NOTAS SOBRE O PAPEL DAS COLEÇÕES MUSEOLÓGICAS NA DIVULGAÇÃO DA CIÊNCIA Maria Lucia de Niemeyer Matheus Loureiro * O texto que se segue tem origem em um projeto de pesquisa intitulado Divulgação científica em museus: as coleções e seu papel na linguagem expográfica. O projeto, desenvolvido no âmbito da Coordenação de Museologia do MAST, tem como foco os processos de musealizaçao nos domínios da ciência, que se constituem marcos na trajetória de objetos - ou na sua biografia, como diriam Samuel Albert e Igor Kopitoff. 1 A divulgação científica pode ser definida como "o uso de processos e recursos técnicos para a comunicação da informação científica e tecnológica ao público em geral" (BUENO apud ALBAGLI, 1996, p. 397). Implica na tradução de uma linguagem especializada para uma leiga, visando a atingir um público mais amplo. Sarita Albagli (1996, p 397) adota como sinônimos os termos popularização da ciência e divulgação científica, preferindo este último por ser mais freqüente na literatura. Marcelo Gomes Germano (2005, p. 1), por sua vez, prefere o termo popularização da ciência, ressaltando que seu uso supõe duas premissas básicas: Primeiro, o reconhecimento de que a ciência não é popular e afastou-se perigosamente do domínio público. Segundo, que é possível e necessário trabalhar no sentido de vencer o crescente abismo entre ciência e povo, entre ciência e classes populares. * Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), Rua General Bruce 586, São Cristóvão, Rio de Janeiro, RJ; marialucia@mast.br. Possui graduação em Museologia pelo Museu Histórico Nacional - atual Escola de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (1976) -, Mestrado (1998) e Doutorado (2003) em Ciência da Informação pelo IBICT / UFRJ. Tem experiência nas áreas de Museologia e Ciência da Informação. Realiza pesquisas relacionadas à divulgação científica, linguagens expositivas e processos de musealização nos domínios da arte e da ciência. Atualmente é tecnologista pleno do MAST. 351
Surgido na França do século XIX como uma forma alternativa ao conceito de vulgarização da ciência, o termo não encontraria aceitação naquele país, alcançando maior repercussão entre os britânicos. (GERMANO, 2005, p.10) Albagli enfatiza a transformação radical operada na relação entre ciência e sociedade a partir da Segunda Guerra Mundial. (...) se foi no período pós-guerra que a ciência alcançou o auge do seu prestígio, foi também a partir de então que sua influência sobre a economia e sobre a vida cotidiana dos cidadãos tornou-se mais óbvia, atraindo a atenção da sociedade sobre si e ampliando a consciência e a preocupação com respeito aos impactos negativos do progresso científico-tecnológico. Essa preocupação manifestou-se mais claramente ao final da década de 60 e início dos anos 70, no quadro de turbulência política e cultural que caracterizou aquele período, levando, por conseguinte, ao aumento das atenções sobre a necessidade de melhor informar a sociedade a respeito da ciência e de seus impactos. Foi nesse contexto que afloraram, com maior sistematicidade, iniciativas orientadas para a popularização da ciência e tecnologia. (ALBAGLI, Sarita, 1996, p. 397) Embora seja bem mais freqüente a associação das práticas de divulgação científica com os chamados centros de ciência (que não se dedicam necessariamente à preservação e divulgação de coleções), o papel educacional e informativo dos museus de ciência e tecnologia sempre esteve presente, como observa Albagli, que ressalta a valorização sócio-econômica da ciência e tecnologia a partir da Revolução Industrial, o que teria contribuído para o estabelecimento de instituições museológicas. A criação do Museu do Conservatoire National des Arts et Metiers (Paris, 1794) teria sido motivada pela necessidade de prover educação profissional para trabalhadores em mecânica, enquanto o Science Museum (Londres, 1857) e o Deutshes Museum (Berlim, 1906) seriam também exemplos desse tipo de motivação. (ALBAGLI, 1996, p. 400) 2 Existe uma unanimidade entre os estudiosos dos museus em relação à sua origem na sistematização das coleções dos chamados gabinetes de curiosidades. Quanto aos museus de ciências, viriam de tradições diferentes: museus de ciência e tecnologia como o Museu de Astronomia e Ciências Afins - MAST descendem de uma linhagem de instituições (como o já mencionado Conservatoire des Arts et Métiers de Paris) comprometidas com a preservação e difusão do patrimônio científico e tecnológico, enquanto os museus de história natural dedicaram-se desde suas origens à coleta e conservação sistemáticas de espécimes com a finalidade de estudo. 352
Como reunir em uma mesma abordagem museus de matrizes distintas, voltados à Ciência & Tecnologia, História Natural, jardins botânicos e zológicos, centros de ciência? Em primeiro lugar, não são tão nítidas as fronteiras entre os diferentes tipos de museus de ciência, e mesmo entre estes e os museus em geral, como bem observou Fernando Bragança Gil (1988, p. 72-73). Em segundo lugar, mas não menos importante, a divulgação científica é em si uma questão interdisciplinar por definição e que, por isso mesmo, ultrapassa as fronteiras entre as diferentes ciências. Ao abordar as distintas matrizes e tradições dos museus de ciência, Marta Lourenço (2000, p. 3-4) reconhece uma raiz comum no Museu Ashmolean, que afirma ser o primeiro museu do mundo, no sentido moderno do termo. O museu tem como embrião uma coleção doada à Universidade de Oxford, em 1677, em que coexistiam espécimes de história natural, objetos de arte e uma Officina Chimica onde, desde o final do século XVII teriam sido realizadas demonstrações públicas regulares. Antes de passar às considerações sobre as coleções, deixo claro que ao falar em museus refiro-me ao seu sentido amplo: não apenas às instituições auto-intituladas museu mas também aos jardins botânicos e zoológicos, herbários e outras coleções de estudo. 3 O termo coleção, entre outros significados, designa um conjunto ou reunião de itens de uma mesma natureza ou que guardam alguma relação entre si. Quanto ao termo acervo, remete à idéia de estoque, quantidade e, no universo dos museus designa, de modo geral, o conjunto de bens sob sua guarda. Em virtude de sua característica de artefato, no entanto, as noções de conjunto ou acumulação não dão conta da idéia de coleção, que é resultante de uma ação humana intencional, por meio da qual alguns elementos materiais são selecionados, removidos de seus contextos de origem e reunidos em um conjunto artificial. Em uma coleção museológica, deve ser ressaltado ainda o ingresso dos objetos em um espaço institucionalizado, gerador de processos informacionais que lhes agregam novos valores e conferem novos papéis e funções provenientes de sua re-significação. Krzysztof Pomian (1984, p. 53) define a coleção como qualquer conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantidos temporária ou definitivamente fora do circuito de atividades econômicas, sujeitas a uma proteção especial, num local fechado preparado para esse fim e expostos ao olhar do público". Para o autor, trata-se de uma prática universal do qual gabinetes de curiosidades, coleções de estudo e o museu moderno 353
seriam manifestações singulares. Coleções serviriam para ligar as esferas do visível e do invisível, separadas até o Paleolítico Superior, quando o invisível teria se projetado no visível por meio de uma nova categoria de objetos que provocaram uma fissura na esfera do visível: de um lado, haveria as coisas úteis, que se consomem, e de outro, os semióforos, objetos dotados de um significado, os quais, por não serem manipulados, mas simplesmente expostos ao olhar, não sofreriam usura. (POMIAN, 1984, p. 71) Uma nova categoria de semióforos ( aqueles que se estudam ) apareceria na Europa Ocidental a partir do século XV, vinculada à emergência de novos atores sociais (posteriormente denominados humanistas), e novas atitudes em relação ao passado, às partes desconhecidas do espaço terrestre, à natureza. Essas atitudes se evidenciam na reunião de antigüidades, de objetos provenientes de locais longínquos, de obras de arte e de instrumentos científicos. As coleções de instrumentos científicos também estariam vinculadas à emergência de novos atores sociais (posteriormente denominados cientistas), e são emblemáticos de uma nova atitude em relação ao invisível e da tentativa de restringir seus limites. (POMIAN, 1984, p. 75-78) Norton Wise (2006, p. 75) também enfatiza a importância de tornar novas coisas visíveis - ou tornar coisas familiares visíveis de novas formas, destacando os "novos mundos que se abriram à percepção visual, como as montanhas e vales na superfície da lua, que se tornaram visíveis pelo telescópio de Galileu. Em um estudo sobre colecionadores e coleções, Philipp Bloom (2003, p. 30) ressalta uma explosão de atividade científica e colecionadora iniciada na Itália do século XVI, da qual ocuparia a linha de frente Ulisse Aldrovandi, com seu museu. Até o século XV, colecionar havia sido privilégio de nobres e da Igreja, que acumulavam objetos preciosos ou relíquias sagradas. Cem anos após a descoberta da América, foi pela primeira vez abalada a crença de que não havia fenômeno natural, nem cultural, nem animal nem sensação que já não tivessem sido interpretados definitivamente por Aristóteles e Plínio, por Cícero ou Pitágoras. Coisas que os antigos não conheceram são mencionadas por nomes como Jean de Léry, viajante francês que publicou em 1578 a história de sua viagem às terras do Brasil. (BLOOM, 2003, p. 32-35) Conforme o autor, as explicações para o que ele chama surto de atividade colecionadora do século XVI estariam um pouco neste mundo e um pouco no outro. Por um lado, a ampliação das fronteiras do conhecimento trazia novos questionamentos e novos fenômenos que demandavam abordagens novas - telescópios e microscópios permitiam aos estudiosos explorarem o macrocosmo e as pequenas coisas. Por outro, 354
em um mundo cada vez mais secular e capitalista, ocorria também uma mudança na maneira de perceber a morte e o mundo material. (Bloom, 2003, p. 37) Desde o final do século XVII e, sobretudo, no XVIII, uma nova maneira de olhar o mundo e uma brusca mudança de natureza no ato de colecionar levariam a formas mais metódicas de abordar o mundo material e à especialização das coleções. Carl Lineu representaria a vanguarda de uma mudança em que a ambição de colecionar tudo que fosse digno de nota foi substituída por uma divisão de disciplinas, dentro das quais surgiria o novo projeto da classificação racional e a descrição completa da natureza. (BLOOM, 2003, p. 107) 4 Samuel Alberti (2005, p. 560-561) aborda a história dos museus por meio dos objetos em suas coleções, concentrando-se em caminhos passíveis de serem explorados por historiadores da ciência. A partir de Kopytoff, sugere que os objetos de museus teriam uma vida ou carreira metafórica, e que o estudo de suas biografias seria especialmente fecundo no contexto do museu. Adverte, no entanto, para o risco de atribuir demasiado poder às próprias coisas, o que equivaleria a diminuir a agência dos seres humanos na história. São estes, prossegue o autor, que imbuem as coisas de valor e sentido, manipulando e contestando seu significado ao longo do tempo. Susan Pearce (1993, p. 139) enfatiza o papel fundamental dos museus na inteligibilidade de idéias científicas como as relações taxonômicas de espécies animais e vegetais, que se tornariam conceitos significativos por meio do espaço organizado e as vitrines em série dos museus. O mesmo pode ser dito sobre as seqüências cronológicas de material histórico ou seqüências tipológicas de artefatos. Coleções de museus são artefatos capazes de conferir visibilidade a realidades dispersas no tempo e/ou no espaço e, portanto, naturalmente invisíveis. Idéias e conceitos como espécie, gênero e família, por exemplo, são visíveis apenas através da reunião artificial de espécimes vivos ou de seus fragmentos, naturalmente dispersos. É útil, aqui, frisar que os museus de história natural operam tradicionalmente uma distinção entre as coleções de estudo, destinada aos cientistas, e as coleções a serem expostas ao público, dirigidas aos não especialistas. Essa prática foi inaugurada em 1891 pelo Museu de História Natural de Berlim. Museus de ciência lidam, freqüentemente, com realidades (acontecimentos, eventos, e fenômenos) inacessíveis à percepção humana por serem extremamente 355
pequenos, grandes ou distantes, dispersos no tempo ou no espaço - merecem referência especial fragmentos do mundo de naturezas muito diversas: de espécimes botânicos e zoológicos conservados in vivo ou in vitro a imagens e instrumentos científicos. Entre estes últimos, enfatizamos os instrumentos óticos, cuja propriedade de gerar imagens e dar visibilidade ao infinitamente distante (as lunetas, por exemplo) ou infinitamente pequenos (como os microscópios) lhes conferem um duplo papel: não apenas são recursos atraentes em exposições interativas, mas documentam o fazer da ciência. Jorge Wagensberg (2005, p. 310), para quem realidade é a palavra museológica, define o museu como realidade concentrada, enfatizando que ele é insubstituível no mais importante estágio do processo cognitivo: o início, e acrescentando que a realidade estimula mais que qualquer uma de suas representações. Através de suas coleções, os museus de ciência são capazes de conferir materialidade e visibilidade a realidades dispersas no tempo e/ou no espaço - e, portanto, naturalmente invisíveis. REFERÊNCIAS ALBAGLI, Sarita. Divulgação Científica: informação científica para a cidadania? Revista Ciência da informação, Brasília, v. 25, n. 3, p. 396-404, 1996. ALBERTI, Samuel. J. M. M. Objects and the museum. Isis, v. 96, p. 559-571, 2005. BLOOM, Philipp. Ter e manter: uma história íntima de colecionadores e coleções. Rio de Janeiro: São Paulo, Record, 2003. GERMANO, Marcelo Gomes. Popularização da Ciência como ação cultural libertadora. V COLÓQUIO INTERNACIONAL PAULO FREIRE. Recife, PE, 19-22 setembro 2005. GIL, Fernando Bragança. Museus de ciência: preparação do futuro, memória do passado. Revista da Cultura Científica, Lisboa, n. 3, p. 72-89, 1988. KOPYTOFF, Igor. The Cultural Biography of Things. In: APPADURAI, Arjun (ed.). The Social Life of Things: Commodities in Cultural Perspective. Cambridge: Cambridge Univ. Press, p. 64-91, 1986. LOURENÇO, Marta. Catarino. 2000. Museus de Ciência e Técnica: que objectos? Dissertação (Mestrado). Universidade Nova de Lisboa, 2000. PEARCE, Suzan M. Museums, objects and collections. Washington: Smthsonian Institution Press, 1993. POMIAN, Krzysztof. Colecção. In: Enciclopedia Einaudi v. 1. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, p. 51-86, 1984. WAGENSBERG, Jorge. The total museum, a tool for social change. História, Ciências, Saúde, v. 12 (suplemento), p. 309-332, 2005. WISE, M. Norton. Making Visible. Isis, v. 96, p. 75-82, 2006. 356