AVISA LÁ: DIA 2 DE FEVEREIRO TEM FESTA DE IYEMANJÁ NO AGBOULA 1

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AVISA LÁ: DIA 2 DE FEVEREIRO TEM FESTA DE IYEMANJÁ NO AGBOULA 1 JOANICE SANTOS CONCEIÇÃO 2 Resumo A festa ocupa lugar de destaque na vida dos seres humanos, é momento de inversão de papéis, de novas hierarquias; o profano e o sagrado se misturam para garantir o sentido à vida. Assim a festa de Iyemanjá, na comunidade tradicional de Babá Egun Agboula, na Bahia é um bom momento para pensar as relações que se estabelecem no tecido social daquele lugar. Lançar novos olhares e perspectivas sobre as celebrações festivas, religiosas e as novas performances culturais, de modo promover uma discussão transversal, com destaque para as singularidades, as continuidades e descontinuidades fundamentais da coletividade em questão, constitui o objetivo primordial da proposição. Nesse sentido é que busco dialogar com autores representantes da discussão teórico-antropológica em torno da temática, Jean Duvignaud, Richard Schechner, Victor Turner, Erving Goffman, Juana Elbein, Clifford Geertz, Vagner Silva dentre outros. A análise descrita nesta comunicação resulta das reflexões oriundas da tese de doutorado, sobre a produção de masculinidades e feminilidades na Irmandade da Boa Morte e Babá Egun. Palavras-chave: Religião. Performance. Gênero. Lançar um olhar científico para a festa de Iyemanjá, promovida pela comunidade de Babá Egun do Agboula requer aplicação de técnicas e procedimentos metodológicos no escopo, porém exige do pesquisador certo traquejo e desenvoltura frente às experiências adquiridas no campo, bem como os questionamentos oriundos das observações e das relações desencadeadas com os atores sociais do estudo. Decerto esse não é um empreendimento fácil, dada às especificidades do grupo investigado, haja vista que algumas dificuldades se apresentaram para a coleta e sistematização dos dados, desde as primeiras visitas. De posse das informações empíricas percebemos a importância de outros aportes disciplinares, isto é, a etnografia não deve ser feita por si só, ela se apoia na história, na sociologia na psicologia e outras ciências. Portanto o fazer etnográfico exige interdisciplinaridade. Dito de outro modo, a Etnografia deixa de ser o estudo que considera tão-somente os dados quantitativos, mas torna-se a ciência 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 2 Doutora e Mestre pelo Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais/Antropologia PUCSP; Pós-Doutora (PNPD) pela UFPB, Professora da Faculdade São José, São Paulo, Brasil. 1

que dá significado, qualidade e novas perspectivas às informações rotineiras uma vez que considera a cultura 3 do grupo pesquisado. No caso da festa de Iyemanjá em Itaparica nos remete para uma realidade sagrada e profana, para vivências mitológicas, para acontecimentos lembrados anualmente, enfim as comemorações separam o tempo ordinário e do tempo primordial, nos faz emergir em um tempo de transgressão das normas estabelecidas Duvignaud (1983). A festa de Iyemanjá, como tantas outras é marcada pelas oposições presente x passado, pobre x rico, arcaico x moderno, o coletivo x individual. As oposições revelam a verdadeira forma de festejar de um povo; elas coexistem para revelar a maneira como cada sociedade se organizar e se insere dentro da cultura mais ampla. Durante a festa é possível constatar que há inversões de papeis: a rotina cede lugar para o novo e apresentam-se novas possibilidades, performances culturais são executadas para a configuração do momento comemorativo, é através das performances os atores sociais combinam vários elementos para cumprir o objetivo. (Turner, 1988). Geertz (1989), em sua análise sobre os rituais religiosos os classificam como performances culturais, uma vez que é possível identificar cada ação dos performers ou atores culturais. Salientam ainda que as performances culturais são realizadas dentro de alguns critérios: delimitação do tempo e do espaço, programação das atividades, a participação de expectadores, além do que ritos privados antecedem e procedem ao ápice da festa. O Terreiro de Babá Egun Antes, porém, de adentrar no tema propriamente dito, é bom desde logo fazer uma diferenciação entre o significado de Egun e Orixá, dentro do complexo nagô. A partir dessa concepção, tanto a vida quanto a morte fazem parte de um mesmo plano, porém em níveis diferentes, assim como as suas funções. Ambos são manifestações da vida humana. Os orixás seriam ancestrais divinizados, chefes de linhagens ou clãs, que fizeram grandes atos e por isso ultrapassaram os limites de seus familiares, dinastia e 3 Neste trabalho, tomarei emprestadas as concepções de cultura defendidas por Clifford Geertz (1989, p. 103), nas quais a cultura é entendida como um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporados em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam, desenvolvem seus conhecimentos e suas atividades em relação à vida. A cultura como teia de significados deve ser entendida como uma ciência interpretativa, à procura do significado. 2

passaram a ser cultuados pelos seus parentes consanguíneos, extensos e também por outros povos de outras localidades. Ora, se os orixás, entidades divinas, estão ligados à origem da criação e sua força advém do próprio criador Olorun 4, logo, estes últimos são Deuses. Enquanto os Eguns, entidades originárias do humano, cujo surgimento se fez através de uma mulher 5, só por meios de rituais tornam-se divinizados. Parece claro que este Egun existente no orun 6 é o duplo do humano no aiyê 7, isto é, são entidades que já existiram na terra como pessoas que com a morte simbólica passaram a viver no orun e só voltam ao aiyê quando invocados; Já os orixás possuem correspondentes na dimensão do aiyê, enquanto genitor do filho, que o recebe como pai. Este filho de orixá um pedaço ou individualização do próprio orixá. Assim como nossos pais são nossos criadores e ancestrais materializados no espaço divino (Santos, 1984, p. 103). A própria palavra Egun ou Egungun significa, em iyorubá, esqueleto, como define Bascon (1969, p. 65), mas para Ziegler (1977, 41), seria uma corruptela do nome da família de Ameiyegun Rei de Ifé que lutou e baniu a morte de sua cidade. Este esclarecimento corrobora com a ideia da ligação familiar, tendo em vista que o Egun é cultuado por seus familiares, já o orixá transcende esta dimensão local e restrita, tal como mostra o fragmento de uma entrevista realizada no Terreiro de Babá Agboula: A origem do culto de Babá Egun veio da África, foi um descendente de africano que plantou para meu avô. Meu avô Eduardo De Paula foi o primeiro. Ele era descendente de africano, era brasileiro, mas hoje é Egun chamado Obáerin que a gente zela e faz obrigação. Antes do meu avô tem uma história que alguém foi à África buscar o ancestral e trouxe; esse ancestral está aqui no Agboula. (Carmélia, Entrevista em janeiro de 2008). As palavras acima fortalecem a crença de que o Egun está relacionado a uma estrutura limitada, podendo atravessar fronteiras territoriais para liga-se à estrutura familiar ou linhagem social restrita; já o orixá se faz presente no humano através da interiorização de sua natureza e pertença em nível de cosmo, portanto atravessa todos os 4 O preexistente iyorubá, é também conhecido pelo nome de Olodumarê. 5 O mito Oiá dá à luz a Egungun conta que Oiá não podia ter filhos e fez oferenda a fim de alcançar seu intuito. Após oito filhos nascerem mudos, ela dá à luz o nono filho que, depois de um tempo, fala com a voz rouca e cavernosa. Este filho foi Egungun, o antepassado que fundou cada família, cada cidade. Hoje, quando Egungun volta para dançar entre seus descendentes somente para uma mulher ele se curva Oiá. PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras. 2001, p. 309. 6 Comunidade ancestral para onde vai aquele que materialmente desapareceu do convívio social. 7 Lugar onde habitam os vivos. 3

níveis territoriais, seu culto é ilimitado, não circunscreve apenas ao nível familiar. Estas distinções parecem suficientes para resolver a questão desde muito antes colocada. Ainda sobre a distinção entre Orixá e Egun Santos (1984) chama a atenção para a separação territorial que deve ser mantida entre um e outro. Ainda que seja o Egun de uma Iyalorixá ou Babalorixá deve ser cultuado em lugar distante do terreiro do orixá. Esse lugar é conhecido como Ilé-ibó-akú ou simplesmente Ibó. Desde já, faz-se uma diferenciação entre Ilé-igbalé ou casa de culto de Egun ou lesen-egun. Nestes espaços são cultuados os Eguns de todos os iniciados no culto de Babá, enquanto o ibó limita-se ao culto dos Eguns pertencentes ao terreiro de lesen-orixá. De diferentes modos, são dispensados os cuidados aos assentamentos e os rituais mortuários realizados nos dois cultos são liturgias, fundamentos e sacerdócios bem distintos, o que exigem conhecimentos específicos para lidar com esses ancestrais. Da mesma maneira orixás e Eguns são classificados em dois polos: os da direita sãos os ancestrais masculinos, os Babá Egun; já os da esquerda são os ancestrais femininos, as Iyá-ágbá ou Iyá-Mi, são a representações coletiva do poder do feminino. A união dos ancestrais da direita dá origem à Sociedade Egungun e a da esquerda forma a Sociedade Gèlèdé. Há ainda uma terceira sociedade chamada Egbé E lééko, associada ao simbolismo coletivo do poder ancestral feminino. Hertz (1990, p. 18) ao discutir os conceitos de direita e esquerda, associa o lado direito do cérebro ao masculino e o lado esquerdo ao feminino. A associação à esquerda, como sendo pertencente ao mundo das mulheres, não está restrita ao fato biológico, mas sim amparada pelo tecido social. As Iyá-Mi (minha mãe) ou Iyá-Mi Òsòròngà são representações da totalidade (a massa, o grande ventre ou a cabaça), mas acima de tudo essa é uma representação coletiva do poder feminino, jamais manifestado individualmente; em contraposição ao poder masculino, que tanto pode ser representado particularmente (opá, paus, varas, ramos) ou coletivamente (Ópákòko). Babá Egun no Brasil O culto chegou ao Brasil pelas mãos e na memória dos escravizados iyorubanos, cujo tronco étnico vem de variadas regiões da Nigéria, a saber: os povos de Ketu, Oyó, Ijexá, Ifan e Ifé. Diversamente das casas de orixás, quase que inumeráveis em todo o Brasil, o culto de Babá Egun apresenta um parco número, destacando-se, sobretudo, as principais delas que figuram em livros e na memória das pessoas de Itaparica e algumas 4

localidades no Brasil. Segundo os moradores da comunidade do Agboula Bela Vista, existem muitas responsabilidades para quem cuida dos Eguns, fato que talvez justifique o modesto número de casas que se dedicam apenas a esses ancestrais. Desigualmente dos escritos sobre candomblé, em relação ao início do culto de Babá Egun no Brasil, um entrevistado afirma que antes desse culto chegar à Bahia, ele teria sido iniciado em Pernambuco e só depois chegaria pelo Litoral à Encarnação 8, Itaparica, na Bahia. Em outras localidades encontramos outras comunidades com suas respectivas lideranças como o terreiro de Vera Cruz, fundado em 1820, por um africano, conhecido como Tio Serafim; em Mocambo, também na Ilha de Itaparica, fundou-se em 1850 o terreiro do Tuntum, idealizado e edificado por Marco-o-Velho Ojé, ainda hoje reverenciado por moradores das localidades do Bela Vista, Barro Branco, adjacências e fora dos domínios da Bahia. Foi nesta casa que se invocou pela primeira vez o famoso Egun de Babá Olukotun, considerado pelos adeptos dos terreiros como Olari-Egun, isto é, o ancestral primordial do candomblé de lesen-egun, da nação nagô. Em Encarnação, na Ilha de Itaparica, por volta de 1840, foi iniciado pela primeira vez o culto ao Babá Agboula, localizada inicialmente em Ponta de Areia, em Itaparica, mudando posteriormente para região mais afastada, conhecida ainda hoje como comunidade Bela Vista ou Comunidade de Babá Agboula. Sua fundação se deve a Eduardo De Paula, um dos filhos do famoso Tio Serafim, o conhecido Ojé João-Dois-Metros. O Egun de Babá Agboula é um dos patriarcas desse povo nagô. Nosso interesse por esta comunidadeterreiro se justifica por ela ser considerada até hoje a matriz de todas as casas desse culto no Brasil. Diante do campo A minha inserção no Culto de Babá Egun se deu por intermédio de uma pessoa do terreiro Viva Deus, de Cachoeira, Bahia, que em outros tempos frequentou e colaborou com as festas no terreiro de Babá Agboula. A primeira visita foi feita em setembro de 2006, fora do período de festa, momento em que fui apresentada a Iyakekerê, isto é, à líder feminina; ela, por sua vez, se encarregou de me apresentar aos demais membros, alertando-os a partir de então iria frequentar a comunidade com o 8 É bom dizer que não encontrei qualquer registro que corrobore com essa informação dada pelo Ojé mais antigo do culto de Babá Egun. Entretanto, para nós os relatos memoriais são tão válidos quanto os documentos encontrados nos arquivos. 5

objetivo de realizar um estudo antropológico. Inicialmente, fui recebida com um misto de acolhimento, desconfiança e estranhamento, mas aos poucos ocorreu a minha participação nas conversas e em algumas atividades realizadas pelas mulheres. A partir de então comecei a frequentar as festas realizadas quatro vezes por ano, além das visitas com permanência no local de quinze, vinte dias e até 40 dias. O contato com as pessoas permitiu vivenciar o cotidiano dos grupos e também a relação deles com o público em geral. Mesmo gozando de alguns privilégios por ficar hospedada na casa de pessoas ligadas ao grupo, houve um estranhamento natural em relação à minha atuação como antropóloga, sobretudo no que toca aos rituais mais privados e até mesmo nos públicos. Por outro lado, esse contato com as pessoas, com o povoado, as quitandas fez com que eu percebesse que a estrutura ritual da festa começa no privado (jogo de búzios, preparação da comida, preparação das roupas, espaços, sacrifícios e banhos de purificação...) e depois torna-se público, visto que a festa aberta antecede uma série de rituais internos. A parte pública se faz em forma de Ajeun, no xirê, oferendas, despachos, na divisão dos espaços em masculino ou feminino ou lugar reservado para as integrantes ou pessoas em geral; tudo isso efetivado com o rigor necessário para que os rituais tenham eficácia. A divisão e acesso aos espaços saltaram aos olhos desde as primeiras visitas 9, já que a restrição a algumas informações ou conhecimentos colocam os indivíduos em situações e posições diferenciadas. A natureza religiosa de matriz africana encontra-se intimamente relacionado ao segredo e este último é elemento regulador e fundamentador, isto é, ele permite os indivíduos acessarem os fundamentos da religião; tal fato é conseguido por fases iniciáticas ou graduais, na medida em que o segredo reveste os indivíduos de poder, ainda que ocupem a base da hierarquia. Estes fatos configuram a esfera religiosa da festa em questão. A observação dos espaços rituais, do cotidiano das mulheres e homens do referido grupo, como também a maneira como eram vivenciadas e engendradas as masculinidades e feminilidades dentro e fora dos cultos, uma vez que essas categorias possuem forte representação. A cada cântico, cada dança, cada gesto, cada vestimenta, a reação do público fazia emergir novos homens e novas mulheres, ora revestidos de poder e autoridade, outras vezes revestidos de estratégias para manutenção de posição. 9 Neste texto fixarei o olhar para a feste de Iyemanjá, porém caso o leitor queira aprofundar sobre esse e outros assuntos poderá consultar a tese de CONCEIÇÂO, 2011, intitulada Uma metade, uma existência: produção de masculinidades e feminilidades na Irmandade da Boa Morte e no Culto de Babá Egun. 6

Deste modo a nossa concepção de performance segue o mesmo raciocínio de Schechner (2003) que a entende como comportamento restaurado, já que para este autor o comportamento restaurado existe independente de condições políticas, tecnológica e individuais, a medida que pertence ao conjunto de elementos encontrados num determinado grupo. A mulher na estrutura do terreiro de Babá Egun No pequeno povoado onde está localizado o culto de Babá, há uma árvore que é ponto de encontro das mulheres da comunidade, a tarde, por volta das 16 horas elas vão chegando e em pouco tempo junta cerca de 10 a 15 mulheres que se põem a conversar sobre os mais variados assuntos: falam da educação dos filhos, das festas que estão por organizar e, principalmente, do cotidiano doméstico, uma vez que poucas são as mulheres que desenvolvem trabalhos fora de casa. Ao que parece, esse local tornou-se, por assim dizer, um divã, posto que ali é discutido e solucionado a maioria dos problemas do povoado, sem que haja a necessidade da interferência dos homens. Por localizar-se em ponto estratégico, isto é, entre a estrada e uma mercearia, de propriedade feminina o local permite saber quem sai e quem entra na comunidade. Acerca do tema, esclarece: A casa organiza-se segundo um conjunto de oposições homólogas: fogo/água, cozido/cru, alto/baixo, luz/sombra, dia/noite, masculino/feminino, nif/hurma, fecundante/fecundável, cultura/natureza. Mas de facto as mesmas oposições existem entre a casa no seu conjunto e o resto do universo. Considerada na sua relação com o mundo exterior, propriamente masculino da vida pública e do trabalho agrícola, a casa, universo das mulheres, mundo da intimidade e do segredo, é haram, quer dizer, ao mesmo tempo sagrada e ilícita para todo o homem que dela não faça parte [...] (Bourdieu, 2002, p. 44) (grifo meu). Considerando a reunião das mulheres e a citação do autor, pode-se dizer que as mulheres subvertem a ordem usual: as mulheres estão fora de casa, estão na rua, ficam em roda de conversa. Embora estar na rua esteja fortemente marcado pela divisão de sexo, as oposições se operam e se manifestam no mundo exterior a casa; as mulheres assumem novos contornos para estabelecer outras relações no interior do Bela Vista, inscrevendo mudanças que vão sendo esculpidas, fazendo com que as futuras gerações 7

de mulheres imprimam um novo jeito de se comportar nos locais considerados masculinos. Para Bourdieu (2002), o sistema de referências, no termo do qual se deixa opor feminino-feminino ao feminino-masculino, provoca um dinamismo no conjunto de homologias preestabelecidas. Neste lugar reservado às mulheres, há homens, entretanto, que maridos proíbem suas esposas de frequentarem e lá permanecerem, pois alegam que ali é um espaço para jogar conversa fora, local de fofocas, alegam ainda que o local serve de suporte para que suas esposas recebam maus conselhos e assim se voltem contra eles. Seria, por assim dizer, um lugar de conspiração. Sobre a fofoca, um estudo na área de psicologia faz uma referência: A tecelagem é reconhecida como sendo uma das ocupações femininas mais antigas, nas tradições que chegaram até nós; é porque, em todos os tempos, as mulheres constituíram a textura da vida. Tampouco alguém colocará em dúvida seu lugar central na coesão do tecido social, do qual ao menos um dos aspectos é imediatamente apreensível e conhecido de todos: o que se chama, de maneira pejorativa, de fofoca. É apenas uma corrente de uma função essencial, que não deveria ser subestimada, pois sem ela a vida social ficaria sem alma. Ela se manifesta às vezes, é verdade, na forma destrutiva da má língua, mas cujo monopólio as mulheres estão longe de ter (Michels, 2001, p.48). O construto afirmado por Michels 10 mostra que nem sempre o que é considerado fofoca o é. Muitas vezes, essas mulheres estão tratando de assuntos que de outro modo não seria possível. Além disso, o autor deixa claro que as fofocas não são exclusividade das mulheres, portanto, feminino e fofoca não são simétricos; ela pode ser verificada no campo sexualmente oposto, já que as justificativas dadas pelos homens podem se encaixar perfeitamente nos espaços por eles frequentados. Dentro da pequena comunidade também encontramos outro ponto considerado feminino: o espaço do preparo dos alimentos votivos para os orixás e para os Babás. Nesse local não percebemos algazarras ou muito falatório, as pessoas portam-se como se estivessem diante de uma divindade. A bem dizer, a preparação dos alimentos votivos exige muito rigor e reverência, já que é parte integrante do ritual; por isso, não se ouvem risadas, conversas sobre sexo. Tudo gira em torno do sagrado, o que justifica a mudança de postura das pessoas envolvidas, fato verificado horas antes da saída do presente de Iyemanjá. Geralmente, durante a preparação dos referidos alimentos, 10 Ibidem 8

observa-se a presença maciça das mulheres. Em contrapartida, é notada, ainda que pequena, a presença masculina, posto que determinados alimentos e animais exigem que seus cuidados e preparos sejam feitos por homens; mesmo assim, todos indistintamente referem-se a essa atividade e espaço como exclusivos das mulheres; portanto, do ponto de vista hierárquico, a preparação dos alimentos diz respeito e está ligada à esfera feminina. Tal fato pode ser um traço da cultura local, mas também pode ser uma forma de proteger a tradição que vem sendo mantida há muitos anos. Sobre o segredo e tradição, acrescenta o autor: A tradição mantém e transmite procedimentos técnicos e seus instrumentos; vai além ao associá-los a sistemas simbólicos, mitos, mistérios e ritualizações pelas quais os artesãos compõem uma determinada sociedade no interior da grande sociedade. Esta tradição restrita a um corpo apresenta, contudo, características consideradas próprias à tradição comum da qual participam os membros de uma coletividade: requer mestres que a conheçam, que a mantenham viva e a comuniquem aos que nela se iniciam; recebe sua autoridade e sua eficácia por sua antiguidade, pelas ideias, pelos valores e modelos dos quais é herdeira, pelo segredo que a diferencia dos saberes comuns. É por esses últimos aspectos que a tradição encerra um elemento de caráter sobre-humano, que remete aos deuses, aos heróis e aos fundadores, e que se torna o depósito sagrado daqueles que se apresentam como seus vicários ou seus mandatários no presente. (Michels, 2001, p.95). Assim como as crianças aprendem e apreendem através das relações com os adultos, as mulheres reproduzem os comportamentos baseando-se na égide masculina; portanto a construção da feminilidade é feita também conforme a ótica que, por vezes, está impregnada de noções e estereótipos masculinos, porquanto muitas explicações estão nelas fundamentadas. De certo modo, acredita-se que o fato da mulher não questionar as atitudes dos homens diz respeito à visão que foi e vem sendo traçada ao longo de anos. Feminilidades em interdição A interdição é parte de diferentes culturas. Nem todos podem olhar ou participar de determinados rituais; sobretudo em algumas religiões, ver as coisas sagradas é privilégio de alguns. As mulheres e as crianças encabeçam essas listas da interdição ao universo sacro. Como os rituais têm o poder de fazer transpor certas fronteiras, algumas religiões exigem a iniciação como requisito de acesso; assim o acesso é permitido de forma gradativa e hierárquica; ainda assim, em alguns casos, apenas aos homens é 9

facilitado o olhar, sendo negado às mulheres e às crianças, como é nos rituais mortuários. Estes reservam, em princípio, às mulheres a visão apenas daquilo que é público, cabendo a elas tarefas predeterminadas pelos homens. Sendo os rituais mortuários objetos de interdição feminina e exclusividade masculina, de que maneira as mulheres do culto de Babá Egun ultrapassam a barreira da interdição? Mary Douglas 11 (1991) leva em conta os conceitos de pureza e perigo como algo estruturante. A autora penetra a vida de vários povos com diferentes culturas, com o intuito de mostrar que estes dois conceitos fazem parte de uma totalidade, interagindo de forma harmônica; assim são vistos de forma análoga, expressando um caráter geral da ordem social. Douglas analisou as antinomias pureza/perigo, ordem/desordem, limpeza/sujeira e contágio/purificação; assim também o universo do culto de Babá Egun encontra-se repleto de aparentes antinomias que, ao serem verificadas, caminham no sentido de maior convergência. Já foi mencionada, anteriormente, que a morte física constitui uma desorganização tanto na estrutura simbólica quanto na estrutura social e que os rituais realizados após a morte física têm a função de reordenar positivamente a vida cotidiana. Há aqui um quê de impureza que é preciso afastar visto que ela é uma ofensa contra a ordem estabelecida. Eliminando-a, não fazemos um gesto negativo; ao contrário, esforçamo-nos para organizar o nosso meio (DOUGLAS, 1991). Mas, ao realizar os rituais contra a impureza causada pela morte, o indivíduo coloca-se em perigo e ao mesmo tempo é investido de poder após a execução. Este é um tipo de poder que não se faz implicitamente; ele é um micropoder, como afirma Foucault (1979). Um poder encontrado em diversas esferas sociais nagô, e que, por vezes, subverte alguns aspectos do antropocentrismo, colocando em relevo as brechas sociais; as interdições femininas, quando analisadas a partir dessa ótica, podem mostrar-se revestidas de poder. Visto que vencido o perigo da travessia da fronteira, o feminino mostra-se como uma fonte de poder. Este perigo da poluição se concretiza através dos fluidos sexuais, geralmente é o sexo feminino que contamina o masculino (DOUGLAS, 1991, p. 16). Esta crença na contaminação aponta para: A feminilidade só é perigosa para os homens, tal como a virilidade só o é para as mulheres. As mulheres criam a vida e, durante a gravidez, 11 Arqueóloga e antropóloga inglesa, na obra Pureza e perigo aborda várias culturas na perspectiva da pureza, delineando interditos femininos por meio da divisão sexual dos espaços. 10

alimentam a criança com o seu próprio sangue: depois de nascer são os homens que a alimentam com o sangue criador da vida que eles extraem do seu próprio pênis. (DOUGLAS, 1991, p. 171). Mas a despeito de tudo que presenciamos, notamos que as mulheres do Culto de Babá Egun têm importância fulcral na estrutura de todos executados, principalmente quando da aparição dos Babás, uma vez que eles só dançam quando as mulheres catam e batem na palma da mão. Além disso, cabem à mulher a responsabilidade do preparo da maioria das comidas votivas, arrumação do barracão e a relação com os turistas. As mulheres representam cotidianamente diferentes papéis ou suas performances tanto nas festas em homenagem aos Babás quanto na festa de Iyemanjá na medida em que possui a estrutura, encadeamento de fases, cenário mais ou menos fixo, definição de papéis, uma presença contínua diante de um grupo particular de observadores; os rituais ou as performances podem exercer influência sobre grupo ou pessoa que são meramente expectadores (GOFFMAN, 2007). A festa A festa de Iyemanjá em Ponta de Areia ocorre sempre no dia 2 de fevereiro de cada ano, Figura 1 Festa de Iyemanjá - Terreiro Agboula os moradores do pequeno povoado, denominado de Bela Vista meses antes começam a se organizar para homenagear a Rainha do Mar. Tudo começa com a economia que cada um faz para ofertar presente e até mesmo balaio com inúmeros regalos. Uma semana antes do dia 2 de fevereiro, a Iyakekerê reúne-se no barracão de lésen-egun com as demais mulheres do povoado para preparar os balaios e os quartião que serão ofertados, bem como os donativos que cada uma irá ofertar. Os utensílios são ricamente ornamentados, preferencialmente com as cores-símbolos da divindade, isto é, azul-celeste, branco, verde-água e rosa bebê. Prepara-se as roupas a serem usadas no dia da festa, faz-se comidas votivas para os Deuses e Deusas, limpa-se as casas para receber os turistas e amigos de outras localidades que prestigiam a festa. 11

Todos os preparativos são realizados quase que exclusivamente pelas mulheres, sobretudo as frequentadoras do Culto de Babá Egun; os homens ficam na assistência, realizando tarefas mais externas, tais como a recepção dos turistas e na providência dos barcos que levarão presente para o alto mar. Esses ritos lustrais têm a função de preparar o povo e seus atores sociais para a comemoração, inserindoos e marcando um novo tempo: Figura 2 Xirê no barração de Babá, Antes da saída do presente Uma festa desenrola-se sempre no tempo original. É justamente a reintegração desse tempo original e sagrado que diferencia o comportamento humano durante a festa daquele de antes ou depois. (ELIADE, 1996, p. 76) É através das festas que os adeptos exibem suas performances religiosas e lúdicas, exibindo sua cultura para os expectadores. Neste sentido Geertz, chama atenção para a dificuldade que se tem para diferenciar a performance religiosa da artística ou lúdica, uma vez que ambas podem servir a múltiplos objetivos. As performances que envolvem a cultura dizem respeito à comunicação do corpo, isto é a fala e as expressões não linguísticas, como o teatro, a dança, canto e as artes plásticas. (Turner, 1988). Esses elementos se combinam de diferentes formas para cumprir o objetivo proposto. Esse conjunto de elemento pode ser encontrado nas festividades dedicadas a Rainha das Águas. Explicitamente o vestuário, os balaios, os quartiões e a própria forma como são organizadas o caminhar das mulheres configuram um belíssimo efeito plástico, além disso, muitos turistas usam o momento da festa como espaço de diversão e lazer. É oportuno diz que as festas de Largo da Bahia, principalmente aquelas voltadas para as religiões de matriz africana, ganharam novos contornos quando tornaram-se festa com grande massa, fato alertado por Ordep Serra (2000). Figura 3 Beleza e brilho no presente de Iyemanjá 12

Este fato observado por Serra torna-se claro quando comparamos a festa de Iyemanjá de Salvador e de Itaparica; na primeira observamos que os atos religiosos, na sua maioria, são realizados um dia antes ou no dia 2 de fevereiro bem cedinho, porque os muitos carros de som, trios elétricos, afoxés e outras batucadas faz com que o caráter religioso fique em segundo plano, já que muitos que vão às festas muitas vezes desconhecem os propostos religiosos do grupo que organiza. A festa realizada pelo Agboula ainda conserva mais visivelmente seu caráter religioso por não contar com a mesma estrutura que a festa em homenagem a mesma Divindade em Salvador. A festa de Itaparica não conta com trio elétrico, carro de som, afoxé e não há qualquer referência nas mídias televisivas ou impressas. O número de pessoas é bem menor e aqueles que acompanham parecem concentra-se no aspecto religioso. As festas públicas das religiões de matriz africana sempre atraem grande número de expectador, sobretudo quando estas acontecem na Bahia, já que o Estado é considerado a terra da magia. Este nome foi atribuído, em grande medida, por conta das religiões de matriz africana que frequentemente Figura 4 Percurso do cortejo realizam suas festas, tornando visíveis seus elementos culturais legados pelos povos africanos aqui escravizados. Das muitas festas que acontecem na Bahia as festas de largo concorrem para atrair grande número de turistas locais e internacionais. A festa de Iyemanjá, realizada em Salvador, especificamente no bairro do Rio Vermelho, é uma das mais concorridas, ao lado da festa de Senhor do Bonfim, com destaque nas mídias nacionais e internacionais. Considerando que a festa de Iyemanjá do terreiro de Babá Egun não esteja nas grandes mídias, creio que esta festa sirva para revelar as relações dos moradores do pequeno povoado e com a sociedade mais ampla. É certo que o número de turista é bem menor que o da capital baiana, porém em termo de ritual religioso, dedicação e beleza em nada deve a festa realizada em Salvador. Ao contrário, A festa de 13

Iyemanjá do Agboula permite que as pessoas estejam mais próximas da imagem, façam suas oferendas, sem que precisem ficar por horas na fila. Etnografia da Festa de Iyemanjá em Itaparica A festa de Iyemanjá integra o calendário religioso do terreiro de Babá Agboula que homenageia o orixá conhecido como Rainha das Águas dos oceanos. O ciclo de festa é composto por ritos litúrgicos do candomblé, purificação do corpo, dos utensílios e dos espaços, comidas votivas são ofertadas às divindades e a parte profana. A festa é comemorada dia 2 de fevereiro, tendo como lócus o terreiro de Lesen-Egun do Agboula, localizado em Ponta de Areia, no povoado Bela Vista, na Ilha de Itaparica, Bahia que dali sai em direção a praia. No dia 02 de fevereiro os moradores do pequeno povoado acordam bem cedinho e já começam a realizar os últimos preparativos para a festa. É possível contar com um pequeno número de adeptos do culto de Babá Egun que se deslocam da capital e outras localidades da Bahia a fim de prestigiar a festa. As mulheres preparam, na cozinha do terreiro de lesen-egun alimentos votivos para serem ofertados. Diferentemente da festa de Iyemanjá que ocorre em Salvador, o comércio funciona normalmente e não há grande estrutura montada para o evento. Não há qualquer cobertura jornalística ou apoio por parte de órgãos governamentais. Por volta das 13 horas as mulheres começam a se reunir no barracão. Quando todas estão reunidas no barracão elas entoam cantigas e dançam em um pequeno xirê para todos os orixás. Primeiro cantam para Exú orixá dos caminhos e da comunicação. Em seguida elas cantam e dançam para Ogum, Obaluaiyê, Iyansã, Nanã, Oxum, Oxossi, Oxalá e por fim, para Iyemanjá. Salienta-se que neste dia não há aparição de Egun, já que é incompatível Orixá e Egun no mesmo espaço. Além do que este é um dia que as homenagens são para os orixás. A música, a dança e o som dos atabaques atraem a Figura 5 Reverência a Exú 14

atenção de um razoável número de pessoas que aguardam para acompanhar o cortejo do presente rumo ao mar. O trajeto do cortejo percorre mais ou menos de 3 km até chegar à região praiana. É hora de reviver mais um mito, já que para Eliade (1998) a realidade revela múltiplos significados e na festa de Iyemanjá pode-se ler duas faces de uma mesma realidade: o mito e o rito. Na definição de Eliade o mito é: uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares... Conta uma história sagrada; relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio... uma história verdadeira porque sempre se refere à realidade. (Eliade, 1998, p. 75). Para carregar o presente as mulheres são ricamente vestidas com roupa próprias do candomblé, isto é, saia de baiana, bata ou camizú, pano da costa, ojá na cabeça; preferencialmente veste-se com as cores que representam o orixá homenageado, isto é azul, branco e, verde-água; cada uma exibe vários fios de conta de diversos orixás, sem faltar o do orixá para quem sua cabeça foi consagrada e do orixá homenageado. Por voltas das 14 horas ao som de música de orixá, fogos de artifícios o cortejo sai acompanhado por centenas de turistas, quase todos os moradores do Bela Vista Figura 6 Fios-de-conta faz parte da indumentária das mulheres comparecem, pessoas de todos os cantos da Ilha de Itaparica formam o público. Os moradores que por algum motivo não acompanham o cortejo, ficam à espreita olhando a procissão da Rainha das águas, outros se juntam; até mesmo aqueles que estão em barracas de praia e barzinho resolvem acompanhar a multidão. Ressalta-se que as mulheres são as protagonistas da festa. Os homens ou os Ojés 12 do culto de Babá Egun parecem ser apenas coadjuvantes. Durante o percurso muitas que acompanham a festa improvisam novas cantigas e dançam afoxé; turistas desavisados procuram, de última hora, um presente para Iyemanjá, outros flertam em busca de uma paquera. Antes de chegar ao destino final, o percurso passa pelo antigo lugar que deu origem ao Culto de Babá Egun. Essa obrigação 12 Sacerdote do culto de Babá Egun. 15

se justifica faz quando da mudança para o alto do Bela Vista o Exú que guardava o terreiro não quis ir junto e permaneceu no lugar, isto é, atrás da pequena Igreja do povoado de Ponta de Areia, deste modo, em tempo oportuno comidas sacralizadas são servidas e o local é reverenciado pelos adeptos o culto de Babá Egun e demais povo de santo 13. Mais uma vez a performance cultural é explicitada, revelando um dos traços identitários do grupo. Figura 7 Engendrando Feminilidades Religiosas No de 2010 cerca de quatro grandes barcos aguardam a chegada do cortejo para seguirem para o alto mar onde os presentes serão depositados ou arreados. Neste momento os Ojés e outros homens do povoadas colaboram, auxiliando as mulheres no acesso ao barco e na organização do público que se agita, cantando e dançando para a divindade homenageada. Aqueles que não conseguiram embarcar entregam para os embarcados presentes, flores, pente, perfume, espelho, papel com pedido e outros regalos do agrado do orixá. Entregar o presente, fortalecer laços entre o homem e as divindades Arrear um comida ou outro regalo que contenha axé para uma divindade significa agradecer por uma dádiva, agradar aos Deuses; é desta forma que se fortalece os laços entre os homens e os Deuses. É através desse e outros rituais que os adeptos das religiões de matriz africana garantem a continuidade do sistema religioso. As oferendas ou ebó podem ser comidas cozida ou seca, animais vivos ou mortos (Silva, 1995) 13 Para maiores esclarecimentos a esse respeito ver tese de CONCEIÇÃO, 2011. 16

. Figura 8 Conjunto de fotos do Presente de Iyemanjá 17

Quando os barcos saem em direção ao alto mar, fogos de artifícios são tocados e os expectadores entoam novos cantos e dançam. À medida que os barcos vão se distanciando as pessoas tomam bebidas alcoólicas, dançam ao som do Axé Music enquanto aguardam o retorno das pessoas que embarcaram. Por volta das 18 horas os barcos retornar trazendo não mais pessoas, mas sim divindades que utilizam o corpo dos adeptos para virem a terra, ou melhor, ao mar. Esse estado é denominado possessão. Tal fato mostra como o indivíduo utiliza seu corpo para se expressar culturalmente. Para Mauss (2003, p. 403), Cada corpo tem a sua atitude, cada sociedade tem seus hábitos próprios, cada um de forma tradicional sabe servir-se do seu corpo. É o mesmo corpo exercendo diferentes papéis em uma mesma festa. As pessoas também exibem performances para agradar os organizadores da festa: danças, roupas nas cores da divindade. Às performances culturais dos participantes profanos que de alguma forma buscam liga-se ao objetivo da festa nos remetem ao conceito de liminóide trabalhado por Turner (1982), na medida em que os acontecimentos ocorrem à margem do núcleo central da festa e do processo político. É através desses Figura 9 Festa de Iyemanjá pequenos eventos, nas interfaces e interstícios das instituições centrais que os fenômenos liminóides liberam a capacidade humana de cognição, afeto, volição e criatividade, corroborando sobremaneira para o sucesso do evento maior. Assim os adeptos do culto de Babá Egun estabelece uma relação com a sociedade mais ampla quando se coloca na contramão da sociedade mais ampla quando realizam seus eventos à revelia do poder público que se mostra indiferente à cultura secular passada de geração em geração. Quando desembarcam, com a ajuda dos ojés e sob os olhares dos moradores, pesquisadores, turistas e curiosos, formam-se novamente uma procissão da seguinte forma: na frente seguem os orixás em seguidas os membros do terreiro de Babá Agboula e atrás centenas de pessoas. Já é noite quando a procissão novamente se dirige para o local onde o Culto de Babá Egun teve início, lá as divindades reverenciam Exú e 18

novos cantos são entoados, novas danças, novas performances são exibidas. Após esse momento as pessoas vão saindo transe sob os olhares de centenas de pessoas. Em seguida, os adeptos se juntam às batucadas que ocorrem em diversos bares, outros retornam às suas casas. No Bela Vista, as mulheres mostram-se alegres, porém cansadas mas é perceptível a sensação de dever cumprido. Mais uma vez a festa cumpre subverte os papéis no Terreiro de Babá Egun; a festa de Iyemanjá deixa entrever o protagonismo das mulheres do Agboula, mesmo que os discursos masculinos queiram dizer o contrário. A festa é lugar por excelência para restauração de comportamento, mas também é lugar de reinterpretação e ressignificação de fatos e símbolos. Assim vimos o tradicional ser tocado pela modernidade com o objetivo de garantir a perpetuação do grupo. Bibliografia BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. Tradução Miguel Serras Pereira. Oeiras: Celta, 2002. CONCEICAO, Joanice. Mulheres do partido alto: elegância, fé e poder um estudo de caso sobre a Irmandade da Boa Morte. 2004. Dissertação (Mestrado) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2004 DUVIGNAUD, Jean. Festas e Civilizações. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. ELIADE, Mircea. O profano e o sagrado. São Paulo: Martins Fontes, 1996. GOFFMAN, Erving. A Representação do eu na vida cotidiana. Trad de M.C.S. Raposo. Petrópolis, Vozes, 1985. HERTZ, Robert. La muerte y La mano derecha. Madrid: Alianza Editorial, 1990. MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. MICHELS, André. Histeria e feminilidade. Ágora, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 33-55, jun. 2001. PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. TURNER, Victor. The Anthropology of Performance. New York: Paj Publications, 1988. SANTOS, Juana Elbein dos. Os nagô e a morte. Petrópolis: Vozes, 1984. SCHECHNER, Richard. O que é performance. In: O Percevejo. Revista de teatro, crítica e estética. Rio de Janeiro: Unirio, Ano 11, nº 12, 2003. p. 25-50. SILVA, Vagner G. da. Orixás da Metrópole. Petrópolis: Vozes, 1995 19

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