Singelas diferenças entre os crimes de furto qualificado mediante fraude e estelionato na utilização de cartões magnéticos.



Documentos relacionados
Associação Catarinense das Fundações Educacionais ACAFE CONCURSO PÚBLICO - DELEGADO DE POLÍCIA SUBSTITUTO EDITAL Nº 001/SSP/DGPC/ACADEPOL/2014

PROJETO DE LEI N.º 3.712, DE 2015 (Do Sr. Macedo)

PONTO 1: Concurso de Crimes PONTO 2: Concurso Material PONTO 3: Concurso Formal ou Ideal PONTO 4: Crime Continuado PONTO 5: PONTO 6: PONTO 7:

LEI Nº 9.279, DE 14 DE MAIO DE 1996

Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro Primeira Câmara Criminal

Poder Judiciário TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5ª REGIÃO Gabinete do Desembargador Federal Geraldo Apoliano RELATÓRIO

PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO TOCANTINS TRIBUNAL DE JUSTIÇA Juiz Convocado HELVÉCIO DE BRITO MAIA NETO

Superior Tribunal de Justiça

A PRISÃO PREVENTIVA E AS SUAS HIPÓTESES PREVISTAS NO ART. 313 DO CPP, CONFORME A LEI Nº , DE 2011.

Tribunal de Justiça do Distrito Federal

PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5ª REGIÃO GABINETE DO DESEMBARGADOR FEDERAL PAULO MACHADO CORDEIRO

L G E ISL S A L ÇÃO O ES E P S EC E IAL 4ª ª-

PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5.ª REGIãO Gabinete do Desembargador Federal Marcelo Navarro

1.º Curso de Estágio de 2006 TESTE DE DEONTOLOGIA PROFISSIONAL

FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA PROVA ESCRITA DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL I - TURMA A

COMISSÃO DE RELAÇÕES EXTERIORES E DE DEFESA NACIONAL. MENSAGEM N o 479, DE 2008

Legislação e tributação comercial

PRINCIPAIS JULGAMENTOS DE 2015 STF E STJ DIREITO PENAL E PROCESSO PENAL

Critérios para correção: o conteúdo e a qualidade da sentença:

BuscaLegis.ccj.ufsc.br

Poder Judiciário JUSTIÇA FEDERAL Seção Judiciária do Paraná 1ª TURMA RECURSAL JUÍZO A

PODER EXECUTIVO. Publicado no D.O de DECRETO Nº DE 12 DE FEVEREIRO DE 2010

O art. 96, III da CF prevê o foro por prerrogativa de função dos membros do MP, incluindo os Promotores e Procuradores de Justiça.


Origem : Machadinho do Oeste/RO (1ª Vara Criminal)

10º Seminário RNP de Capacitação e Inovação

LINDOMAR FERNANDES DIAS DA SILVA

Professor conteudista: Hildebrando Oliveira

L G E ISL S A L ÇÃO O ES E P S EC E IAL 1ª ª-

I N F O R M A T I V O

PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO AMAPÁ GABINETE DA PRESIDÊNCIA

VI Exame OAB 2ª FASE Padrão de correção Direito Penal

TUTELAS PROVISÓRIAS: TUTELA DE URGÊNCIA E TUTELA DA EVIDÊNCIA.


CONDIÇÕES PARTICULARES. Cláusula 1ª Fica entendido e acordado que o limite de cobertura para valores fora de cofres fortes e/ou caixas-fortes será de:

Juizados Especiais. Aula 3 ( ) Vinicius Pedrosa Santos (magistrado e professor) vinipedrosa@uol.com.br.

- GUIA DO EMPRESÁRIO -

Ajustes no questionário de trabalho da PNAD Contínua

DAS PROMOTORIAS DE JUSTIÇA DE DEFESA DO CONSUMIDOR

Supremo Tribunal Federal

Q-Acadêmico. Módulo CIEE - Estágio. Revisão 01

ESTUDO DIRIGIDO 9 RESPOSTAS. 1. Princípios que Regem a Execução Trabalhista. 2. Ação Rescisória na Justiça do Trabalho.

INTENSIVO REGULAR ROTATIVO Disciplina: Direito Processual Civil Aula 4 Professor: Fredie Didier Jr. Data: ÍNDICE

AFIXAÇÃO DE PREÇOS DE PRODUTOS E SERVIÇOS PARA O CONSUMIDOR

UMA SUSCINTA ANÁLISE DA EFICÁCIA DA AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO

Vistos. Consta, ainda, que no período compreendido entre as 13h15min do dia 13 de outubro até as 18h00min do dia 17 de outubro de 2008, na Rua Oito,

Aula SEQUÊNCIAS DIDÁTICAS NO ESTUDO DOS GÊNEROS TEXTUAIS. (Fonte:

PROCESSO PENAL COMNENTÁRIOS RECURSOS PREZADOS, SEGUEM OS COMENTÁRIOS E RAZÕES PARA RECURSOS DAS QUESTÕES DE PROCESSO PENAL.

O QUE É ATIVO INTANGÍVEL?

Tribunal de Justiça do Estado de Goiás

Walter Aranha Capanema. O monitoramento das atividades. do usuário pelo provedor

JURISPRUDÊNCIA FAVORÁVEL:

NORMAS DO PROGRAMA INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA PROLAM/USP

ESTATUTO DA CRIANÇA E ADOLECENTE PROF. GUILHERME MADEIRA DATA AULA 01 e 02

Poder Judiciário JUSTIÇA FEDERAL Seção Judiciária do Paraná 1ª TURMA RECURSAL JUÍZO B

LUIZ ANTONIO SOARES DESEMBARGADOR FEDERAL RELATOR

Resumo do Regulamento da Utilização do Cartão de Crédito Bradesco

Autores: Bruno Shimizu, Patrick Lemos Cacicedo, Verônica dos Santos Sionti e Bruno Girade Parise

DO PRINCÍPIO DA TERRITORIALIDADE TEMPERADA

CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. RESOLUÇÃO Nº 36, DE 6 DE ABRIL DE 2009 (Alterada pela Resolução nº 51, de 09 de março de 2010)

PROCURADORIA-GERAL DO TRABALHO CÂMARA DE COORDENAÇÃO E REVISÃO

Licitações de Agências de Publicidade Lei nº /2010

REGULAMENTO Registre sua Atitude

RESOLUÇÃO N 54/2009/CONEPE. O CONSELHO DO ENSINO, DA PESQUISA E DA EXTENSÃO da UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE, no uso de suas atribuições legais,

Estado do Rio de Janeiro PODER JUDICIÁRIO Conselho da Magistratura

1. MEDIDAS ASSECURATÓRIAS NATUREZA DAS MEDIDAS ASSECURATÓRIAS:... DIFERENCIAÇÃO ENTRE SEQUESTRO E ARRESTO: MEDIDAS ASSECURATÓRIAS EM ESPÉCIE

O Novo Regime das Medidas Cautelares no Processo Penal

ILUSTRÍSSIMO SENHOR ELMO VAZ BASTOS DE MATOS, PRESIDENTE DA COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO DOS VALES DO SÃO FRANCISCO E DO PARNAÍBA CODEVASF.

o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, por I

NA IMPORTAÇÃO POR NÃO CONTRIBUINTE DO IMPOSTO ESTADUAL APÓS A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 33 DE , CONTINUA NÃO INCIDINDO O ICMS.

Quanto ao órgão controlador

DIREITO PENAL E DIREITO PROCESSUAL PENAL

TRABALHOS TÉCNICOS Divisão Jurídica VIOLAÇÃO DO SIGILO FISCAL SANÇÕES DISCIPLINARES MP 507/2010. Jorge Cézar Moreira Lanna Advogado

Eng Civil Washington Peres Núñez Dr. em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RECUPERAÇÃO JUDICIAL E FALÊNCIA PRAZOS NA LEI Nº /2005 OBJETO ARTIGO PRAZO

ASPECTOS DA DESAPROPRIAÇÃO POR NECESSIDADE OU UTILIDADE PÚBLICA E POR INTERESSE SOCIAL.

RESOLUÇÃO DO CONSELHO UNIVERSITÁRIO (CONSUNI) N.º 03/2011

REGULAMENTO DO PROGRAMA DE CERTIFICAÇÃO DE CURSOS BÁSICOS DE ESPORTES DE MONTANHA CAPÍTULO I DO OBJETIVO

Coordenação-Geral de Tributação

RESPONSABILIDADE DOS ATORES POLÍTICOS E PRIVADOS

Supremo Tribunal Federal

SUSPENSÃO DO PROCESSO NO DIREITO PENAL TRIBUTÁRIO PORTUGUÊS

TEMÁTICA: A Modernização do Processo e a Ampliação da Competência da Justiça do Trabalho: Novas Discussões. AUTORA: Cinthia Maria da Fonseca Espada

RESOLUÇÃO : Nº 31/11 CÂMARA DE JULGAMENTO SESSÃO : 44ª EM: 22/07/2011 PROCESSO : Nº 0132/2010 RECORRENTE : DIVISÃO DE PROCEDIMENTOS ADM.

A Ação Controlada na Lei de Drogas e na Lei de Organização Criminosa. Um possível conflito de normas.

O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, no uso de suas atribuições legais,

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES PREVISTOS EM LEGISLAÇÃO EXTRAVAGANTE. ESTATUTO

IV - APELACAO CIVEL

CLÁUSULA PRIMEIRA - DO OBJETO

PPP Aspectos Contábeis. Coordenação Geral de Normas de Contabilidade Aplicadas à Federação STN/CCONF

Nº /2015 ASJCRIM/SAJ/PGR Petição n Relator : Ministro Teori Zavascki Nominados : ANTÔNIO PALOCCI

Resultado da Avaliação das Disciplinas

REGIMENTO INTERNO CAP. I - DA COOPERATIVA. Art. 02: A UNIMED JUIZ DE FORA tem a seguinte estrutura organizacional:

Marcos Bragatto Superintendente de Regulação e Comercialização de Eletricidade ap049_2011@aneel.gov.br

Transcrição:

Singelas diferenças entre os crimes de furto qualificado mediante fraude e estelionato na utilização de cartões magnéticos. Ricardo Henrique Araújo Pinheiro O relatório sobre a indústria de cartões de pagamentos adendo estatístico 2008/2009 do Banco Central do Brasil revelou que no 4º trimestre de 2009, existiam no Brasil 152,3 milhões de cartões de crédito emitidos, dos quais 74,9 milhões ativos e 221,4 milhões de cartões de débito emitidos, dos quais 57,7 milhões ativos. Consta do citado documento que em 2009, foram realizadas 2,8 bilhões de transações com cartão de crédito, o que representa um crescimento de 28,7% em relação a 2007. Por sua vez, as transações com cartões de débito chegaram a 2,3 bilhões, 40,3% acima do volume de 2007 i. O alto crescimento dessa modalidade de pagamento revela a necessidade de uma legislação específica para tratar o tema (o que não será objeto de estudo deste trabalho). Hoje em dia os crimes relacionados à utilização fraudulenta de dados e a clonagem de cartões magnéticos são tratados pelo Código Penal, que os qualificou como furto qualificado mediante fraude e estelionato (art. 155, 4º, II e art. 171, ambos do Código Penal). Apesar de não haver grandes disparidades entre os dois institutos comentados neste trabalho, percebe-se que grande parte dos responsáveis pela persecução criminal continua confundindo a diferença existente entre o furto qualificado 1

mediante fraude e o estelionato. Pretendemos, destarte, mostrar para o leitor que a diferença estrutural entre os dois delitos reside no fato de que no furto qualificado mediante fraude a vítima não participa da empreitada criminosa, enquanto no estelionato a vítima é induzida em erro, e voluntariamente entrega o bem ao infrator. Conforme ressaltamos na introdução deste trabalho, no furto qualificado a vítima não entrega seus dados pessoais ao infrator ii. Ela não concorre para a fraude. O infrator se utiliza de expedientes ilegais para a obtenção de dados sigilosos. Em regra, a obtenção dos dados é conseguida através de instalação de dispositivos eletrônicos nos sistemas de segurança dos bancos ( chupa cabra ) iii. Para que fique claro, a aquisição de cartões e senhas para a realização de saques de quantias transferidas de forma fraudulenta pela internet configura furto qualificado mediante fraude, pois o dinheiro não é transferido pela vítima, ou com sua permissão, mas contra sua vontade. iv A consumação do delito narrado no artigo 155, 4º, II do Código Penal se dá com a subtração do dinheiro, ou seja, no momento em que a coisa é retirada da esfera de disponibilidade da vítima, sem o seu consentimento. O dinheiro é subtraído contra sua vontade, expressa ou presumida v. Nesse passo, a consumação do crime de furto mediante fraude ocorre no lugar onde se localiza a agência do correntista, pois a inversão da posse acontece quando o bem sai da esfera de disponibilidade da vítima, gerando prejuízo vi, de modo que a competência para o processamento e o julgamento do delito será do juízo do local da consumação da fraude vii. Vale destacar, caso a fraude tenha sido praticada em detrimento de bens, serviços ou interesses da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas 2

como é o caso da Caixa Econômica Federal deverá ser aplicada a regra prevista no artigo 109, IV, da CF, para que o processamento e o julgamento da infração ocorram perante a Justiça Federal do local onde está situada a agência bancária da vítima. Nesse passo, é irrelevante o lugar onde foi efetuado o saque através de cartão magnético fraudado ou onde foram obtidos os dados sigilosos da vítima viii. De outro lado competirá à Justiça Estadual processar e julgar o crime de furto qualificado mediante fraude praticado em detrimento do Banco do Brasil (ou instituições similares), porquanto se trata de sociedade de economia mista e não há interesse da União no feito ix. No estelionato a participação da vítima é necessária. Ela é iludida pelo infrator a entregar voluntariamente os seus dados. A vantagem ilícita é obtida pela indução da vítima em erro, que voluntariamente fornece seus dados pessoais ao criminoso x. Diferentemente do crime de furto qualificado mediante fraude em que a consumação do delito será o local onde está situada a agência bancária da vítima, no estelionato, a consumação da infração será o local em que foi praticada a fraude, sendo, portanto, indiferente a localização da agência bancária da vítima. Fixa-se a competência pelo local em que se obteve a vantagem patrimonial em detrimento alheio xi. Aliás, em havendo multiplicidade de vítimas e não sendo possível definir o local exato da infração, deverá ser aplicado o disposto no artigo 70 3º c.c o artigo 83 do CPP, segundo os quais: incerto o limite territorial entre duas ou mais jurisdições, ou quando incerta a jurisdição por ter sido a infração consumada ou tentada nas divisas de duas ou mais jurisdições, a competência firmar-se-á pela prevenção xii, ou seja, estará prevento o juízo igualmente competente que tiver 3

praticado o primeiro ato no processo. O critério da jurisdição será o mesmo estabelecido ao delito de furto qualificado mediante fraude, aplicando-se a regra prevista no artigo 109, IV, da CF. A diferença presente entre os delitos em análise parecem simples, mas são reiteradamente empregadas com deficiência pela Polícia Judiciária e pelo próprio Poder Judiciário, daí a existência dos inúmeros conflitos de competência, cuja maioria das teses elaboradas visa à declaração de distinção da teoria na qual deverá ser empregada ao furto qualificado mediante fraude e ao estelionato. Para nós a diferença marcante entre o delito de furto qualificado mediante fraude e o estelionato é a de que naquele crime (o de furto qualificado) não há o consentimento da vítima para que a fraude seja perpetrada, ou seja, a vítima não concorre para a fraude. Já no estelionato, a vítima, voluntariamente, entrega os seus dados sigilosos ao infrator, pois tem a convicção de que está fazendo a coisa certa. ii Relatório sobre a Indústria de Cartões de Pagamentos, Adendo Estatístico 2008/2009, julho/2010. ii ACR 0001249-85.2005.4.01.3802/MG, Rel. Desembargadora Federal Assusete Magalhães, Terceira Turma,e-DJF1 p.153 de 09/04/2010 iii ACR 2006.34.00.021261-2/DF, Rel. Juiz Tourinho Neto, Terceira Turma,e-DJF1 p.78 de 20/11/2009 iv ACR 2005.39.01.000362-0/PA, Rel. Desembargador Federal Tourinho Neto, Terceira Turma,e-DJF1 p.221 de 28/03/2008 v RCCR 2006.35.03.005517-9/GO, Rel. Desembargador Federal Tourinho Neto, Terceira Turma,DJ p.20 de 01/06/2007 vi CJ 201002010023990, Rel. Desembargadora Federal Liliane Roriz, Segunda Turma Especializada, E- DJF2R p. 58 de 10/05/2010 vii CJ 200903000445503, Rel. Desembargador José Lunardelli, Primeira Seção, DJF3 CJ1 p. 24 de 29/09/2010. viii CJ 200882000044024, Rel. Desembargador Federal Francisco Barros Dias, Pleno, DJE/TRF-5 p. 159 de 30/09/2010 4

ix CC 40793, Rel. Ministro José Arnaldo da Fonseca, Terceira Seção, DJ/STJ p. 152 de 19/04/2004 x ACR 200705000773400, Rel. Desembargador Federal Paulo Roberto de Oliveira Lima, Terceira Turma, DJE/TRF-5 p. 227 de 16/06/2010 xi CC 101900, Rel. Ministro Jorge Mussi, Terceira Seção, DJE/STJ de 06/09/2010 xii CC 95343, Rel. Ministro OG Fernandes, Terceira Seção, DJE/STJ de 24/04/2009 5