DITADURA MILITAR: O DISCURSO DE MULHERES NO CONFLITO POR TERRA NA REGIÃO DO ARAGUAIA



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Transcrição:

DITADURA MILITAR: O DISCURSO DE MULHERES NO CONFLITO POR TERRA NA REGIÃO DO ARAGUAIA Juliany Teixeira Reis 1 Judite Gonçalves Albuquerque 2 Esta pesquisa foi inicialmente objeto de uma monografia de graduação no Curso de Letras (Projeto Parceladas/UNEMAT) sob orientação do prof. Dr. Marcos Aurélio Barbai/UNICAMP e hoje se inscreve na perspectiva de escrita de uma dissertação, no Programa de mestrado em Linguística/UNEMAT. Teoricamente a pesquisa filia-se à Análise de Discurso de linha Francesa e tem, como objeto, o discurso de mulheres que, durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), vivenciaram um conflito entre camponeses e proprietários de terra na Fazenda CODEARA, no município de Santa Terezinha MT, na região do Araguaia. Santa Terezinha, pequenina cidade na qual essas mulheres habitaram e habitam, situada no extremo norte do MT, foi um foco de perseguição por parte do Estado e de grandes fazendas que se instalavam na região, recebendo incentivos fiscais por parte do Estado, por intermédio da SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia). Na época da ditadura militar, Santa Terezinha era apenas um povoado mal conhecido. Este conflito se desdobrou pela falsa denúncia que a Codeara fez à Segurança Nacional Brasileira, de que em Santa Terezinha havia um movimento de guerrilha, onde guerrilheiros se preparavam para um enfrentamento aos militares e à própria fazenda. Neste período, o Brasil vivia os anos de chumbo da ditadura, e quem se levantava contra a ditadura era preso, morto ou exilado; o direito à crítica foi vetado aos cidadãos pelos militares. Ninguém tinha o direito de argumentar contra a ditadura, pois a repressão política e o aperfeiçoamento das torturas eram, a cada dia, mais intensos; as pessoas deveriam permanecer silenciadas mesmo passando por condições desumanas. Susel Rosa (2007) afirma que o poder total foi engendrado no seio das democracias liberais do século XIX: o Estado é marcado pela soberania (p.3), podendo impor as leis e decidir sobre a vida. Esse poder marcou igualmente o Estado Brasileiro, Com base em Walter Benjamin, Susel conclui que a polícia é o rosto mais apropriado do poder soberano. E durante a ditadura militar este poder se intensificou. Na culminância do conflito de Santa Terezinha, após um confronto armado com pistoleiros da fazenda CODEARA, as mulheres desempenharam um papel importante de resistência, pois os homens, após o confronto com a fazenda, se refugiaram nas matas por quatro meses; e as mulheres, 1 Juliany Teixeira Reis, mestranda em linguística pela UNEMAT. 2 Judite Gonçalves Albuquerque Drª em linguística pela UNICAMP e professora do programa de mestrado da UNEMAT.

além de desempenharem as funções destinadas a elas e aos homens, como cuidar da terra, plantar, colher ainda enfrentavam a presença das forças policiais o que lhes causava um grande terror psicológico. Com o intuito de manter viva a história destas mulheres que, por defender o seu espaço, foram consideradas comunistas e tratadas/perseguidas como tais, buscaremos analisar seus depoimentos que relatam parte do que aconteceu durante os anos de ditadura no Brasil, com um olhar voltado para os sentidos que tecem esse discurso. Voltamo-nos para a formulação dos discursos, pois como afirma Orlandi (2001, p. 9) é na formulação que a linguagem ganha vida, que a memória se atualiza, que os sentidos se decidem, que o sujeito se mostra (e se esconde). O depoimento das mulheres (a voz do sujeito falando de si mesmo) é uma cena de enunciação montada. Nela sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo, tendo a sua corporalidade articulada, como diz a Orlandi (idem), no encontro da língua com a materialidade da história. Ser mulher militante durante a ditadura era ocupar um papel duplamente transgressor, o de romper com as questões de gênero e o de insurgir contra o governo ditador (Ana Colling, 1997). Nesta pesquisa, temos o intuito de registrar, na história, a participação política da mulher do campo, no período ditatorial brasileiro. conforme afirma Colling: Se, historicamente, o feminino é entendido como subalterno e analisado fora da história, porque sua presença não é registrada, libertar a história é falar de homens e mulheres numa relação igualitária. Falar de mulheres não é somente relatar os fatos em que elas estiveram presentes, mas é reconhecer o processo histórico de exclusão de sujeitos. (COLLING, 1997 p. 2) Entender os sentidos desse acontecimento através de uma memória já sedimentada, onde as mulheres nunca falam, principalmente porque nunca se falou de mulheres nesta época, neste lugar (o Movimento de Mulheres não havia chegado ainda ao MT) é o que nos instiga a desenvolver esta pesquisa. Assim, com o propósito de dar voz às mulheres, trabalharemos com depoimentos de camponesas que participaram desse conflito em Santa Terezinha/MT. Como a nossa materialidade discursiva são entrevistas, pretendemos escutar sentidos a partir de enunciados que se filiam a diferentes formações discursivas. Os sentidos não são predeterminados por propriedades da língua. Eles dependem de relações constituídas nas e pelas formações discursivas. Existe a possibilidade de se ter a permanência ou a transferência de sentidos, que estabelecem o modo como as palavras significam. Com uma análise previa de nosso corpus, percebemos que se dá uma transferência de sentidos na palavra comunista, pois, percebemos que palavras iguais podem significar diferentemente, porque se inscrevem em formações discursivas diferentes. De acordo com Mariani (1998), a palavra comunista sempre se delineou com um sentido negativo e diz em sua obra O PCB e a imprensa que A produção de sentidos para comunista gira em torno de inimigo, o outro indesejável. Ser comunista era vestir a camisa da esquerda e ser uma

ameaça ao governo militar de 64. Já para a senhora Algustinha, ex-integrante do movimento de resistência ao qual estamos nos referindo, na década de 70, ser comunista é ser o salvador do povo ; notamos então que há um deslizamento de sentidos, tendo em vista que uma mesma palavra está inscrita em formações discursivas diferentes. Para corroborar com esta ideia mencionamos Orlandi (2010) quando cita Pêcheux em Discurso e textualidade: Como diz M. Pêcheux o sentido de uma palavra, uma expressão, de uma proposição etc., não existe em si mesmo (isto é, em uma relação transparente com a literalidade) mas ao contrário é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões, proposições são produzidas (isto é, reproduzidas). (ORLANDI 2010. P.17) Compreendemos, então, que o sujeito se manifesta de acordo com a sua formação discursiva que é na linguagem, a projeção de sua posição ideológica. Ao enunciar, O sujeito se filia a uma posição ideológica, colocando sua memória em funcionamento. E a memória à qual vamos nos referir neste trabalho é a memória discursiva; e, parafraseando Orlandi (2001), diríamos que esta memória é constitutiva de todo dizer. Para um dizer fazer sentido, é necessário que ele já faça sentido. Daí trazermos o que diz Orlandi : O dizer não é uma propriedade particular. As palavras não são só nossas. Elas significam pela história e pela língua. O que é dito em outro lugar também significa nas nossas palavras. O sujeito que diz, pensa que sabe o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o modo pelo qual os sentidos se constituem nele. (ORLANDI, 2005. p.32) Trabalhando com depoimentos, consideramos que as vozes das mulheres são a atualização de uma memória, não uma memória individual, mas uma memória socialmente constituída. É, assim, observando as condições de produção do discurso e o funcionamento da memória, que podemos compreender o sentido daquilo que está sendo dito. Tratando, nesta pesquisa, com gestos de interpretação, trabalhamos a língua por uma perspectiva discursiva, sabendo que existem sentidos ideologicamente marcados como afirma Orlandi (2010). Nestes gestos de interpretação ou gestos de leitura, percebemos como o olharfeminino imprime a imagem da mulher daquela época. Os gestos de interpretações são mediados pelos aparelhos de poder de nossa sociedade, e gerem a memória coletiva. Deste modo os sentidos vão sendo selecionados e naturalizados a partir das instituições como o Estado, a igreja, a imprensa, a escola, etc. na memória social. Daí, para analisar os gestos de leitura presentes nos depoimentos de mulheres, em sua atualidade, reverberando uma memória, é preciso estar atento à historicidade da voz, no corpo da linguagem.

Em nossas análises trataremos também do conceito de interpretação que, para a Análise de Discurso, tem a ver com a questão da ideologia. Sabemos que a linguagem não é transparente e que interpretar também não é atribuir sentido. Como diz Orlandi (2001, p. 143), determinados pela história, pegos pela necessidade da língua, pela ideologia, estamos condenados, mesmo se não nos damos conta, à relação com a ética e com o político: na posição de responsabilidade em relação aos sentidos, o sujeito tem de de assinar o que diz, assumir sua interpretação. As mulheres do Araguaia assumem a interpretação, mostrando com suas palavras a contradição que une pessoas; designadas biologicamente como macho e fêmea, como um todo em nossa sociedade, nos fazem ver que as palavras não são apenas o que parecem: elas são o que dizem, o que não dizem e o que silenciam. Pela Análise de Discurso, queremos ouvir esses sujeitos femininos cujas vozes, silenciadas na repressão, reclamam por justiça. Ao enunciar, as vozes dessas mulheres estarão se filiando a uma rede de sentidos, colocando sua memória em funcionamento. Pela Análise de Discurso, ouvindo a voz dessas mulheres, questionaremos os sentidos que ecoam desse acontecimento. Sabendo que os sujeitos são seres simbólicos e históricos, e que necessitam dos sentidos para viver os fatos reclamam sentidos (cf. HENRY, 1997). Buscar esses sentidos é a nossa pretensão. REFERÊNCIAS COLLING, Ana Maria. As Mulheres na Ditadura Militar. História em Revista n - 10 html. 2004. Disponível em: http://www.ufpel.tche.br/ich/ndr/hr/historiaemrevista. Acesso em: 20 de out. 2011. HENRY, P. A história não existe?. Gestos de leitura, Eni P. Orlandi (org), Campinas: Ed. 2. Unicamp, 1997. ORLANDI, Eni Pulccinelli. Gestos de Leitura: Da história no discurso. Eni Puccinelli Orlandi (org.). tradução: Bethania S. C. Mariani Campinas, SP: editora da Unicamp, 1997. Discurso e Texto: Formulação e circulação dos sentidos. Campinas, SP: Editora Pontes, 2001.. Análise de Discurso: Princípios e procedimentos. Campinas, SP: Editora Pontes, 2005.. As Formas do Silêncio: No movimento dos sentidos. Campinas, SP: editora da Unicamp, 2010. PÊCHEUX, Michel. Papel da memória. Tradução e introdução José Horta Nunes. Campinas, SP: Pontes, 1999.

PRIORE, Mary Del. História das mulheres no Brasil. Ed. 8. São Paulo: Contexto, 2006. ROSA, Susel Oliveira da. Estado de exceção e vida nua: violência policial em Porto Alegre entre os anos de 1960 e 1990. Tese de doutorado defendida na Universidade Estadual de Campinas. Campinas,SP, 2007.