DISCIPLINA, O PRINCÍPIO DA EDUCAÇÃO EM KANT Leonardo de Ross Rosa i



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Transcrição:

DISCIPLINA, O PRINCÍPIO DA EDUCAÇÃO EM KANT Leonardo de Ross Rosa i Resumo O presente artigo busca mostrar a disciplina como o primeiro passo na educação kantiana, mas não apenas isso, pretende apresentar a disciplina como, para o homem, a mais contundente mudança em todo o processo educacional de Immanuel Kant. É o momento de maior tensão, não somente por se tratar do primeiro avanço, mas também por apresentar ao homem uma situação absolutamente diversa da vida a partir da natureza do ser na qual estava inserido. É relevante salientar que não se trata de definir a disciplina como ponto mais decisivo do processo educacional kantiano, mas sim de refletir sobre uma alteração drástica que muda completamente o caminho do ser em sua forma de vida natural e selvagem para trilhar o caminho do pensamento autônomo e assim conquistar sua verdadeira liberdade. Palavras chave: Kant, disciplina, autonomia, educação e natureza Abstract This paper tries to show discipline as the first step in Kantian education; but not only that. It intends to present discipline as the most incisive change in the educational process proposed by Immanuel Kant for Man. It is the moment of highest tension, not only because it is the first advance, but also because it presents Man with a situation that is absolutely different from life from the nature of human being in which they were inserted. It is relevant to point out that it is not about defining discipline as the most decisive point in the entire Kantian educational process, but of reflecting about a drastic change that takes place and changes the path of human

being completely from its natural and wild life to travel through the path of autonomous thought and thus conquer its true freedom. Keywords: Kant, discipline, autonomy, education, and nature. Introdução Com base no material das preleções de Kant na Universidade de Königsberg dos anos de 1776 a 1787, seu discípulo, Friedrich Theodor Rink, publicou em 1803, o texto mais específico de Immanuel Kant acerca da educação. Na realidade, não existe a certeza sobre onde terminam as idéias de Kant e onde iniciam os pensamentos de Rink. No entanto, Über Pädagogik (Sobre a Pedagogia) se constitui na obra mais específica do filósofo alemão sobre a educação, apesar de Kant tratar da educação em muitos de seus textos. Tendo a participação de Rink ou não, são nas páginas de Sobre a Pedagogia que Kant discorre toda a sua valiosa teoria educacional. No texto, Kant aborda de forma precisa o tema Educação dizendo que ela é que faz do homem um verdadeiro homem. É a Educação que possibilitará ao homem sua evolução até que possa chegar ao seu fim que é ver se enquanto humanidade. Neste contexto, o tema central do presente trabalho aborda a disciplina como sendo o primeiro, mas mais do que isso, constituindo se no mais impactante momento da teoria educativa do filósofo por se tratar de uma verdadeira interrupção no que poderíamos chamar de curso natural da vida do homem oriundo da natureza, que nasce sob a inclinação à uma liberdade sem regras, atenta a caprichos e cômoda no ponto em que se satisfaz tendo suas necessidades básicas atendidas. A partir da disciplina, sob forma de coação externa, o homem depara se com a possibilidade de evolução, condição imposta a ele para que possa chegar ao seu fim enquanto homem, ou seja, ver se enquanto humanidade. A educação em Kant A pedagogia, processo destacado por Kant e conceito que dá nome a seu texto mais específico sobre o tema educação, é a sua verdadeira doutrina da educação e se constitui num desenvolvimento filosófico no sentido de buscar os fundamentos da determinação

daquilo que seja o homem e sua tarefa no mundo. É uma ciência, diferente da educação. A educação para Kant é uma arte. Entretanto, apesar de fazer parte da pedagogia, toda a educação não pode ser restrita à ela, pois vai além do conceito ao assumir papel preponderante na constituição da sociedade almejada. Immanuel Kant vê na educação uma tarefa árdua para o homem, cuja dificuldade deixa explícita através da passagem de seu texto Sobre a Pedagogia (2002, p. 447): Entre as descobertas humanas há duas dificílimas, e são: a arte de governar os homens e a arte de educá los. Mais do que isso, Kant identifica a educação como uma questão sem solução para o homem por ele, enquanto homem, não poder dar um fim à questão. No pensamento kantiano, o homem não poder dar se a educação. Isso só seria possível se o homem conseguisse se ver enquanto humanidade, o que na teoria educacional kantiana, é o fim do processo, o que presume que o caminho para este entendimento é demasiado longo e impossível de se construir sem a ação do outro. Em Kant, o homem nunca viverá o bastante para resolver o problema da educação, que é, como dito, dar-se a educação. De fato, o filósofo alemão prega uma educação passada de geração em geração, sempre buscando o melhor, um momento realmente superior. Assim, o educador deve preparar a criança sempre com o entendimento de humanidade e de sua inteira destinação, o que se coloca sempre como ponto futuro. Do contrário, Kant aponta para uma realidade em que o homem educa seus filhos com vistas ao presente, a fim de que cumpram um papel condizente no mundo, que sejam bons e tenham sucesso e isso lhe parece satisfatório. No formato exposto não há a busca pelo estado superior. Mas é relevante apontar que, como em todo o processo, a educação em Kant também tem um início, um ponto de partida e este surge a partir do nascimento da criança. O primeiro momento da Educação é que o filósofo identificou como Educação Física. Para Kant, a Educação Física tem como primeira tarefa o cuidado com o corpo, o que, na verdade, é comum aos animais. É o momento onde há a maior proximidade entre homem que conhecemos e o animal, pois ambos estão ligados à uma mesma natureza que não lhes proporciona racionalidade. Obviamente, se não houver a ação da educação, essa situação irá perdurar e, no entender de Kant, o ser não alcançará a

condição de homem. Kant é enfático logo na abertura de Sobre a Pedagogia (2002, p. 441) com a frase: O homem é o único ser que precisa ser educado e segue (2002, p. 444): O homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela educação. Ele entende a educação como uma arte que possui a tarefa de desenvolver as disposições naturais do ser humano, arte que interroga a natureza e nunca chega a um saber absoluto, condição que para ele é apenas possível a Deus. A educação para Kant não é uma ciência e sim uma arte e um processo, o processo de transformação do homem num verdadeiro homem. Dentre as fases da Educação Física, o cuidado é o primeiro estágio e faz se necessário logo, desde o nascimento. É o momento em que a criança deve ter a atenção dos pais a fim de que não utilize de forma errada suas forças. Este cuidado dos pais é um ato de conservação, de trato, que vai proteger o bebê de si mesmo. De outra forma, no caso dos animais, não existem cuidados, mas somente a nutrição ou ainda o aquecimento e alguma segurança, o que, para Kant, não se identifica como cuidado. Ademais, os animais fazem uso de suas forças sem que prejudiquem a si mesmos, lançando mão apenas de seus instintos para a sobrevivência. O homem também possui instintos e não se pode afirmar que os mesmos sejam todos inúteis ou mesmo nefastos. O homem tem o instinto de alimentar se, por exemplo, o que possibilita sua boa nutrição e é condição para a vida. Mas para que os instintos ruins não determinem sua conduta, faz se necessário o que em Kant assumiu a condição de segundo estágio da Educação Física, a disciplina. A disciplina doma os instintos e é a ponte que permite ao homem avançar na busca da instrução e do esclarecimento. É onde ocorre a ruptura com a natureza e leva o homem da sua menoridade animal para a maioridade, dando lhe condições de deixar ao mundo irracional. É, sem dúvida, um processo ao qual Kant confere grande importância, mesmo que a identifique como a parte negativa da Educação Física pelo fato de retirar o homem de sua natureza. A disciplina terá atenção exclusiva posteriormente. A parte positiva da Educação Física corresponde à cultura ou instrução que, segundo Kant (2002, p. 466), consiste notadamente no exercício das forças da índole. Nesse período se evidencia a diferença entre homem e animal. É onde as

habilidades da criança são trabalhadas. É o momento em que a imaginação deve ganhar espaço para criar e a memória será exercitada. Para Kant, o processo seguinte é a cultura da alma, que não deixa de ser uma Educação Física pois: A natureza do corpo e da alma concordam no seguinte: cultivando as, devese procurar impedir que se corrompam mutuamente e buscar que a arte aporte algo tanto àquela quanto a esta. Pode se, portanto, em um certo sentido, qualificar de física tanto a formação da alma quanto a do corpo (2002, p. 470). A formação da alma se refere à natureza e por isso não tem similaridade com a formação moral, que se refere à liberdade. Kant sugere a distinção da formação física e da formação prática ou moral, ou ainda pragmática. Ele indica que na formação moral existe a moralização e não a cultura. Eis o segundo momento da educação kantiana, a saber, a Educação Prática. Ela é o que Kant chamou de método e que se divide em três partes: educação mecânica escolástica, que está vinculada à habilidade, o que, para Kant, é possuir uma faculdade que seja suficiente para um fim desejado; educação pragmática, que engloba a prudência, que é a arte de aplicar aos homens a nossa habilidade de modo a alcançar os objetivos propostos; formação moral, que concerne a ética e diz respeito ao caráter, sendo o último estágio da teoria educacional de Kant. A moralização se estabelece como o verdadeiro fim para o homem. Seu conceito se une ao conceito de educação e nele é possível vislumbrar toda a evolução do ser, onde ele passa pelos cuidados, pela disciplina, pela instrução ou cultura e pela civilização. É importante salientar que, apesar da obra de Kant ter como fim uma educação moral, a educação kantiana não ensina o agir moral. A explicação para isso é que o agir moral é de legislação absolutamente interna, ou seja, advém do próprio homem e assim não há como depender de outro homem. Aqui se constitui uma relativa diferença de origem, digamos, entre o agir moral e a educação. No primeiro, a origem deve ser o próprio homem, há um processo interno, já no segundo, a origem é externa, ou seja, alguém deve educar o homem. Não se pode esquecer, no entanto, que ambos estão ligados pois a ação dentro da moralidade exige a educação. Na verdade, a educação em Kant tem o objetivo de preparar a criança para, enquanto homem, buscar seu agir moral através da autonomia de pensamento. O pensar por si e ter sua

ação alicerçada na mesma autonomia do pensamento possibilitará ao homem seu agir dentro da moralidade. Todo o processo educacional se encerra com a consolidação de uma educação moral. Com ela o homem supera gradativamente a propensão existente para o mal, convertendo a em impulso para o bem. Deve se destacar que em Kant o homem não é bom nem mau por natureza pois sua natureza não o faz um ser moral. Ele só será bom ou mau, quando elevar sua razão aos conceitos do dever e tornar se um ser moral. Sendo um ser moral, poderá escolher o caminho a tomar. Poderá ser bom, mas também poderá trilhar o caminho do mau. Sendo moral, poderá assumir as máximas escolhidas por ele mesmo e que determinarão sua vontade. Vale lembrar que Kant atrela o mal à natureza quando esta não for submetida a regras e que, no homem, existem germes somente para o bem. De mesma forma, ao atingir a moralidade, o homem consolida seu caráter quer fazer algo e realmente coloca isso em prática e está apto a ver se como humanidade, grande objetivo de todo o processo. Em Sobre a Pedagogia (2002, p. 487) Kant exemplifica o caráter: Se, por exemplo, prometi algo a alguém, devo manter minha promessa, mesmo que isso acarrete algum dano. Porque um homem que toma uma decisão e não a cumpre, não pode ter confiança em si mesmo. Como dito anteriormente, o caminho que o conduz à moralidade é embasado na liberdade e na autonomia, objetivo de todo o homem. Com efeito, Kant busca uma educação para a liberdade, que é a condição de possibilidade para que esse homem torne se esclarecido e autônomo, um homem que procura seu próprio caminho e assim se realiza enquanto homem, concretizando seu plano que é o de ver se enquanto humanidade. Uma humanidade que é sempre fim, um objetivo e nunca um meio do qual o homem possa fazer uso. Ainda dentro do princípio da autonomia, Kant alerta para o conceito de dever, a atitude de agir por dever e também conforme o dever. O dever carrega consigo o conceito da boa vontade e para que uma vontade seja autônoma, sua força deve ser originada no próprio ser, em sua própria razão. Ao agir conforme o dever e por dever, o homem está fazendo uso da autonomia da vontade e esta mostra se como a capacidade do ser humano de dar se a lei moral com valor universal, ou seja, uma lei

que parta do homem individual, mas que tenha uma validade para todos, que possa ser utilizada por todos. De mesma forma, a vontade deve ser determinada primeiramente pela vontade em si e não pela vontade pelo objeto. Conseqüentemente, a vontade não deve ter sua origem em algo externo ao homem ou mesmo que seja motivada por algo externo à ele. Kant assevera ainda que uma boa vontade é boa em si e sem limites e não tem necessidade de outros objetos para determiná la. Ela é a única coisa realmente boa e está alicerçada no princípio do querer, segue o dever pelo dever e seu valor está no princípio da ação, não estando vinculada ao resultado desta mesma ação. É o respeito à lei que o conduz à ação. Disciplina, a ruptura com a natureza Para Kant, apenas quando o homem faz com que sua razão determine a liberdade é que se encontra a liberdade moral, finalidade de todo o ser racional. Em Kant vemos uma educação libertadora, que eleva o homem em sua condição e, para tal, necessita de um processo que mude drasticamente a condição primeira da vida do mesmo homem. Esse estado onde se encontra o ser e que tem na natureza sua fonte, deve ser colocado à distância pela disciplina a fim de que o homem atinja um novo momento. A disciplina, que não se configura como adestramento, garantirá a boa preparação para que a criança receba a instrução, mas não se pode caracterizar a disciplina como um estágio com encerramento ou período de atuação determinados. Na verdade, a disciplina estará presente durante todo o processo educacional. Com a indicação de que o homem deve sofrer a coação desde muito cedo, o sujeito da teoria educacional de Kant é a criança. Não obstante, em Kant, a criança nasce sob o poder de suas inclinações, o que seria um estado selvagem, sem regras, ou melhor com uma liberdade sem regras. Nesse estado selvagem, comum aos animais, a criança age conforme seus desejos e caprichos. Urge então a necessidade da imposição de uma ordem, a fim de que a mesma criança não se desvie de seu caminho para a humanidade. Como diz Kant em Sobre a Pedagogia (2002, p. 442): A disciplina é o que impede o homem de desviar se do seu destino, de desviar se da humanidade, através de suas inclinações animais. Kant assevera que a disciplina deve ser imposta

o quanto antes, pois no futuro a tarefa se tornará impossível. Kant afirma que O homem é tão naturalmente inclinado à liberdade que, depois que se acostuma a ela por longo tempo, a ela tudo sacrifica (2002, p. 442). Na verdade, Kant fala sobre a possibilidade de a cultura ser instituída posteriormente e mesmo corrigida, diferentemente da disciplina, que só encontra lugar na mais tenra infância e que após a infância será inútil a tentativa de impô la. É importante estar atento para a condição primeira do homem e que se assemelha a dos animais, que já nascem sendo tudo o que podem ser. O que regula os animais é o instinto. Diferente, o homem não tem esse limite que confere ao animal um estado acabado. O homem é inacabado e essa condição traz a necessidade de desenvolvimento. A natureza que deu aos animais os instintos também oferece ao homem a possibilidade do uso da razão. A disciplina retira o homem de sua natureza selvagem mas isso não se consolida como um processo de separação e abandono absoluto. Kant fala de uma retirada do ser de sua natureza sim, mas mais do que isso, seu intento é um regramento, uma normatização desta natureza. Ela não é substituída simplesmente. A natureza deverá ser normatizada, regrada. De qualquer forma, para o homem esse momento de mudança é um avanço absolutamente relevante. A disciplina carrega toda a responsabilidade de dar o primeiro passo em direção ao objetivo final do homem. Seu papel, como visto, é afastar o homem de sua menoridade situação onde sua condição natural de animal o conduz à ação segundo seus estímulos e sentimentos através da coação. A disciplina vem para retirar a criança do estado selvagem onde ela se encontra ao nascer e assim diferenciar o homem do animal bruto que age instintivamente. O homem requer polimento devido à sua inclinação à liberdade. Com efeito, cabe aos pais, o primeiro contato do ser, passar a seus filhos a disciplina para que sejam obedientes e a instrução. Kant enfatiza a importância do cuidado dos pais para com os bebês, pois sem estes cuidados os mesmos morreriam por não ter nenhuma condição de sobrevivência sozinhos. Assim as crianças não farão uso nocivo das forças e inclinações animais e, portanto, não cairão na selvageria independente de quaisquer regras, possibilitando

cresçam rumo ao esclarecimento. Vale lembrar que em Kant, não há uma força superior que vá guiar o homem. Se fosse desta forma tudo já estaria determinado, não necessitando de qualquer movimento dele. É o homem que constrói seu caminho de busca para que, enfim, encontre a humanidade. A ruptura com um estado de comodidade no qual o ser já está inserido é colocado neste trabalho como o mais tenso momento da educação de Kant. Ao encontrar se em um estado e ter que sair do mesmo, a então criança, sob o cuidado do educando, passa por sua maior prova na busca que o homem faz de seu objetivo final. Neste contexto da retirada do homem do estado primitivo, Kant vê a interrupção do caminho que seria comum aos animais. Ao homem seria possível seguir a comodidade em uma vida em que são supridas as suas necessidades básicas. O primitivo lhe é atrativo, mas não permite seu desenvolvimento e acaba por impedir sua evolução para o esclarecimento e também sua constituição no verdadeiro homem. Ainda, não sendo disciplinado, Kant entende ser absolutamente complexa a obediência a leis. Se for pensado o homem já distante da selvageria, disciplinado por assim dizer, parecem um tanto mais suaves os degraus ou estágios a serem guindados rumo ao objetivo final. Obviamente, não haveria forma de evolução para o homem com a ausência da disciplina no entendimento de Kant, mas o salto do estado natural sem regras para um momento de coação e imposição de ordens é de forte impacto. Convém lembrar que Kant afirma que cultura e moralidade, momentos de mesma forma imprescindíveis no processo educativo kantiano, colocam-se como conseqüentes, ou melhor, ocupam uma posição de evolução quase natural do ser após o impacto da disciplina. O homem já está, de certa forma, nos trilhos do esclarecimento e pode seguir de maneira mais branda seu caminho, mesmo que isso represente um considerável esforço, o que lhe é exigido por todo o processo. Considerações finais O processo educativo kantiano tem como primeiro passo formar o homem para viver em sociedade, transformando a coação externa em liberdade e autonomia e isso se traduz por fazer com que a disciplina imposta pelo educando passe a ser

gradativamente uma coação interna do ser humano, quando ele terá condições de darse leis e viver sob as mesmas. São leis universais que servirão para o próprio homem e para todos os outros homens, como indica Kant na Fundamentação da Metafísica dos Costumes quando descreve a fórmula do imperativo categórico (1960, p. 80) Age segundo máximas que possam simultaneamente ter se a si mesmas por objeto como leis universais da na tureza. Outrossim, apenas alguém esclarecido poderá disciplinar, tornando o esclarecimento o fundamento de possibilidade da disciplina, percurso inverso ao realizado pela própria disciplina que, por sua vez, se estabelece como o fundamento de possibilidade do esclarecimento. Em Kant, o ciclo formado por disciplina e esclarecimento caminha para a consolidação da moralidade, e a moral só encontra possibilidade de formação através da disciplina. Como conseqüência, a moral acaba por forjar o caráter, o que é essencial aos homens a fim de que formem um estado de paz. Nota se que a mesma disciplina, posta como negativa inicialmente, adquire caráter positivo quando eleva o homem à condição de convivência em sociedade na formação daquele estado de paz. Essa possibilidade alcança a concretude quando o homem passa a se determinar e pode obedecer e respeitar uma regra geral, que sirva para todos. Ao dar se uma regra e que esta máxima possa ser universalizada, o homem também será capaz de refletir, o que lhe possibilita ser seu próprio guia. Na quinta proposição dos textos Idéia de uma historia universal de um ponto de vista cosmopolita (2003, p. 11), Kant fala sobre o alcance de uma sociedade civil justa e evoluída. Para que esta aconteça, o homem deve buscar o convívio em sociedade usufruindo de sua liberdade e agindo sob normas. Do contrário, vivendo sem regras e gozando de uma liberdade desenfreada, só poderá ter prejuízos, como exemplifica a metáfora: Assim como as árvores num bosque, procurando roubar umas às outras o ar e o sol, impelem-se a buscá-los acima de si, e desse modo obtêm um crescimento belo e aprumado, as que, ao contrário, isoladas e em liberdade, lançam seus galhos a seu bel-prazer, crescem mutiladas, sinuosas e encurvadas. Por fim, o homem necessita da sociedade para cumprir sua destinação, que é, como prega Kant, ver-se enquanto humanidade e não enquanto homem isolado, individual, pois

apesar de o fim se dar individualmente, é a espécie que poderá gozar de sua inteira destinação. Assim, a sociedade tem no homem agente imprescindível de sua constituição e a base desta formação será, para Kant, o processo educacional - responsável por conduzir o homem ao esclarecimento e à condição de formar uma sociedade justa composta por homens morais. Referências KANT, Immanuel. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten [Fundamentação da Metafísica dos Costumes (trad. alemão: Paulo Quintela). Coimbra: Atlântida, 1960]. KANT, Immanuel. Über Pädagogik [Sobre a Pedagogia (trad. alemão: Francisco Cock Fontanella). 2 a ed., Piracicaba: Unimep, 2002] KANT, Immanuel. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita (trad. do alemão: Rodrigo Naves e Ricardo Terra). 2 a ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004 i Leonardo De Ross Rosa é graduado em Educação Física pela Universidade de Caxias do Sul e mestrando em educação pelo PPGEdu (Programa de Pós Graduação em Educação) da UCS (Universidade de Caxias do Sul). Atua profissionalmente na área esportiva da instituição (Programa UCS Olimpíadas ) desde 1997. Desenvolve a linha de pesquisa em Filosofia da Educação e tem como temas pesquisados: Filosofia da educação, o conceito de disciplina em Kant, filosofia da educação física e o cuidado com o corpo. Endereço eletrônico: leorosa11@hotmail.com