesses existentes dentro desse complexo sistema artístico que é composto e regido por peças distintas que vão desde artistas que procuram investir em pesquisa de novas linguagens até os programadores culturais que visam apenas o lucro. A oposição entre o comercial e o 'não comercial' encontra-se por toda parte: ela é o princípio gerador da maior parte dos julgamentos que, em matéria de teatro, cinema, pintura, literatura, pretendem estabelecer a fronteira entre o que é arte e o que não o é, ou seja, praticamente entre a arte burguesa e a arte intelectual, entre a arte tradicional e a arte de vanguarda, [...]. Se esta oposição pode ter um conteúdo substancialmente desigual e designar realidades bastante diferentes segundo os campos, no entanto, permanece estruturalmente em campos diferentes e, no mesmo campo, em momentos diferentes. Ela estabelece-se sempre entre a produção restrita e a grande produção (o comercial) [...] (BOURDIER, 2002, p, 103) Parece ilustrativo o texto de Bourdier para a realidade vivenciada pelos artistas da dança emergente. Constata os diversos espaços sociais onde a arte se insere também 12 Para melhor desenvolvimento da escrita desse trabalho observando que o extenso nome do evento Oficina Nacional de Dança Contemporânea, ás vezes interrompe o fluxo do texto adotaremos, em alguns momentos as iniciais do termo ONDC.

diferentemente embora não sejam muitas vezes tão distantes entre si um espaço e outro. Um artista, por exemplo, pode ocupar dois espaços distintos: um como dançarino de uma grande companhia de sucesso, outro como criador de projetos experimentais, e seguem-se outros exemplos desse tipo. Em 2009, falando-se de contemporaneidade também se percebe que os campos se misturam e as fronteiras são diluídas. Breves considerações Se compararmos a realidade que acabamos de apresentar com aquela que, a partir dos anos 2000 do século XXI, a dança vem delineando em termos da organização política da classe, e também, com aquelas que o Estado estabelece com a Cultura, teremos configurações ampliadas, integradas, senão díspares. As manobras de distensão feitas pela classe da dança, exigindo do Estado o alargamento do tecido das ações político-culturais, não somente incluiu a dança neste tecido, mas se estabeleceu como ação conectiva dentro da própria área da dança. Em termos evolutivos (que não atende a idéia de progresso e sim de ocorrências não lineares), podemos inferir que este período, com seus avanços em termos de participação social nas elaborações entre Estado e Cultura, se estabeleceu enquanto circunstância evolutiva criando novos espaços de atuação da dança, novas relações e configurações. Algo semelhante e com afinidades e dialogia ocorre se comparamos as ações inicialmente efetivadas pelo SNT - no campo da dança - com os processos de elaboração e os próprios conteúdos do Plano Nacional de Cultura atual. Entre ações provocadas com a participação de pequenos grupos da dança, hoje, o país, não somente demonstra crescimento no setor produtivo da dança 13, mas incentiva o diálogo com a sociedade civil que, por sua vez, tem se organizado em Fóruns, Movimentos e outros tipos de ações colaborativas que reúne a classe além de suas identificações artísticoestéticas, prática até então mais comum. As diretrizes para a Dança, propostas inicialmente pelo SNT, hoje se transformam nas possibilidades de traçarmos planos 13 Dados relativos a este crescimento podem ser encontrados Em Cultura em números: anuário de estatísticas culturais. Brasília: Minc, 2009.

nacionais, estaduais, municipais e distritais para a dança. Planificação articulada ao Sistema Nacional de Cultura em fase de implantação. Observa-se que as manobras de distensão aqui levantadas, além de se constituírem como indicadoras de um novo processo que emerge no Brasil, tiveram um papel fundamental no que hoje vivemos em termos da organização política da classe. Se sua ação imediata não garantiu a autonomia da dança pretendida, ela organizou os pontos estruturantes iniciais de um sistema músculo-esquelético, em formação, desarticulado ainda pela ausência da dança em seu tecido. Referências BOTELHO, Isaura. Romance de formação: FUNARTE e Política Cultural. 1976-1900. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rio Barbosa, 2000. CALABRE, Lia. Políticas Culturais no Brasil: balanço e perspectivas. Trabalho apresentado no III ENECULT Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, Salvador: Faculdade de Comunicação/UFBA, Salvador-Bahia-Brasil, 2007. História da Política Cultural no Brasil: 1964 aos anos 2000. Rio de janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2006. http://www.casaruibarbosa.gov COHN, Gabriel. A concepção oficial da política cultural nos anos 70. In. MICELI, Sérgio (org.). Estado e cultura no Brasil: anos 70. São Paulo: Difel, 1984. Cultura em números: anuário de estatísticas culturais. Brasília: Minc, 2009. NASCIMENTO, Alberto Freire. Trabalho apresentado no III ENECULT Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, Salvador, 2007. entre os dias 23 a 25 de maio de 2007, na Faculdade de Comunicação/UFBA, Salvador-Bahia-Brasil. MICELI, Sérgio. Teoria e prática da política cultural oficial no Brasil. In:. (org) Estado e cultura no Brasil: anos 70. São Paulo: Difel, 1984. URFALLINO, Philippe. L'invention de la politique culturelle. Paris [França]: Comité d'historie du ministère de la Culture, 1996. Plano Nacional de Cultura. Brasília, Minc, 2010 (minuta para a provação). Plano Nacional de Dança. Brasília, Minc 2010 (minuta para aprovação)