Arthur Arruda Leal Ferreira (Professor do Instituto de Psicologia da UFRJ arleal@superig.com.br)



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Transcrição:

GOVERNAMENTALIDADE LIBERAL E PRÁTICAS PSICOLÓGICAS: A PEDAGOGIA HUMANISTA Arthur Arruda Leal Ferreira (Professor do Instituto de Psicologia da UFRJ arleal@superig.com.br) Flávio Vieira Curvello (Graduando de Psicologia da UFRJ nosos_phuratus@hotmail.com) Olivia Maria Klem Dias (Graduanda de Psicologia da UFRJ melena_lei@hotmail.com) 1 - INTRODUÇÃO No presente artigo, buscamos estudar como a psicologia poderia ser pensada a partir do tema do governo tal como proposto por Michel Foucault. O autor desenvolveu seus estudos sobre este em dois cursos em dois cursos que lecionou no Collège de France, no final da década de 1970: Segurança, Território, População (1978) e Nascimento da Biopolítica (1979). Por governo, entretanto, Foucault não busca definir a atuação de um poder formal, tal como opera a filosofia política ao discutir o Estado, mas se volta às diferentes formas de condução da conduta alheia, desde as práticas pastorais dos cristãos primitivos até as formas de governo contemporâneas. Neste sentido, ele cunha o conceito chave destes estudos, a governamentalidade, que precisa as diferentes formas pelas quais essa condução é estruturada e racionalizada, visando obter um determinado fim, como a felicidade, a riqueza ou o conforto dos governados (FOUCAULT, 2008b; ROSE, 1998). A partir daí, a entrada da psicologia se dá pela consideração de uma governamentalidade contemporânea, tida como liberal, o que é discutido por Nikolas Rose. Adotando essas referências, buscamos analisar como uma prática específica da psicologia, a pedagogia humanista de Carl Rogers, pode ser entendida como uma tecnologia desta forma de gestão. 2 - GOVERNO E PRÁTICAS PSICOLÓGICAS Nos cursos mencionados, Foucault esboça uma genealogia das formas de governo modernas e contemporâneas, apontando para o papel fundamental que a pastoral cristã assume no desenvolvimento destas e considerando-a o mais antigo registro de uma prática de condução dos homens por seus iguais (FOUCAULT, 1990, p.81). Aqui, a relação do pastor com o rebanho por ele conduzido é descrita como essencialmente benfazeja, de cuidado sobre todas e cada uma de suas ovelhas, a serem conduzidas para um fim espiritualmente elevado (FOUCAULT, 1990, p. 85 e 86, 2008b, p. 172). O autor considera que a partir deste paradigma é originada uma arte de condução dos homens que servirá de fundamento à governamentalidade que se esboça no século XVI, quando as preocupações políticas incidirão menos sobre as questões territoriais e mais na condução da população (FOUCAULT, 2008b, p. 219). Esse movimento é demarcado pelo surgimento de uma literatura específica sobre a prática do governo que se opõe diametralmente ao pensamento de Maquiavel, pensador político de suma importância à época e que representava as preocupações correntes da soberania. Se para este autor a questão primeira do exercício do poder político era assegurar a dominação territorial, constantemente ameaçada por 1

beligerâncias e intrigas, para as novas artes de governar a gestão se dava primordialmente sobre uma população. Esta seria considerada em função de seus vínculos com certos aspectos territoriais, como a riqueza, as condições naturais e as possibilidades de subsistência, mas já constituiria o ponto de incidência do poder político, devendo ser conduzida para um estado de bem comum (FOUCAULT, 1990, p. 91 e 92, 2008b, p. 128). Essas questões conduzem ao momento de maior interesse para os propósitos do presente estudo: a constituição de um Estado de Polícia e sua passagem para a economia política, tal como preconizada pelos fisiocratas. O Estado de Polícia se organiza no século XVII quando esta necessidade de que o soberano governe ocasiona a formação de um conjunto absolutamente específico de estratégias políticas chamado razão de Estado. Calçada no modelo econômico mercantilista, esta ambicionava esquematizar o funcionamento da cidade a tal ponto que se garantisse sua subsistência e funcionamento a custos mínimos, de forma a enriquecê-la e fortalecê-la no cenário da competição entre os Estados. O plantio, a colheita, a estocagem e os preços da produção eram regulados rigidamente; o espaço urbano era planejado de forma a evitar a insalubridade e controlar o fluxo dos vagabundos; o comércio externo era pensado segundo uma delicada diplomacia que pretendia evitar o desnível de poder político e econômico entre os países, ainda que pretendesse seu fortalecimento individual (FOUCAULT, 2008b). No século XVIII, porém, a desarticulação desta racionalidade começou a se esboçar. A doutrina fisiocrática e a filosofia liberal buscaram explicitar o fracasso desta intervenção excessiva, como nas crises da produção agrícola e no flagelo da fome, que ela não conseguia evitar. Em frontal oposição à razão de Estado, passaram a propor como princípio de um governo econômico a liberdade, entendendo a população como um conjunto de processos administrável pelo que tem de natural, em seus movimentos e oscilações próprios. Propuseram que se buscasse afetá-la de forma indireta, como pelo controle do fluxo de moedas e das possibilidades de trabalho (FOUCAULT, 2008b). É nessa viragem que a associação entre o tema do governo e as práticas psicológicas ganha contornos mais definidos, como se observa no trabalho de Nikolas Rose (1998; 1999). Segundo este autor, é a partir das propostas de um governo pela liberdade que será desenvolvida, ao longo do século XIX, uma governamentalidade liberal que terá no advento das práticas psi um poderoso recurso para efetivar sua gestão. A psicologia surge aí como uma tecnologia individualizante, que se difunde na sociedade por meio de uma série de técnicas de inscrição, como a clínica, os testes psicométricos, escalas de atitude etc., disponibilizando um vasto arcabouço conceitual e um vocabulário específico sobre as diversas dimensões da experiência subjetiva, como emoção, motivação, pensamento, vontade etc. Nesse sentido, não só tornam essas mesmas dimensões referenciáveis, produzindo formas de entendimento e relação consigo, como também as tornam inscritíveis nas práticas de governo, possibilitando sua conversão em gráficos estatísticos, escalas, mapas etc. (ROSE, 1999). Existe, deste modo, uma produção dos sujeitos pela psicologia. Estes passam a ser portadores de um eu autônomo, voltado para uma auto-realização, devendo alcançá-la por meio de seus atos voluntários e responsáveis, tornando-se agentes e gestores de seu sucesso e satisfação pessoal. 2

Deste modo a atuação da psicologia é de notável importância para um governo liberal por gerar formas específicas de relação dos sujeitos com eles mesmos e com os outros pautadas em tais entendimentos, na medida em que eles passam a se entender e explicar a partir destes conceitos. O governo do outro seria então efetivado por um governo de si mesmo, um governo pela liberdade presente na responsabilidade do sujeito sobre as próprias ações e na sua autonomia. Os sujeitos se tornam governáveis justamente pelo estímulo ao seu auto-governo (ROSE, 1998). 3 - A PEDAGOGIA DE CARL ROGERS Dadas estas referências, optamos por estudar aqui um desdobramento da psicologia humanista americana bastante propício a análises de tal caráter, o projeto pedagógico de Carl Rogers. Cabe salientar que este autor, destacado na psicologia clínica por ser o criador da abordagem centrada na pessoa, dedicou-se a diversos temas ao longo de sua carreira, nos quais aplicou os mesmos princípios que adotava na terapia, ou seja, uma postura nãodiretiva, empática e acolhedora, que visava proporcionar as condições para que o homem atualizasse suas potencialidades latentes, atingindo formas mais plenas e integradas de existência, como preconiza seu conceito de auto-realização (ROGERS, 2001a, 2005). É em parâmetros afins a esses que Rogers pensará a aprendizagem, expondo uma visão muito crítica do sistema educacional de seu país e elencando uma grande quantidade de pontos negativos em sua organização e funcionamento. Sua crítica mais profunda é a de que ele se baseia na desconfiança do estudante, não crendo nele para estabelecer sua própria direção e seguir suas aspirações, dizendo-o o que deve fazer, pensar e aprender (EVANS, 1979, p. 66; ROGERS, 1978). O autor considera que isso acarreta uma diferença de status entre professor e aluno, entendendo-se o primeiro como o detentor do conhecimento e o segundo como seu recipiente. Configura-se, a partir disso, uma relação de poder verticalizada, marcada pela autoridade do professor, em que o medo e a imposição surgem como características fundamentais, tomando frequentemente a forma de punições morais, como o descaso com as considerações do aluno, a penalização de seus erros de conteúdo ou mesmo a humilhação ostensiva. Rogers ainda considera esse aspecto como uma constante, surgindo desde os primeiros anos da educação infantil, com punições mais simples e proibitivas, e indo até os cursos superiores, como a sujeição aos caprichos dos orientadores. Esse distanciamento entre professor e aluno é evidenciado pelo uso do formato aula no ensino, uma transmissão unidirecional de conhecimento, bem como pela aplicação de testes como método de avaliação. Dessa forma, explicita-se a relevância que o sistema educacional dá ao intelecto, negligenciando qualquer aspecto motivacional ou emocional da aprendizagem, separando artificialmente o indivíduo em razão e outras faculdades de pouca ou nenhuma relevância para a obtenção do saber (ROGERS, 1978, 2001c, 2001d). Em oposição a essas considerações, Rogers concebe o ensino centrado no aluno, para o qual é fundamental a confiança na capacidade das pessoas de pensarem e aprenderem por si mesmas. De acordo com o autor, o educador deve assumir o papel de um facilitador, ocupando-se, sobretudo, da criação de um ambiente de aceitação e estímulo a um aprendizado autônomo. Ele deve disponibilizar, segundo a sua experiência e entendimento 3

particulares, recursos técnicos e teóricos para o aprendizado do aluno, despindo-se das hierarquizações da relação. Trata-se de uma presença não-restritiva, que não mais entende o conhecimento como algo a ser transmitido de um indivíduo ao outro, mas colocado à plena disposição dos interesses pessoais do estudante (ROGERS, 2001d, p. 322 e 323). O foco da atividade do facilitador, portanto, está em favorecer um processo contínuo de aprendizagem, incidindo secundariamente no conteúdo; o importante é que o aluno aprenda a aprender aquilo que o interessa, havendo compartilhamento da responsabilidade pelo rumo do estudo. A disciplina necessária nesse processo é a auto-disciplina, sendo a pessoa que aprende o avaliador da própria aprendizagem, bem como aquele que deve decidir os rumos que esta assume. É desejável, por exemplo, que o aluno crie seus programas e metas de estudo, decidindo sobre questões que habitualmente não são sua atribuição, como os temas a serem estudados, a bibliografia e o próprio ritmo do estudo (ROGERS, 1978, 2001c, 2001d). Nesse sentido, Rogers assume como propósito maior de sua pedagogia a instauração de uma aprendizagem significativa, ou o tipo de aprendizagem que não se resume aos elementos cognitivos, mas comporta uma dimensão afetivo-vivencial a eles integrada, adquirindo um significado expressivo no todo da existência e da experiência particulares, envolvendo a pessoa por inteiro (ROGERS, 2005, p. 145). O autor comenta: Por aprendizagem significativa entendo aquela que provoca uma modificação, quer seja no comportamento do indivíduo, na orientação da ação futura que escolhe ou nas suas atitudes e na sua personalidade. É uma aprendizagem penetrante, que não se limita a um aumento de conhecimentos, mas que penetra profundamente todas as parcelas da sua existência. (ROGERS, 2001c, p. 322) Cabe ressaltar aqui que o conhecimento em Rogers é compreendido de maneira utilitarista, existindo para ser funcional e operar mudanças na realidade à qual se volta (ROGERS, 2001a, p. 324) e que a única medida legítima de sua relevância é a própria pessoa. Dessa forma, sua pedagogia não se atém a avaliações da aprendizagem dos alunos, pois uma aprendizagem significativa não pode ser examinada por critérios externos, só sendo testada em sua eficiência e funcionalidade pela própria vida (ROGERS, 2001a, p. 335). Mas como Rogers considera ser possível assegurar tais efeitos na relação educadorestudante? Para o autor, a facilitação ocorre se o educador apresentar as mesmas três atitudes que antes definira como úteis à clínica: a congruência, a consideração positiva incondicional e a compreensão empática, que devem se comunicadas eficientemente ao estudante (ROGERS, 2001a; ROGERS, 2005). Pela congruência entende-se que o educador deve ser a pessoa que é, tendo plena consciência das atitudes que assume, aceitando seus sentimentos reais e permitindo-se expressá-los se assim quiser, colocando-se presente e transparente ao estudante. Pode, por exemplo, permitir-se irritar, bem como ser sensível ou simpático ante os diferentes assuntos e comportamentos desenvolvidos no contato com os alunos. De acordo com Rogers: O professor é uma pessoa, não a 4

encarnação abstrata de uma exigência curricular ou um canal estéril através do qual o saber passa de geração em geração (ROGERS, 2001a, p. 331). Pela consideração positiva incondicional define-se uma estima não-possessiva pelo estudante, entendendo-o como uma pessoa independente e digna de confiança e respeito por méritos próprios. Trata-se de aceitar as diferentes condutas e sentimentos que o estudante venha a demonstrar, como a insegurança ante um problema, a satisfação da conquista, uma ocasional apatia, suas disposições quanto à autoridade etc. (ROGERS, 2005, p. 149). Por fim, com a compreensão empática, trata-se de entender o sentido desses movimentos do estudante, as suas reações e avaliações quanto ao processo de aprendizagem ou àqueles que nele se engajam, ou como todo esse conjunto lhe parece. O professor deve se colocar no lugar do estudante e tentar apreender o mundo por seus padrões (ROGERS, 2005, p. 150). A seguir, buscamos explorar um exemplo prático da entrada destas propostas rogerianas no Brasil. 4 - A DIFUSÃO DO PENSAMENTO ROGERIANO NO BRASIL Segundo Vieira (2002a; 2002b), a chegada do pensamento de Rogers ao Brasil se deu de modo defasado. Desde a sua primeira obra traduzida para o português, o livro Liberdade Para Aprender, um espaço de quase dez anos decorreu antes de uma nova publicação. Isso levou a um entendimento muito raso e, muitas vezes, equivocado das propostas do autor. Das atitudes propostas por Rogers, a que ficou mais marcada entre os brasileiros foi a postura não-diretiva, que por sua vez, foi tomada por um puro laissez-faire, ou seja, uma permissividade completa. Os estudiosos que se dedicavam a estas leituras se empenharam, então, em bem interpretá-las e aplicá-las adequadamente. Tomamos o exemplo do Colégio Sallis Goulart como uma tentativa de assumir as idéias de Carl Rogers na prática regular de uma escola particular em Pelotas, no Rio Grande do Sul, nos anos de 1983 e 1984. Nesta experiência, contudo, não deixaram de ser realizadas algumas atualizações nas propostas do autor. Caberia observar, para justificar a necessidade destas, que o próprio Rogers não pensava ser possível a aplicação de suas idéias pedagógicas a um sistema regular de ensino, que ocorre em longo prazo. Suas propostas, por outro lado, seriam apropriadas a experiências de curta duração e a eventos no modelo de workshops. 5 - O EXEMPLO DO COLÉGIO SALLIS GOULART Para a entrada de propostas de tal caráter numa instituição escolar, houve a necessidade de ajustá-las de modo a torná-las executáveis em um sistema educacional regular. As propostas foram, desta forma, traduzidas e transformadas em uma série de atividades integradas ao calendário escolar ou em posturas que promoviam a reformulação de algumas práticas recorrentes. Sete dessas atividades podem ser destacadas: 1- Foram realizadas intervenções ergonômicas no espaço escolar, criando, por exemplo, lugares de lazer pedagógico. 2- Grupos de encontro em sala de aula, nos quais se trabalhava com a totalidade da turma, foram implantados e eram realizados regularmente. Nestes grupos diversos 5

temas como, educação, responsabilidade, política brasileira e cooperação eram trabalhados. 3- Uma Semana de Criatividade e Livre Expressão foi criada. Nestas semanas buscava-se estimular a criatividade e a liberdade de expressão dos alunos, de modo que este pudesse apresentar aquilo que bem entendesse, desde atividades escolares propriamente, até a exposição de atividades relacionadas a seu hobbies e outros.ou seja, o conteúdo das exposições não era necessariamente escolar e não era reprimido de maneira alguma. 4- Passaram a ser realizadas também reflexões constantes sobre o rendimento do aluno junto ao próprio e aos professores, nas quais se buscava pensar sobre as dificuldades e expectativas do aluno quanto a sua aprendizagem. Nesse sentido eram realizados também diálogos individuais e coletivos que visavam a potencialização da aprendizagem. 5- Atendimento educativo, espontâneo ou encaminhado, era disponibilizado a alunos, professores e funcionários e visavam facilitar a auto-compreensão e a percepção de si como integrado ao processo de aprendizagem. 6- Os professores eram assessorados e auxiliados no planejamento de aulas, avaliações e na elaboração de uma metodologia de ensino de modo que fosse potencializado o rendimento quali-quantitativo dos alunos. Qualitativo no que se refere às aprendizagens significativas e quantitativo por conta dos conteúdos propriamente. 7- Foi proposta a elaboração de currículos motivadores, estes estabeleceriam conteúdos que atendessem aos interesses de crianças de diferentes faixas-etárias e diferentes condições sócio-econômicas. 6 - CONCLUSÃO Expostas estas considerações, podemos observar como a proposta pedagógica de Rogers atende de maneira quase modelar aos caracteres que Rose identifica na psicologia ao entendê-la como um instrumento da gestão liberal. Com efeito, se em outras práticas é necessária alguma inspeção mais atenta às suas propostas, conceitos ou formas de intervenção para que nelas se verifique um tal fim ético, podemos considerar que, em Rogers, estes aspectos são o cerne de todas as suas propostas, estão clara e imediatamente situados em tudo o que o autor diz e faz. Os mesmos predicados que Rose considera haver em todo o campo psicológico, malgrado a sua dispersão, Rogers estabelece como o estandarte de sua obra: o entendimento do sujeito como um eu individuado, sua condução a uma autonomia, à responsabilidade pelas escolhas que faz e à realização de seus interesses particulares e daquilo que tem significado em sua vida. Considerando a educação que este autor propõe, podemos ver esses critérios quando todo o valor da aprendizagem é depositado no interesse da pessoa que aprende, a qual deve definir tanto os temas desse aprendizado quanto as formas pelas quais ele ocorre; quando sua auto-disciplina é considerada o principal fator para o bom seguimento desse processo; quando a própria figura do professor é a de um criador da ambiência necessária para que o aluno aprenda por si. Ademais, o exemplo do Colégio Sallis Goulart nos mostra uma apropriação destas teorias que findou por gerar mecanismos particulares de gestão pela liberdade: planejamento arquitetônico da instituição; organização de programas específicos de estudo; 6

eventos em que a livre expressão dos alunos era a tônica; criação de serviços de atendimento educativo; auxílio do psicólogo escolar na criação de cursos potencialmente produtivos etc. Resta perguntar se, ao espacializar as relações de uma tal maneira, o projeto Sallis Goulart não recorre a medidas disciplinares mais sutis na efetivação de seus propósitos libertários. Seja a resposta qual for, nessas práticas podemos identificar uma aplicação da racionalidade liberal de governo em formas particulares e inauditas. 7 - REFERÊNCIAS EVANS, R. Carl Rogers: O Homem e suas Idéias. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1979. 196 p. FOUCAULT, M. Nascimento da Biopolítica. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008a. 474 p. (Coleção Tópicos).. Omnes et Singulatim: Por uma Crítica da Razão Política. Novos Estudos. São Paulo. n. 26 Cebrap. 1990. p. 77-99.. Segurança, Território, População. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008b. 572 p. (Coleção Tópicos). ROGERS, C. Liberdade para Aprender. 4. ed. Belo Horizonte: Interlivros, 1978. 330 p.. A aprendizagem significativa: na terapia e na educação. In: ROGERS, C. Tornar-se Pessoa. 5. ed. 3. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2001a. p. 321-341.. O ensino centrado no aluno conforme experienciado por participante.in: ROGERS, C. Tornar-se Pessoa. 5. ed. 3. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2001b. p. 342-361.. Reflexões pessoais sobre ensino e aprendizagem. In: ROGERS, C. Tornar-se Pessoa. 5. ed. 3. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2001c. p. 315-320.. Pode a aprendizagem abranger idéias e sentimentos? Em: ROGERS, C.; ROSENBERG, R. A Pessoa Como Centro. 11. reimpressão. São Paulo: EPU, 2005. p. 143-161. 7

. Poder e pessoas: duas tendências em educação. Em: ROGERS, C. Sobre o Poder Pessoal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001d. p. 79-102. ROSE, N. Governing The Soul: The Shaping of the Private Self. 2. ed. Londres: Free Association Books, 1999. 320 p.. Inventing Ourselves: Psychology, Power and Personhood. 1. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. 236 p. VIEIRA, N. Educação Centrada na Pessoa em Pelotas (RS), em 1983-1984. Uma Análise Histórica. 2002a. Disponível em: <http://www.encontroacp.psc.br/educacao.htm> Acesso em: 18 de outubro de 2009.. Idéias Pedagógicas de Rogers em Vivências no Colégio Sallis Goulart, Pelotas (RS), 1983-1984: Uma Análise Histórica. 2002. 120 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas. 2002b. Disponível em: <http://www.encontroacp.psc.br/teses.htm>. Acesso em: 18 de outubro de 2009. 8