Second Life: vida e cidadania além da realidade virtual? *Francisco José Paoliello Pimenta **Júlia Pessôa Varges



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1 Second Life: vida e cidadania além da realidade virtual? *Francisco José Paoliello Pimenta **Júlia Pessôa Varges Esta comunicação intenta descrever etapa de pesquisa de campo dirigida ao estudo de duas plataformas de entretenimento eletrônico, o já tradicional The Sims e o mais recente Second Life, a partir de questões sobre as interrelações entre vivências no cotidiano físico, concreto, e as novas possibilidades de relacionamentos humanos em cenários digitais imersivos como base para a participação política. Como conclusão parcial sugere que a instância das trocas digitais não está apta e nem deve substituir os encontros pessoais, especialmente quando estão em jogo questões relacionadas à sociedade, à política e à cidadania. Palavras-chave: Cidadania; Movimentos Sociais; Imersão digital Esta comunicação intenta descrever etapa de pesquisa de campo dirigida ao estudo de duas plataformas de entretenimento eletrônico, o já tradicional The Sims e o mais recente Second Life, a partir de questões sobre as interrelações entre vivências no cotidiano físico, concreto, e as novas possibilidades de relacionamentos humanos em cenários digitais imersivos como base para a participação política. Como conclusão parcial sugere que a instância das trocas digitais não está apta e nem deve substituir os encontros pessoais, especialmente quando estão em jogo questões relacionadas à sociedade, à política e à cidadania. Os resultados deste trabalho inserem-se nos esforços realizados por um dos grupos de pesquisa do Programa de Educação Tutorial da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora, composto por bolsistas de iniciação científica, reunido em torno de pesquisa de pós-doutorado intitulada Ciberativismo na Iberoamérica: do despertar em Chiapas aos movimentos urbanos em Barcelona e Madrid. O objetivo geral desta investigação é o de analisar se a geração de interpretantes mais ricos via representação da imersão parece apta a colaborar no sentido da construção de hábitos mentais de maior razoabilidade para o ciberativismo, ao atender aos requisitos de seu summum bonum estético, voltado para a democracia participativa e para um novo internacionalismo. 1. O Existente e o Ciberespaço 1

2 Com a difusão e aperfeiçoamento da Internet, o chamado ciberespaço vem se tornando um ambiente cada vez mais imersivo, sobretudo a partir do desenvolvimento das plataformas de jogos virtuais. Além desta qualidade, existe, ainda, o chamado agenciamento. Nas palavras de Janet Murray, autora de Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço : Quando as coisas que fazemos trazem resultados tangíveis, experimentamos o segundo prazer característico dos ambientes eletrônicos - o sentido da agência. Agência é a capacidade gratificante de realizar ações significativas e ver os resultado de nossas decisões e escolhas. (MURRAY, 1997, p.127) Deve-se ter em mente, ainda, que o elevado grau de agência proporcionado pelas plataformas dos jogos virtuais atuais deve-se não apenas à qualidade de resolução das imagens ou à possibilidade da criação de uma narrativa que se faz enquanto as ações acontecem (no caso de jogos que possuem narrativas, como os RPGs online), mas principalmente à linguagem multicódigos da hipermídia. Para Lucrecia D Aléssio Ferrara: Complementado e enriquecido pelo imaginário, o virtual é um domínio não apenas visual, mas polissensorial (...) Desta forma, o universo do virtual não se refere apenas à imagem visual, mas pode atingir outros sentidos. No entanto, em qualquer caso, não é similar á realidade, pois pode levar a uma revisão do real na medida em que provoca outras possibilidades perceptivas (FERRARA, 2002, p.63) No entanto, para compreendermos a revisão do real da qual fala Ferrara, é preciso que consideremos, a princípio, que os processos de coerção social sempre acabam por nos constranger à adoção de hábitos de sentimento, ação e de pensamento. Em âmbito virtual, a presença destes limites é muito menor, pois embora existam regras e padrões de conduta até mesmo em jogos eletrônicos, o indivíduo está muito mais livre de controles de qualquer ordem frente a alguma ação que pratique. Isso acaba levando o interator a fazer coisas que não faria no mundo real e, até mesmo, a construir uma outra personalidade na vida offline. Em texto no qual descreve pesquisa sobre a importância do lúdico na Internet, frente à dualidade corpo real e corpo virtual, a pesquisadora portuguêsa Maria Paula Oliveira Justiça afirma: (...) no mundo real, o indivíduo pode não ter possibilidade de escolher o papel que deseja representar, enquanto que essa facilidade lhe poderá ser facultada no ciberespaço. Sendo assim, poderá imaginar-se um mundo virtual mais real do que o mundo real, em que cada um representa a personagem que desejaria ser, pelo menos nesse momento, na sua vida real.(justiça, 2003). Esta possibilidade de adoção de uma nova personalidade nos ambientes imersivos nos conduz, então, à discussão sobre as ações realizadas no meio virtual frente às ações no plano da existência física. Em outras palavras: até que ponto o interator pode vir a utilizar o 2

3 ambiente de imersão para representar o existente, de forma a potencializar a vida cotidiana e realizar assim, sua revisão, em vez de substituí-la? O desenvolvimento de plataformas multicódigos, proporcionando uma imersão gradativamente maior nos ambientes virtuais torna estas questões ainda mais complexas. Tais reflexões nos lançam, ainda, na esfera da participação política por meio da Internet e, daí, ao ciberativismo. Em trabalhos anteriores, descrevemos esta atual tendência de organização em redes virtuais por parte de variados grupos voltados para a mobilização política, principalmente aqueles de caráter global, porém quase sempre vinculada a limitações na compreensão das possibilidades dos processos sígnicos multicódigos, entre eles os imersivos. Destacamos, a propósito, a desconexão entre as chamadas ações de rua e as mobilizações via Rede e, daí, o apego a contextos locais num movimento que se pretende planetário (PIMENTA, 2006). Seria interessante, assim, tentarmos apontar saídas para tais limitações. 2. Vida Artificial e Deriva Os jogos ambientados em mundos virtuais nos quais o interator incorpora um personagem, seu avatar, geralmente não possuem uma finalidade. O avatar pode ser visto, assim, apenas como uma máscara ou um boneco. É o meio pelo qual as ações são materializadas em um ambiente virtual. Sua criação acaba permitindo que seu agenciador esconda sua identidade original, podendo interagir, assim, com outros avatares no universo virtual, mantendo seu anonimato. Nestes jogos, as metas são demarcadas autonomamente pelo jogador, que escolhe as melhores opções para aprimorar seu personagem e sua própria narrativa (caso se trate de um jogo com narrativa). Há, neste caso, uma potencialização da agência. Nos ambientes virtuais, o interator tem uma possibilidade constante de mudança em sua realidade, numa dinâmica participativa propensa à experimentação de múltiplas variações. O indivíduo tem, por exemplo, plenos poderes para definir cada característica de seu personagem, em seus aspectos físicos, psicológicos, vestuário, hábitos e traços de caráter. Enfim, o interator domina cada detalhe da composição do seu avatar. Dessa forma, há a vivência literal da capacidade gratificante de realizar ações significativas e ver os resultado de nossas decisões e escolhas, ou seja, a própria definição de agência, segundo Murray. Existem outros aspectos inerentes aos jogos online que contribuem para este exercício de agência. Um traço marcante é a vivência nos espaços do cibermundo. Willian Gibson (1991), em seu livro de ficção Neuromancer, foi o primeiro autor a utilizar o termo ciberespaço para designar este ambiente artificial, onde dados e relações sociais circulam indiscriminadamente. Para ele, o conceito é o de um espaço não físico ou territorial no qual uma espécie de alucinação consensual pode ser experimentada diariamente pelos 3

4 usuários. Assim, o ciberespaço seria uma região abstrata invisível que permite a circulação de informações por meio de signos multicódigos. Daí, em muitos casos, o prazer do interator de um game online está na fruição deste espaço criado virtualmente e não em cumprir alguma tarefa visando alguma missão ou vencer alguma adversidade, como normalmente se espera de um jogo. Esta relação de prazer na vivência dos espaços permite uma aproximação com o pensamento situacionista fundado nos anos 50. Entre outras estratégias contra a massificação capitalista, os situacionistas propunham a deriva na relação dos indivíduos com o espaço urbano. Como deriva, os situacionistas definiam: Modo de comportamento experimental, ligado às condições da sociedade urbana; técnica que consiste em passar apressado, por ambientes diversos. Designa, também e mais particularmente a duração de um exercício contínuo dessa experiência.(i.s., 1958) Ainda sobre a deriva, Debórd afirmava que: A duração média de uma deriva é de um dia, considerado como o intervalo de tempo compreendido entre dois períodos de sono. Os pontos de partida e de chegada, no tempo, em relação ao dia solar, são indiferentes (...). (DEBÓRD, 1956) A ambientação dos games online é, hoje, um espaço bastante adequado para o exercício da deriva. Um ambiente que além de ser vivenciado, é construído pelos próprios interatores em cada detalhe, e em âmbito coletivo. Trata-se de um exercício de lucidez compartilhada acerca de uma realidade construída, uma vez que, na concepção situacionista, o espaço imprime marcas em quem o vivencia.(varges, 2005). Este tipo de prazer fica ainda mais evidente em jogos que, de fato, simulam a vida cotidiana. Janet Murray explica que: Por intermédio de um conjunto de convenções formais, o meio digital oferece um grande desafio no sentido de expressão e construções de narrativas onde são encenadas as possibilidades de mudanças em certas situações simuladas da vida, com a solenidade adequada, dentro de um mundo em constante mutação. Acontecimentos encenados têm um poder transformador que excede tanto os fatos narrados quanto dramatizados, pois nós os assimilamos como experiências pessoais (MURRAY, 2003, p.166). Todas estas características sugerem que este meio pode vir a se tornar um instrumento bastante útil para mobilizações políticas em escala global. De fato, frente aos desafios colocados pela nova conformação internacional, nas suas diferentes esferas, econômicas, sociais, culturais e políticas, dentre outras, e sua abrangência planetária, a Internet aparece como uma ferramenta que pode contribuir para que os valores da cidadania tenham um canal de comunicação amplamente disponível, a baixo custo e de mesmo alcance. Neste sentido, já desenvolvemos diversas pesquisas a respeito (PIMENTA, 2006), que, ultimamente, nos apontam não só para a riqueza dos processos sígnicos multicódigos, 4

5 como os dos jogos digitais, mas, ainda, para a possibilidade destes ambientes imersivos se constituírem numa esfera complementar aos esforços da luta pela cidadania que se desenvolvem no âmbito da vivência física cotidiana. Tendo este objetivo em vista, faremos, agora, uma curta descrição de dois destes ambientes para, em seguida, avaliar as possibilidades de plataformas como estas para o ciberativismo. 3. SIMulando a vida cotidiana Talvez o The Sims seja, ainda hoje, o exemplo mais popular de jogos de simulação. Criado, em 2000, pelo designer de jogos Will Wright e distribuído pela Máxis, o jogo concentra-se inteiramente em pessoas virtuais, avatares, chamadas "Sims", deixando o jogador no controle de uma família virtual e de suas variadas atividades diárias. No The Sims, o jogador deve tomar decisões pelo seu avatar e se relacionar interativamente, sem objetivos pré-estabelecidos. A única meta é a organização do tempo dos Sims, na forma de uma agenda de tarefas que os bonecos virtuais têm de cumprir para melhorar o desempenho pessoal do jogador. Se os Sims não receberem os cuidados necessários, eles adoecerão e, conseqüentemente, morrerão. Apesar de o controle do jogador ser imprescindível, os Sims são capazes de responder a condições externas sem qualquer tipo de comando. Os avatares estão sempre condicionados a algum tipo de interação com os objetos do jogo, desde os mais simples aos mais complexos (algum outro avatar, por exemplo). A interação social também é muito relevante nesta plataforma, e, assim, os avatares podem freqüentar festas, ir ao trabalho ou simplesmente telefonar para outros Sims. Os Sims também podem receber visitas de outras famílias, que ficam arquivadas no jogo. Os visitantes têm ações automáticas, isto é, o jogador não pode controlar o Sim que está visitando sua casa, apesar de poder (e dever) interagir com ele. Daí, o ato de receber visitas é muito importante para uma vida social saudável, que, como já foi dito, é um aspecto fundamental na longevidade de um Sim. A interface gráfica de The Sims é uma mescla de 3D e 2D. Os avatares são tridimensionais, mas a casa e todos os seus objetos são bidimensionais. Talvez o que explique o notável sucesso do jogo seja o fato de que ele reproduz os mais variados aspectos da vida cotidiana, real. Ter filhos, ir ao trabalho, casar-se num ambiente virtual parece ter se tornado mais interessante do que matar monstros ou acumular pontos ao longo de fases, como normalmente ocorre em outros jogos de interação. Em dezembro de 2002, a Maxis lançou, apenas nos EUA e no Japão, o The Sims Online. A versão é uma releitura do The Sims original, porém com um princípio interativo que se assemelha ao dos MMORPG (Massively ou Massive Multiplayer Online Role-Playing Game ou Multi massive online Role-Playing Game), ou seja, um jogo de computador ou videogame 5

6 que permite a milhares de jogadores criarem personagens em um mundo virtual dinâmico, em tempo real, na Internet. Apesar de não ter sido, propriamente, um fracasso, esta versão foi muito criticada e as expectativas quanto a possibilidades de interação produtiva foram frustradas. Por outro lado, e para bem ou mal, há relatos de que esta comunidade online vem sofrendo uma espécie de degeneração. Prostituição e outras atividades questionáveis vêm se popularizando no ambiente imersivo, o que, de resto, é comum num ambiente online de livre acesso e múltiplos usuários. É difícil estabelecer um filtro sobre os valores transmitidos por meio de uma plataforma virtual.. Se, por um lado, isso leva a este debate sobre uma possível ameaça à cidadania por meio dos jogos, por outro é possível afirmar que cada vez mais eles se aproximam da vida real, em seus melhores e piores aspectos. 4. Um outro mundo é possível? Baseado no princípio da imersão e da interação, o Second Life se auto-define como um mundo de posse e construção exclusivas dos seus habitantes (extraído de www.secondlife.com). Ao contrário de muitas plataformas similares, esta foi desenvolvida para o trabalho criativo. Isto quer dizer que o mundo virtual que vemos no Second Life é inteiramente construído dentro da própria plataforma, pelos usuários dela. Desde que foi aberto ao público em 2003, pela microempresa californiana Linden Lab, o projeto vem crescendo em grande escala e tem, hoje, cerca de 100.000 habitantes do mundo inteiro. Existe um plano de acesso básico e gratuito, com algumas limitações, e dois planos que acumulam possibilidades de ações e ferramentas de acordo com o que se paga mensalmente. Qualquer que seja a forma de acesso, é surpreendente o enorme território a ser explorado, com vastas opções de entretenimento, experiências, contatos pessoais e oportunidades. Modelos como os MUDs (multiple user domain) ou MUSHs (multiple user shared hallucination), onde centenas de milhares de pessoas dialogavam num ambiente textual em que existiam descrições de quartos, casas e cidades, são os antecessores destas novas realidades virtuais em 3D; que por sua vez são precursoras da imersão total, antevista em filmes como Matrix, e proclamadas por Stephenson, Stirling ou Gibson nos seus romances. (trecho do artigo Second Life - a Matrix ao nosso alcance, disponível em www.simetria.org/visual1layout1article197.html) A plataforma é 100% tridimensional e possui aplicações para Windows e Mac. Para Linux, está disponível apenas em versão alpha. Embora o ambiente não seja fotograficamente realista, há uma grande riqueza de detalhes nas imagens. A construção de avatares, por exemplo, oferece possibilidades quase infinitas, apresentando ferramentas que permitem ao usuário criar seu personagem em pormenores estéticos que vão desde o formato do nariz 6

7 até a pigmentação da pele. Além disso, a aparência do avatar pode ser mudada a qualquer momento da vida in world (expressão usada pelo próprio Second Life para designar a existência no mundo virtual). A sociedade virtual é consideravelmente complexa em sua estrutura, sobretudo no que diz respeito às funções sociais, a partir de seu parâmetro no cotidiano vivido físicamente. Contudo, mesmo frente a tal complexidade, os criadores da plataforma não moderam a atividade dos habitantes, são meros observadores. A Linden Lab apenas fornece tecnologia para que os habitantes construam o seu mundo, da maneira que lhes for mais conveniente. Desta forma, atuam fornecendo ferramentas e não soluções pré-estabelecidas. Até porque, ao contrário dos MMORPGs, não há como prever o tipo de problema que acontecerá neste tipo de plataforma, uma vez que seu desenvolvimento se dá a partir de escolhas que partem exclusivamente de seus habitantes. Por isso, não é correto definir o Second Life como um jogo. É fato que a ambientação 3D traz a lembrança de um game e também é verdadeiro que o nível de entretenimento e o aspecto lúdico da plataforma são marcantes. Entretanto, como já foi dito, inexistem procedimentos pré-programados, objetivo final ou regras pré-estabelecidas. As regras já existentes foram criadas pelos próprios interatores no sentido de manter a coesão social no ambiente virtual. Até o momento, o Second Life é uma realidade virtual que se dedica apenas a simular a vida real, em seus mais diversos aspectos. Existem jogos dentro da plataforma, que vão desde cassinos a corridas de cavalo, e até concursos massivos de RPG, mas tudo isso seguindo a idéia de reproduzir, simular o que existe, de fato, na vida real. São criações dos habitantes para seu próprio divertimento. Quanto ao aproveitamento da linguagem multicódigos do ciberespaço, o SL inova pouco ou quase nada. A interação entre os avatares ainda é basicamente textual, embora seja possível que usuários troquem arquivos específicos da plataforma entre si, como peças de vestuário, utensílios, etc. O sistema dispõe de arquivos de som e vídeo, incluindo a produção in world de filmes por avatares cineastas, porém estes não são imprescindíveis à utilização da plataforma, e sim um adicional dela. Um ponto interessante é que os habitantes do mundo virtual podem criar qualquer coisa que imaginarem, desde objetos a grandes centros de entretenimento por meio de uma interface flexível e de operação intuitiva. Uma vez que um usuário tenha construído alguma coisa no mundo virtual, ele pode facilmente começar a vender sua criação para outros habitantes, por meio de direitos autorais controlados por seu número de IP. Outro dos aspectos mais marcantes do Second Life, senão o principal, neste momento, é sua economia. O Sl tem sua economia própria e sua moeda de circulação, os Linden dollars (L$). É possível até mesmo adquirir, no mundo virtual, quantias do dinheiro corrente no 7

8 mundo real. Segundo a Wikipedia (www.wikipedia.com), a economia do Second Life gera, semanalmente, U$ 500 mil, em média, na economia americana. Além disso, os avatares podem ter seus empregos e até mesmo montar seu próprio negócio in world. Existe uma possibilidade enorme de opções de ocupações e oportunidades no vasto mapa, que vão, por exemplo, de engenheiro espacial a designer de avatares. Existe também um Terceiro Setor do SL, extremamente desenvolvido. Além de apoio para campanhas no mundo real de arrecadação de dinheiro para instituições reais, os avatares podem fazer trabalho voluntário dentro do próprio SL, contribuindo para a sociedade online. 5. Second Life: vida e cidadania além da realidade virtual? A partir do que foi visto acima, podemos constatar que, de fato, tais plataformas imersivas colocam num outro plano, bem mais complexo, a questão das diversas articulações entre a vida no cotidiano físico e na Rede. Com a sofisticação das representações sígnicas, aumenta a sensação de imersão e, daí, do usuário ser um agente transformador a partir da Internet. No caso que nos interessa mais de perto, ou seja, do ciberativismo, voltado para a difusão dos valores da cidadania, todas estas questões trazem à tona a busca das melhores estratégias possíveis de utilização desta tecnologia. Verifica-se uma tendência, constatada em pesquisas anteriores (PIMENTA, 2006), de uso da Internet por ciberativistas apenas como suporte para ações de rua sem uma exploração mais sofisticada de suas capacidades de representação multicódigos. Os jogos, contudo, vêm mostrando que é possível articular os dois universos, da existencialidade física e da ação simbólica por meio de plataformas digitais. Existe uma complementaridade no sentido de realizar na Rede o que é irrealizável no mundo real. Ou melhor, realizável mas condenável, inviável ou trabalhoso. Ou, ainda, porque o grande diferencial principalmente do Second Life em relação às plataformas de simulação que o antecederam é que ações neste mundo virtual geram mudanças, reações efetivas e imediatas no mundo real, e não apenas as sugerem ou incitam. O resultado real das ações no Second Life independem de ações humanas no mundo offline. Isto fica evidente uma vez que nos lembremos, por exemplo, que é possível gerar dinheiro real através de ações realizadas em cibermundo e, ainda, fazê-lo em prol de uma causa real como bandeira de uma organização real. O SL se constitui, assim, num ambiente experimental bastante rico e esta é uma peculiaridade que já vem sendo amplamente utilizada. Universidades estudam comportamentos sociais ou planejamento urbano usando o Second Life. Já uma entidade de auxílio a deficientes motores utiliza a plataforma para permitir aos seus doentes uma socialização sem preconceitos. Outras instituições utilizam a plataforma como salas de aula e como ferramentas extracurriculares para fomentar a percepção espacial, a geometria 3D, e também como 8

9 incentivo à utilização de ferramentas de artes gráficas e de animação, cujos resultados podem ser importados de volta para a plataforma. Existem, ainda, a possibilidade de aprendizado eletrônico e videoconferências ou trabalho colaborativo, que realmente funcionam apropriadamente no Second Life, ao contrário do que ocorria em outras plataformas. Portanto, trata-se de uma ampliação dos espaços de ação que pode ser utilizada para a mobilização política. Nas palavras de Lucrécia Ferrara: Esse novo espaço público é virtual e em franca expansão mundial; portanto, a dinâmica dos fluxos dos lugares cosmopolitas ou da metrópole reescreve-se em dinâmica fluida e flexível. É a opinião mundial nas ruas do planeta, a opinião pública mobilizada e em franco desenvolvimento desempenhando importante papel nas tomadas de decisão mundiais, de que são exemplos os movimentos associativos que sustentaram o debate público no mundo todo como evidenciaram os fóruns sociais que parecem estar dando outra expressão à sociedade civil. Surge um meta-território da condição de cidade entendida como territorialidade que se caracteriza pelo exercício da apropriação social e cultural das raízes que sedimentam o pertencimento e a identidade individuais e coletivas. (FERRARA, 2005, p. s/n). É, assim, o novo espaço público ampliado pela Rede que cria um ambiente favorável à retomada das propostas situacionistas para a cidade, articulando a deriva e a construção de situações com a revolução comunicacional propiciada pela tecnologia digital, agora potencializada pelas plataformas imersivas. A revisão do real, da qual tratamos acima, pode se dar, então, experimentando personagens em plataformas de relacionamento social semelhantes aos jogos ou mesmo no Second Life de forma a quebrar hábitos e abrir novas perspectivas de vida. Ou, conforme sonhavam os situacionistas: A construção de situações começa após o desmoronamento moderno da noção de espetáculo. É fácil ver a que ponto está ligado à alienação do velho mundo o princípio característico do espetáculo: a não-participação. Ao contrário, percebe-se como as melhores pesquisas revolucionárias na cultura tentaram romper a identificação psicológica do espectador com o herói, a fim de estimular este espectador a agir, instigando suas capacidades para mudar a própria vida. A situação é feita de modo a ser vivida por seus construtores. O papel do público, se não passivo pelo menos de mero figurante, deve ir diminuindo, enquanto aumenta o número dos que já não serão chamados atores mas, num sentido novo do termo, vivenciadores (DEBORD, 1957). Referências bibliográficas ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE FICÇÃO CIENTÍFICA E FANTÁSTICO. Second Life- A Matrix a nosso alcance. 2006. Em http://www.simetria.org/visual1layout1article197.html 9

10 DEBÓRD, Guy.Methods of Détournement in:les Lèvres Nues #8, 1956. Relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de organização e de ação da tendência situacionista internacional in Jacques, Paola (org.) Apologia da Deriva. Rio: Casa da Palavra, 2003. FERRARA, Lucrécia Design em Espaços. SP: Rosari, 2002 Cidade: Fixos e Fluxos in Anais do Simpósio Interfaces das Representações Urbanas em Tempos de Globalização. Bauru: SESC-SP, FAAC, AGB, 2005. GIBSON, William Neuromancer. São Paulo: Aleph, 2003. HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 1971. JUSTIÇA, Maria Paula. A Internet no Contexto Escolar. 2003. Em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/_texto.php?html2=justica-paula-internet-contexto-escolar.html LINDEN LAB. Second Life.exe para Windows XP. São Francisco, 2002. 21 megabytes. Pesquisa de campo. McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. SP: Cultrix, 1979. MURRAY, Janet. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. SãoPaulo: Itaú Cultural / Unesp, 2003. PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers. 8 vols. Cambridge: Harvard University Press, (1931-1958). PIMENTA, FRANCISCO J. P. Hipermídia e Ativismo Global. Rio: Sotese, 2006A.. Pragmatismo: referência epistemológica para ciberativistas? in Anais do XV Compós. Bauru: UNESP, 2006B. SECOND LIFE. <http://secondlife.com> último acesso em 19/05/2006 VARGES, Julia RPGs Online como Desvio do Ideário Situacionista. In: Anais do III ENRECOM (cd). Juiz de Fora: FACOM/UFJF, 2005.. WIKIPEDIA. < http://www.wikipedia.org > último acesso em 19/05/2005 10