DE NOEL ROSA E A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS: UM ESTUDO SEMÂNTICO-ENUNCIATIVO DA DIRETIVIDADE ARGUMENTATIVA NO PROCESSO DE LEITURA



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A MÚSICA POSITIVISMO DE NOEL ROSA E A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS: UM ESTUDO SEMÂNTICO-ENUNCIATIVO DA DIRETIVIDADE ARGUMENTATIVA NO PROCESSO DE LEITURA Josegleide Elioterio dos Santos gleideelioterio@hotmail.com Eliuse Sousa Silva 1. Introdução A música Positivismo de Noel Rosa e Orestes Barbosa, publicada em 1933, revela a aptidão destes compositores em construir sentidos através da apreensão de sensações obtidas no cotidiano e tão bem reveladas pelo jogo argumentativo. A criatividade manifesta na composição parece justificar, de certa forma, o cognome de Poeta da Vila dado ao sambista Noel. Aproveitando, pois, dessa habilidade linguageira, lançamos um olhar linguístico-enunciativo sobre tal composição, a fim de desvendar as questões de argumentação enquanto traço da linguagem que funciona para a produção de sentido. Interessa-nos, pois, descrever como os argumentos se organizam e como se relacionam apontando sentidos para o texto; em outros termos, interessa-nos a diretividade argumentativa no processamento da leitura. Para alcançar esse objetivo, consideramos como recurso preponderante a identificação dos lugares de dizer (enunciadores) e dos lugares sociais do dizer (locutores-x), marcados na cena anunciativa. Nesse intuito, tomaremos como unidade de estudo, os enunciados da letra da música, para identificação dos argumentos que sustentam a interpretação geral do texto. Não esquecemos, todavia, que o enunciado é parte constitutiva do texto e só significa porque integra a significação desse todo. Com tal proposta, acreditamos estar contribuindo com o estudo de texto e, por conseguinte, com a prática da leitura. Pois, a partir do momento em que se analisa a argumentação do texto através da funcionalidade dos enunciados, buscando descrever como ocorre a direti-

2276 vidade, torna-se possível rastrear os sentidos projetados através de marcas linguísticas. Esse pensamento se sustenta na Semântica Histórica da Enunciação, proposta por Eduardo Guimarães, a qual cremos ser a melhor orientação teórica para esta pesquisa, sobretudo no que tange às questões relativas à produção de sentidos. Pois, ao compreendermos o papel argumentativo da linguagem, entendemos que o seu funcionar é uma questão enunciativa, cuja significação é determinada pelas condições sócio-históricas de sua existência, sendo possível seu rastreamento através de elementos identificados no próprio texto. 2. De onde se fala A Semântica Histórica da Enunciação entende a linguagem enquanto evento histórico, marcado pelo simbólico. Isso ocorre porque ela acontece no momento da enunciação, ou seja, no acontecimento do dizer, por isso ela não é estática, nem monológica. Por não se estabelecer como algo individual, mas como espaço dividido, cujo ato de tomar a palavra funciona num agenciamento entre falantes no espaço de enunciação, é que podemos afirmar que a linguagem é antes de tudo política. Ela é política à medida que depende da especificidade e da relação entre os falantes, num espaço dividido desigualmente entre falares e falantes. Esses espaços de enunciação, que marcam o caráter político da linguagem, são lugares de constituição de línguas e falantes, onde o- corre o funcionamento de línguas que, divididas, se misturam de um modo particular (GUIMARÃES, 2005, p. 18). Nesse sentido [...], a enunciação se dá por agenciamentos específicos da língua (GUIMA- RÃES, 2002, p. 206). Esses agenciamentos constituem a cena enunciativa que concerne à especificação dos locais nos espaços enunciativos. Nela que se estabelecem os lugares do dizer, onde estão presentes as figuras da enunciação, quais sejam: o Locutor (L) aquele que se coloca como responsável pelo dizer, que se marca como o eu do discurso e o Alocutário (AL) aquele para quem se dirige o dizer, marcado como o tu. Essas figuras não são pessoas empíricas, mas dizeres. O Locutor, em especial, tem a sua relevância aqui, porque um lugar de Locutor não define para sempre a argumentação do texto, ele

2277 produz a diretividade argumentativa (GUIMARÃES, 2008, p. 99). Percebemos, então, que essa fonte do dizer, o Locutor, marcada pelo simbólico, deixa pistas que podem servir de análise para um possível entendimento por parte do leitor. O Locutor (L), o eu, é marcado pelo aspecto social e histórico. Ele é o responsável pela voz ecoada no discurso. Entretanto, esse Locutor fala de lugares específicos, lugares esses marcados também pelo social, o que determina o lugar social do dizer. Além disso, esse mesmo locutor fala de perspectivas distintas. Pensando dessa maneira, o locutor (L) se desdobra em outras duas instâncias: a do locutor enquanto afetado pelos lugares do dizer (chamado de l-x) e a do enunciador (E). O Locutor enquanto socialmente localizado é chamado de (l-x) porque essa voz marcada pelos espaços sociais e, assim, autorizada, decreta algo (x). l-x é, na verdade, a referência no mundo, por exemplo locutor-padre, locutor- escritor, esses locutores só falam aquilo que seu lugar social autoriza. O enunciador, por sua vez, se refere ao lugar de dizer, é responsável pelo ponto de vista, que pode ser genérico, universal, individual ou coletivo. O Locutor, então, pode falar como um enunciadorgenérico, ou seja, como sendo uma voz de todos, que fala de um lugar comum, como, por exemplo, os ditados populares. Pode ainda se colocar como um enunciador-individual, que fala a partir de um dizer marcado pelo eu, principal marca da individualidade; ou como um enunciador-universal, que apresenta a perspectiva de um dizer baseado nas concepções de verdadeiro e falso, típicas do discurso científico. Pode, por fim, falar como um enunciador-coletivo, que diz em nome de um grupo específico, a exemplos de dizeres próprios de alguns grupos como o de professores, partidos políticos etc. É nesse quadro teórico de desdobramento do locutor que se pode tratar da diretividade argumentativa, uma vez que, para nós, essa diretividade se constitui como a interpretação que os elementos linguísticos apontam ou sinalizam no enunciado, como afirma Guimarães (2008, p. 89): A análise das articulações dos enunciados e nos enunciados é o estudo da orientação argumentativa produzida pelos enunciados. Então orientar significa dá uma possível interpretação àquilo quê se diz. E isso é possível porque a argumentação deixa si-

2278 nais que norteiam possíveis orientações que nos levam às injunções da interpretação. Assim, rastrearemos os sentidos produzidos na letra da música Positivismo, considerando o locutor e seus desdobramentos como forma de orientar a argumentação ao leitor. Assim, analisar a constituição do texto implica levantar várias questões presentes no lugar de enunciação a partir de recortes feitos desse mesmo texto, que aqui entendemos como enunciados. Vale ressaltar que compreendemos o texto, assim como Guimarães (2010, p. 22), como uma unidade de sentido global, integrado por enunciados, dotado de um significado. Então analisar semanticamente um texto significa analisar o funcionamento desses enunciados e suas articulações na construção do sentido. 3. Das vozes que dizem o que desejo dizer Sentimos necessidade em desenvolver este tópico para melhor conduzir o nosso estudo sobre a diretividade argumentativa a partir da análise da cena enunciativa. Por isso, inicialmente, apresentamos a letra da música a fim de que o leitor possa acompanhar a nossa estratégia discursiva e observar os caminhos que a semântica histórica da Enunciação nos oferece para fazer a análise. [a]a verdade, meu amor, mora num poço É Pilatos lá na Bíblia quem nos diz [b]e também faleceu por seu pescoço O autor da guilhotina de Paris [c]vai, orgulhosa, querida Mas aceita esta lição: [d] No câmbio incerto da vida A libra sempre é o coração [e]o amor vem por princípio, a ordem por base O progresso é que deve vir por fim Desprezastes esta lei de Augusto Comte [f]e fostes ser feliz longe de mim [g]vai, coração que não vibra Com teu juro exorbitante [h]transformar mais outra libra Em dívida flutuante [i]a intriga nasce num café pequeno Que se toma pra ver quem vai pagar

[j]para não sentir mais o teu veneno Foi que eu já resolvi me envenenar 2279 Assim posto, entendemos que cada locutor, marcado por certos lugares sociais na cena enunciativa, está autorizado a dizer algumas coisas e a não dizer outras. Esta permissão pode conduzi-lo a recorrer a outras vozes que, somando àquilo que ele diz, sirvam não apenas como outras vozes, mas também como estratégia de argumentação, uma vez que ao dizer de outros lugares para reforçar uma argumentação dada está, ele também, sustendo um dizer. Na letra da música em questão, existe um eu que é responsável por toda argumentação do texto, esta voz é marcada pelo lugar social do poeta (l-x 1 ), é este locutor que indica, por exemplo, que alguém sofreu por amor e que no momento busca restituir-se. Assim, temos um locutor que ao falar de um lugar de poeta, apresenta sua visão individual dos fatos e sua subjetividade, cuja principal característica é a afloração do eu- lírico, especialmente em um texto artístico que é a letra de música. Desta forma, este lugar de dizer marcado pela particularidade apresenta um enunciador-individual preocupado com o próprio sentimento, dando exatamente as características subjetivas do texto. Entretanto, é preciso esclarecer que esse locutor-poeta não é marcado linguisticamente no texto. O que garante sua visibilidade é a confirmação de que ao se tratar de um texto artístico, cujo objetivo seria o despertar emoções no alocutário, existe uma voz que é responsável por todas as vozes presentes na enunciação, esta seria a voz do artista, aqui, denominado de poeta. Embora o l-x 1 seja o responsável pela voz global do texto, ele recorre a outras vozes para apresentar outras perspectivas para sustentar o seu dizer, é desta forma que surgem outros locutores e outros e- nunciadores. Neste momento, nos interessa a voz de um eu que fala para sua amada, um segundo locutor socialmente identificado como locutor-amante (l-x 2 ), aquele que sofre as dores de um amor não correspondido. O l-x 2 é o eu principal nesta análise porque é dele a voz que orienta linguisticamente e sustenta toda a argumentação sugerida neste texto.

2280 Nesta perspectiva, a alteração de locutores abarca também a alteração de enunciadores que neste caso, se desdobra em individual e genérico. Observemos o enunciado: [f] E fostes ser feliz longe de mim. Temos em [f] uma marca explícita de individualidade, o mim que ao referir-se a um eu não pode ser confundido com a voz do locutor-poeta. Esta diferenciação é possível porque esta voz particularizada é do locutor-amante, uma vez que se trata de um dizer que apresenta sofrimento por causa da separação da amada, demonstrando uma posição enunciativa individual. Da mesma forma, esse mesmo locutor, resgata outros pontos de vista originários do lugar comum. A presença do operador argumentativo mas na letra da música, onde se diz: Vai, orgulhosa, querida mas aceita esta lição insere um novo enunciado e apresenta esse outro enunciador, que será apresentado em [d], um enunciador genérico que afirma aquilo que o locutor - amante gostaria de afirmar, a ver: [d] No cambio incerto da vida a libra é sempre o coração. Este recorte apresenta uma interpretação generalizada de que, ao coração, cabe o peso das decisões frente às incertezas da vida, pois toda decisão a ser tomada deve-se levar em consideração aquilo que o coração determina. Entendamos, pois, que o l-x 1, parecia ser a única voz da enunciação, entretanto surgem outros locutores e outros lugares de dizer. Então, da mesma forma que o l-x 1 apresenta uma nova voz, o l-x 2 também busca outras fontes para sustentar o seu dizer, a partir de outros dizeres, temos então outros locutores na cena enunciativa que os permitem dizer de um lugar que o amante e o poeta não estão autorizados a falar, o da filosofia e o da religião. Vejamos: [a] A verdade mora num poço. Neste [a] percebe-se, notoriamente, que se trata do lugar da religião porque é explicitada no texto que esta é a voz de Pilatos, dito na Bíblia, não restando dúvidas de que se trata de um dizer marcado pela religião, revelando desta forma um enunciador- universal.

2281 Da mesma forma que se busca a voz da religião, o locutoramante recorre também ao lugar da filosofia, temos então a presença do locutor-filósofo: [e] O amor vem por princípio, a ordem por base O progresso é que deve vir por fim Em [e] se confirma a marca explícita do dizer de outro lugar a partir da presença da palavra Augusto Comte, que não demonstra, a- penas, a presença de outra voz, como também a de outro ponto de vista. Vale salientar ainda, que a presença deste locutor é previsível, dado o título da canção. O próprio título Positivismo já insere no alocutário certa expectativa de uma voz oriunda da filosofia. Até então, a representação da cena enunciativa do texto mostra um locutor (l-x 1 ) preocupado em apresentar seu dizer a partir de outras subjetividades e verdades. Esta mescla de vozes e dizeres, presentes neste texto, traz para a letra de canção um embate de muitos eus e perspectivas de dizer que servem, inicialmente, como uma forma de rastreamento da diretividade argumentativa. 3.1. De como produzir sentidos e direcionar argumentos pelos dizeres As formas como os locutores e enunciadores se distribuem no texto, revela sobre a diretividade argumentativa que o texto orienta, por este motivo faremos uma análise destes dizeres, para compreender o funcionamento destas vozes para produção de sentido na letra da música Positivismo, assim, ressaltamos que existe: Um locutor-poeta QUE recorre a um locutor-amante QUE recorre a um locutor religião e a outro locutor filósofo. A letra da canção se inicia com uma voz extraída da religião como se observa em [a], em seguida, aparece a voz do locutor-amante, falando da perspectiva do enunciador-genérico em [b], como quem o- rienta: A religião diz [a] e todos dizem [b]. Noutro momento, na segunda estrofe, surge a voz do locutoramante, falando a partir de um enunciador- individual em [c], este, fala diretamente para o alocutário, no caso a amada. Entendemos esta

2282 correlação pela presença da palavra vai, em seguida, este mesmo locutor sai da perspectiva individual e insere outro lugar de dizer, o genérico em [d], tendo como objetivo dizer que: A religião diz [a], todos dizem [b], por isso eu digo [c]. E Afirmo isto porque todos também dizem [d]. Então, dada esta primeira cena enunciativa como forma de direcionar o dizer, o locutor-amante, na terceira estrofe, resgata um eu oriundo de um dizer universal, pela fala de um locutor- filósofo em [e], depois apresenta um enunciador- individual em [f] e [g], se aproximando da mesma estrutura apresentada nas duas primeiras estrofes, direcionando para a seguinte interpretação: A filosofia diz [e] por isso eu digo [f] e [g]. Usando o lugar da filosofia, enquanto dizer universal torna-se mais fácil impor as próprias palavras, é o que se vê, por exemplo, nos três últimos enunciados do texto: o locutor-amante utiliza um enunciador- individual em [h], faz outra referência ao enunciador- genérico, buscando uma voz comum em [g] e depois justifica sua atitude, na escolha de um enunciador- individual em [i]. Teríamos, assim, resumidamente, a seguinte representação global das vozes do texto: A religião diz [a] e todos dizem [b], por isso eu digo [c]. E Afirmo isto porque todos também dizem [d]. A filosofia, por sua vez diz [e] o que me autoriza a dizer [f] e [g]. Eu digo que você faz [h], mas todos dizem [i], então eu faço [j]. Até então é possível perceber que a presença de várias vozes no texto oferece certa maleabilidade, reforçando o fato de que a disposição dos locutores e seus pontos de vista também se constituem numa análise da diretividade argumentativa. 4. De como direcionar o que eu digo Anteriormente já apresentamos uma forma de conduzir esta diretividade a partir da escolha e disposição das vozes no texto, neste momento nos debruçaremos sobre o sentido global do texto e, como o locutor faz para que o leitor chegue à mesma conclusão que ele oferece, a partir da seleção e compreensão de argumentos. Por nossa análise, a argumentação que se sobressai na letra dessa música, e que aqui chamaremos de conclusão (r) é a de que:

r = A amada ignora o amante e ele também a ignorará. 2283 Temos neste caso a primeira direção possível sobre a futuridade deste texto, comecemos por identificar alguns enunciados que, em comunhão com todo o texto, direcionam e argumentam para a conclusão: r = Enun1. A verdade, meu amor, mora num poço Enun.2 Faleceu por seu pescoço O autor da guilhotina de Paris Enun.3 Vai, orgulhosa, querida Enun.4 No câmbio incerto da vida A libra sempre é o coração Enun.5 O amor vem por princípio, a ordem por O progresso é que deve vir por fim Enun.6 Fostes ser feliz longe de mim Enun.7 Vai, coração que não vibra 1 Com teu juro exorbitante Enun.8 Transforma mais outra libra Em dívida flutuante Enun.9 A intriga nasce num café pequeno Que se toma pra ver quem vai pagar Enun.10. Para não sentir mais o teu veneno Foi que eu já resolvi me envenenar base Temos então a seguinte orientação argumentativa para os e- nunciados acima: Enun.1 ) a verdade é algo que deve ser buscada a fundo, e esta é a verdade que ele dirá ) 2 r Enun.2 ) toda causa tem consequência e a amada pagará pelo que fez. ) r 1 - Para analisar este enunciado, precisaríamos ter conhecimento de certas construções lingüísticas do período em que a música fora escrita. A Semântica Histórica da Enunciação trata a questão através do conceito de Temporalidade, ressaltando a importância dos discursos memoráveis para projeção do sentido. Ver Guimarães (2005). 2 O sinal ) significa é argumento para, indicando para quê possibilidade de sentido o enunciado argumenta.

2284 Enun.3 ) a amada segue orgulhosa e ignorando-o. ) r Enun.4 ) o sentimento deve estar em primeiro plano, realidade que ela não seguiu ) r Enun.5/ 6 ) a amada, esquecendo-se do amor, opta por viver feliz longe do amante ) r Enun.8 ) a amada segue fazendo outras pessoas sofrerem )r Enun.9 ) o sentimento pode esvair sem grandes motivos )r Enun.10 ) ele cansado de ser ignorado, resolve ignorá-la ) r Pela análise dos enunciados percebemos que o locutor orienta todo o texto para a mesma conclusão a amada ignora o amante e ele também a ignorará. Este arremate é logo apresentado nos primeiros versos, da primeira estrofe, quando se observa afirmação de ele que buscará a fundo a verdade e que a verdade é que se devolve ao outro aquilo que dele recebemos, no caso em questão, o desdém. Esta argumentação, dada inicialmente em [r] será costurada por todo o texto, a ponto de chegar ao final, igualando-se a amada, como é confirmado no último verso, quando o locutor- amante pronuncia que Para não sentir mais o teu veneno foi que eu já resolvi me envenenar. 5. Conclusão Toda a análise do funcionamento da diretividade argumentativa como forma de entender a futuridade do texto leva-nos a compreender que a presença de locutores diferentes, numa mesma cena enunciativa, pode se constituir numa análise importante para a orientação argumentativa, uma vez que as vozes inseridas no texto partem de uma escolha do locutor. Isso confirma que os dizeres não se constituem em escolhas a- leatórias, mas que são marcados pela história, pelo simbólico e pela autorização de dizer aquilo que se propõe a dizer. Neste aspecto, o locutor-poeta é a voz maior que direciona toda a enunciação, tornandose o responsável por ela. Pensando assim, as outras vozes não são a- penas formas de dizer um diz que alguém diz, é antes o um dizer a partir de outro dizer para confirmar o que o poeta diz.

2285 Da mesma maneira, a análise dos enunciados se estabelece como análise relevante pelo fato de que a cena enunciativa se ocupa de diferenciar os lugares do dizer e o porquê do dizer, mas não revela, por exemplo, o como se chega à determinada conclusão. Nesse texto, observamos que todos os enunciados apontam para a mesma conclusão [r], diminuindo por parte do leitor a possibilidade de inserir todo e qualquer significado. Então entendemos que a produção de sentidos na leitura sempre será orientada pelos enunciados, que, como parte de um todo, que é o texto, mostra a direção interpretativa a ser tomada. Por tudo o que fora analisado, se confirma que a Semântica Histórica da Enunciação contribui, positivamente, para o processo de interpretação de textos, uma vez que oferece subsídios para uma análise mais detalhada da constituição do sentido. A possibilidade de análise a partir da argumentação orientada, serve de auxílio para descrever como os argumentos se organizam, apontando os sentidos para o texto e, desta maneira, ajudando no processamento de leitura. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 1989.. Problemas de linguística geral I. 3. ed. Campinas: Pontes, 1991. DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1988. GUIMARÃES, Eduardo. Texto e argumentação: um estudo das conjunções do português. 4. ed. Campinas: Pontes, 2002.. Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo a designação. 2. ed. Campinas: Pontes, 2005.. Quando o eu se diz ele: análise enunciativa de um texto de publicidade. Revista da ANPOLL. 26-jun-2010. Disponível em: <http//www.anpoll.org.br/revista/índex.php/ver/172/185>. Acesso em: 24-jul-2010.. Um contra-argumento delocutivo: Fala sério. Revista Letras e Línguas. Paraná. V. 9, n 0 16, 1 0 sem. 2008, p. 85-101. Disponível em: <http://e-

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