MÁSCARAS E IMPOSTURAS EM O SOL SE PÕE EM SÃO PAULO 1 Eline Marques dos Santos (UFS) 2 Introdução O romance O sol se põe em São Paulo, de Bernardo Carvalho, é construído por personagens que passam pelo que não são (CARVALHO, 2007, p.143). Isto é, são personagens que agem por meio de imposturas e máscaras, que vão sendo reveladas ou remodeladas no decorrer da narrativa, à medida que os mistérios vão sendo desvendados e recriados. Bernardo Carvalho é um escritor e jornalista carioca nascido em 1960, sua primeira publicação foi o livro de contos Aberração (1993), desde então publicou diversos romances. Considerado um dos principais ficcionistas contemporâneos, recebeu prêmios nacionais e internacionais, como o Portugal Telecom de Literatura Brasileira por Nove noites (2002) e os Prêmios Jabuti e o APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), com Mongólia (2003). O sol se põe em São Paulo (2007) foi o oitavo romance publicado por esse autor. É um texto com uma trama que envolve farsas e mentiras. Uma história que se desdobra e se remodela na medida em que as imposturas vão sendo reveladas, as quais desde o início da narrativa vão prendendo o leitor numa aparente teia interminável, em que a verdade parece algo distante de se alcançar. O narrador, que não é nomeado, nos conta a narrativa da senhora japonesa que diz se chamar Setsuko. Ela o procura para que ele escreva sua história, acontecida sessenta anos antes no Japão. O narrador é um homem com uma vida desestruturada, que conserva da juventude o desejo de ser escritor e vê nesse convite a única oportunidade de realizar essa antiga pretensão. A narrativa de Setsuko se passa no Japão, logo depois da Segunda Guerra Mundial. Um triângulo amoroso que se forma entre Michiyo, uma jovem que tem uma boa condição social e está prestes a se casar, Jokichi, personagem atormentado com o seu passado e que vê no casamento com Michiyo uma forma de retomar a sua vida, e Masukichi, um ator que mesmo não nutrindo sentimentos por Michiyo insiste num 1 Este trabalho faz parte do Grupo de Estudos em Leitura Literária (ELL), orientado pela Profa. Dra. Josalba Fabiana dos Santos. 2 Mestranda em Letras pela Universidade Federal de Sergipe. 1
relacionamento conflituoso. Setsuko é apenas uma amiga de Michiyo, que inicialmente não possui uma participação significativa, seu papel é apenas ouvir suas lamentações e inconstâncias. Setsuko e Michiyo teriam se conhecido em um curso de preparação de bonecas. Começa então uma relação interdependente, em que Setsuko sente necessidade de ouvir a amiga para se afastar de sua realidade decadente e sem perspectivas, enquanto Michiyo encontra uma confidente pronta para escutar suas aventuras. A relação se torna significativa quando Setsuko sai da fábrica em que trabalhava e da casa de seus pais para trabalhar na casa de Michiyo como secretária. Depois desse momento, as relações se modificam e Setsuko passa a possuir um papel mais ativo no conturbado relacionamento amoroso de Michiyo, envolvendo-se com as personagens e interferindo na história, passando de confidente a mensageira entre Michiyo e Masukichi. A partir daí começa uma relação conflituosa entre Setsuko, Michiyo, Jokichi e Masukichi, em que este último parece estar sempre interferindo e se tornando parte central dos conflitos vividos pelas outras personagens. Setsuko interrompe sua narração e sem nenhuma explicação desaparece. Depois desse fato o papel do narrador se acentua, ele assume a tarefa de terminar a história, e para isso decide investigar as pistas deixadas pela senhora. A primeira e determinante descoberta é a identidade da japonesa, pois Setsuko afinal não existia, era apenas uma invenção dela (CARVALHO, 2007, p.97). O narrador vai então em busca da verdade, para desvendar todos os enigmas que estão por trás dessa misteriosa senhora. Tendo em vista todo esse jogo de identidades e desdobramentos, este trabalho pretende analisar Setsuko/Michiyo, observando as máscaras e imposturas em que esta é construída. Michiyo se desdobra em vários papéis, e se utiliza disso para apresentar-se ao narrador e para contar sua história. Desse modo, pretendemos analisar toda a complexidade dessa personagem, que possui representações e identidades múltiplas, para assim, tentar decifrá-la. 2
Máscaras e desdobramentos Setsuko/Michiyo é uma personagem que assume diversas máscaras durante a narrativa. Contudo, muito mais do que o uso de nomes diferentes, esta personagem se apresenta em outros papéis e representações. A primeira impressão do narrador-personagem quando a vê, é como se uma jovem atriz tivesse se maquiado para interpretar uma anciã no teatro (CARVALHO, 2007, p. 11), estando, portanto, desempenhando um papel. O seguinte trecho, no início do romance, nos leva a todos os outros papéis em que essa personagem se desdobrará: desde a anciã misteriosa, até a moça volúvel que é narrada em sua história. Esse fato demonstra a duplicidade presente na personagem. Bravo (1997, p. 264) afirma que a partir do século XVI, o duplo começa a representar o heterogêneo, com a divisão do eu chegando à quebra da unidade (século XIX) e permitindo um fracionamento infinito (século XX). Desse modo, apesar da ideia de duplo existir desde a antiguidade clássica, é com a modernidade que este deixa de se referir à figura do homogêneo, a uma unidade com uma identidade própria. Assim, com as novas concepções do exercício livre da razão e do sujeito como centro do mundo, o duplo é representado na divisão do sujeito e a busca das identidades. Clément Rosset (1988), ao tratar da duplicação humana, afirma que se constitui a partir do desdobramento de personalidade, ou seja, é um eu que se desdobra em outros. Nesse sentido, a noção de duplo se refere a um paradoxo, sendo ao mesmo tempo, o mesmo e um outro (ROSSET, 1988, p. 33). Dessa forma, Michiyo se desdobra em outros personagens e assume diferentes papéis durante a narrativa, constituindo, assim, duplos ou múltiplos. Inicialmente Michiyo é Setsuko, uma senhora japonesa discreta e reservada que busca, por um motivo desconhecido pelo narrador, um escritor para contar sua história. É uma idosa enigmática que uma noite saiu do seu canto debaixo da escada como uma aparição, para [...] impor o mistério do seu recolhimento (CARVALHO, 2007, p. 11). Na história criada pela velha japonesa, ela apresenta duas personagens com um contexto de vida e um comportamento completamente diferentes. Segundo Guerra (2008, p. 27), o panorama da mulher do Japão no período pós-guerra passava por uma modificação, pois a mulher começou a ter acesso aos bens de consumo ocidentais, o que contribuiu para a sua dualidade, dividida entre os papéis ativos e 3
passivos na sociedade japonesa. De acordo a autora, as personagens Setsuko e Michiyo são formadas por características antagônicas da mulher japonesa desse período, em que a primeira seria a típica mulher submissa e a segunda a mulher moderna [que] transgride os costumes. Nesse sentido, Setsuko representa a mulher que se aproxima mais do padrão japonês, com uma conduta submissa se assemelhando às bonecas que elas aprenderam a confeccionar quando se conheceram como uma postura passiva e facilmente manipulável. Ela só teria tomado uma atitude quando decide revelar a história de Michiyo ao escritor japonês Tanizaki. Enquanto, Michiyo é uma mulher que possui hábitos mais ocidentalizados, tem atitude e age de acordo com seus objetivos. Ao mesmo tempo, possui um comportamento completamente inconstante e controverso: no fundo, Michiyo estava determinada a se casar com ele, embora a Setsuko dissesse estar condenada a um casamento de conveniência (CARVALHO, 2007, p. 49). Michiyo utiliza máscaras quando conta sua história ao narrador, assumindo uma outra identidade. Usa ainda em sua narrativa, quando Michiyo e Setsuko passam pelo que não são, já que as personagens narradas sofrem uma transformação de atitude. Isto é, a máscara inicial é sobreposta, fazendo com que elas se revelem de formas diferentes: Setsuko deixa de ser uma moça submissa ao contar a história de Michiyo ao escritor Tanizaki, uma atitude definitiva para o desenlace, e Michiyo se transforma em uma mulher apaixonada e, de certa forma, dependente emocionalmente do marido. Tudo isso demonstra a característica de fragmentação do sujeito pós-moderno, que é moldado de acordo com os diversos contextos em que é submetido. Segundo Hall (2011, p. 13), a identidade torna -se uma celebração móvel : formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. Portanto, de acordo com o ambiente, essas personagens se modificam completamente: Setsuko muda de cidade e passa a ter contato com pessoas diferentes e com os textos literários, enquanto Michiyo passa a condição de mulher casada e toda a ideia liberalista que existia até então desaparece. Todas essas representações e identidades são opostas e complementares entre si, pois, como afirma Bravo (1997, p. 271) o eu não é senão a máscara de um 4
outro eu, num desdobramento infinito. Assim essas personagens seriam diferentes facetas de Michiyo, de quem ela era e de quem ela se tornou. Uma máscara essencialmente é um acessório usado para cobrir o rosto, para esconder a identidade. A máscara utilizada por Michiyo, apesar de possuir um caráter enganoso, escondendo quem ela realmente é e o seu real papel, a constitui. Isto é, a partir do momento que ela se reveste com a máscara de Setsuko, ela se torna um outro nela mesma, pois, como o afirma o narrador, todas as máscaras confirmam quem você é. Pois é você quem as usa (CARVALHO, 2007, p.156). Dessa forma, apesar de Setsuko se apresentar como outra, ela é parte do que Michiyo é, tanto no passado, em sua história, quanto no presente. Portanto, Michiyo é Setsuko, é a velha senhora japonesa, é a jovem volúvel do Japão pós-guerra, é a moça de família pobre que busca criar novas perspectivas para sua vida, previamente definida por uma sociedade destruída. Ela usa diversas máscaras e se desdobra em outros distintos, mas que guardam uma similaridade entre si, pois todos esses outros a constituem. Imposturas e criação/revelação dos enigmas As imposturas são recorrentes em O sol se põe em São Paulo. Muitas das informações passadas pela velha japonesa são falsas, muito do que o narrador e o leitor sabem na primeira metade do romance é completamente desconstruído quando a até então Setsuko desaparece. Essa relação de farsas e mentiras põe em dúvida a narrativa da senhora japonesa, chegando a um ponto de não se saber mais no que acreditar. Tudo parece parte dessa rede de imposturas em que o narrador, e por consequência o leitor, se sente enganado, enredado em uma história que não podia [se] livrar. (CARVALHO, 2007, p. 94). O mistério que percorre toda narrativa é formado pelas informações parciais e pelo clima sombrio. Todo esse clima e os enigmas vão sendo reconstruídos à medida que o narrador desencobre as farsas. O que aumenta essa sensação de impostura é a recriação dos enigmas, ou seja, quando os segredos são revelados e o narrador chega à revelação de alguns fatos, outros aparecem sem explicação, fazendo do romance um aparente círculo interminável de mistérios. A revelação das primeiras imposturas, o desaparecimento da senhora japonesa, a descoberta do verdadeiro nome de Michiyo e de todas as farsas que essa revelação carregava causou uma sensação de verdadeiro desespero no narrador: 5
Fiquei mudo ao ouvir de novo o mesmo nome, a confirmação, Michiyo, que agora retumbava em minha cabeça, abafando tudo que vinha a seguir, todos os outros sons a meu redor (CARVALHO, 2007, p.101). Essa sensação de engano pode ser explicada, com o que Rosset (1998) fala sobre o desdobramento de personalidade no outro, se referindo aos romances e filmes de terror. Pensava-se em se tratar com o original, mas na realidade só se havia visto o seu duplo enganador e tranquilizador; eis de súbito o original em pessoa que zomba e revela-se ao mesmo tempo como o outro e o verdadeiro. Talvez o fundamento da angústia, aparentemente ligado aqui à simples descoberta que o outro visível não era o outro real, deva ser procurado num terror mais profundo: de eu mesmo não ser aquele que pensava ser (ROSSET, 1988, p.66). Esta reação pode ser interpretada de acordo com o que afirma Rosset (1988), em que a essência da angústia era proveniente muito mais de si mesmo do que do outro. Podemos pensar nas próprias similaridades em relação ao narrador e a Michiyo como fonte dessa sensação, pois ambos se sentem deslocados, suas identidades são completamente descentradas, sendo seres que pertencem a lugar nenhum. Portanto, essa reação do narrador poderia estar associada a sua própria consciência de também ter uma identidade indefinida. O desaparecimento de Michiyo e a descoberta de sua identidade pode ter motivado a necessidade de o narrador conhecer a si mesmo no país de origem dos seus antepassados, por trás da ideia de descobrir o passado e a verdade. Assim, ao tomar consciência da fragilidade das identidades, ele foi impulsionado a construir a sua. Com isso, ele pôde descobrir as farsas de toda a trama e compreender aquelas que também fazem parte da sua vida. Ao decidir contar mais uma vez sua história, como havia contado ao escritor Tanizaki, Michiyo parecia querer voltar ao passado e recriar o que havia acontecido. Sua obsessão era pôr um fim em algo que trouxe muitos problemas e que foi interrompido, sem as devidas explicações dos equívocos ocorridos. A recriação do ambiente da primeira vez em que foi narrada ao escritor japonês é um indício dessa possibilidade: mandei construir esta casa a imagem da dele ela disse, sentada diante de mim, referindo-se ao velho escritor. Cada um reconstrói o mundo como pode (CARVALHO, 2007, p.78). 6
O uso do nome Setsuko ao contar a história para o narrador-personagem também é uma forma de reproduzir o passado, já que esse teria sido o nome utilizado com o escritor Tanizaki. Michiyo, portanto, recriou a casa, contratou um escritor e recontou a história com o mesmo nome que utilizou anteriormente, fazendo as alterações que a fariam corrigir o que havia narrado no Japão. Michiyo contou o suficiente para finalizar a história narrada anteriormente ao escritor japonês. Ao mesmo tempo, contou o suficiente para que as mentiras se revelassem e a imaginação do narrador-personagem tivesse espaço, para que assim ele pudesse criar a sua. Se agora eu sabia o nome, era porque já não precisava não saber. De alguma maneira tudo tinha sido planejado. Michiyo [...] havia calculado o tempo certo para contar a história, escondida por trás de um nome falso, enquanto preparava a sua saída de cena. (CARVALHO, 2007, p.97). Assim, quando a senhora japonesa desaparece, ela abre um espaço para que o narrador se torne escritor, para que o romance aconteça, porque só os outros podem contar (CARVALHO, 2007, p.163). Michiyo, então, é narradora de sua história que ficcionaliza sua realidade, buscando na escrita do romance o fim de um ciclo doloroso de perdas, imposturas e mentiras. Ela conta aquilo que deve ser contado, não necessariamente o que havia acontecido. Se ela não finalizou e sumiu repentinamente, é por que o contar estava reservado para o narrador-personagem e sua função, depois de finalizada a parte da senhora japonesa, era desvendar todas as imposturas. Considerações Finais Sou uma mulher dividida (CARVALHO, 2007, p.134) é o que escreve Michiyo em uma carta no fim do romance direcionada a Masukichi e que tinha o objetivo de esclarecer todas as imposturas do passado. Essa frase diz muito sobre como essa personagem é constituída: fragmentada em diversos papéis e máscaras que vão se sobrepondo. Dessa forma, ela, assim como os outros personagens, esconde suas identidades ao interpretar diferentes papéis, cada um carregando uma máscara que será revelada com o desenrolar da narrativa. A impostura é um aspecto central que permeia o romance. Todos os personagens carregam consigo uma farsa que os leva em busca do que são. Essas 7
imposturas ainda são acentuadas pela atmosfera misteriosa, que sempre se renova e se recria, à medida que os enigmas vão sendo revelados. Com tudo isso, O sol se põe em São Paulo apresenta personagens que estão em busca de si próprios, que procuram por meio de imposturas e máscaras cumprir a promessa do que são (CARVALHO, 2007, p.163). Faz-nos, ainda, refletir sobre como as identidades são complexas e movediças, em um mundo em que não sabemos quem somos verdadeiramente ou quem são os (nossos) outros. REFERÊNCIAS BRAVO, Nicole Fernandez. Duplo. In: BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de Mitos literários. 4. ed. Trad. Carlos Sussink et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. p. 261-288. CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. Companhia das Letras: São Paulo, 2007. GUERRA, Luciana. As multifacetas de Setsuko/Michiyo em o Sol se põe em São Paulo: um reflexo da mulher japonesa no pós-guerra. ScriptaAlumni, Curitiba, n. 1, 2008. p.14-29. Disponível em: http://www.uniandrade.br /pdf/scripta_alumni N01_2008.pdf#page=9. Acesso em: 11 out. 2013. HALL, Stuart. A identidade na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva; Guaracira Lopes Louro. 11.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2011. ROSSET, Clément. O real e o seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Trad. José Thomaz Brum. Porto Alegre: L&PM, 1988. 8