ENTRE A TERRA E O MAR: O TRABALHO DAS MULHERES NAS COMUNIDADES PESQUEIRAS NO BRASIL



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Transcrição:

ENTRE A TERRA E O MAR: O TRABALHO DAS MULHERES NAS COMUNIDADES PESQUEIRAS NO BRASIL (2009) Michael Ferreira Machado Universidade Federal de Alagoas, Brasil Contacto: michael.ufal@gmail.com RESUMO O presente artigo tem por objetivo discutir algumas pequenas questões relacionadas à temática de gênero atreladas especificamente ao campo pesqueiro artesanal. Em relação ao reconhecimento e a valorização das práticas sociais é sabido, por quem faz pesquisas em comunidades de pescadores, que atividade pesqueira é intrinsecamente associada aos homens, cabendo às mulheres o auxílio aos seus companheiros. Esse estado de coisas é legitimado por homens e mulheres sob o argumento do sempre foi assim. No entanto, quando algumas mulheres subvertem essa ordem, a discussão no campo teórico e no mundo vivido ganha contornos que escapam para além dessas fronteiras. Em um estudo etnográfico sobre um grupo de mulheres no litoral do nordeste brasileiro que trabalham na pesca, observou-se que em suas situações enunciativas há um processo de hibridização profissional, cultural e econômica. Estas mulheres trabalham lado-a-lado com os homens na pesca, e, ainda, têm a responsabilidade do trabalho domestico e do cuidado com os filhos. Na posição da mulher como profissional da pesca, no momento atual, assiste-se a um intenso debate sobre o conceito de cidadania da mulher no mercado de trabalho já que antes, a mulher do pescador trabalhava com seu companheiro e/ou marido como auxiliar, sem ter o merecido reconhecimento como uma profissional da pesca. No entanto, a realidade histórica mostra que as mulheres sempre contribuíram para auxiliar nos recursos econômicos para ajudar a manter a família. Nas entrevistas, observou-se que as mulheres pescadoras da comunidade de Ipioca ainda executam a maior parte do trabalho doméstico necessário para manter em funcionamento a unidade doméstica familiar. Palavras-chave: Trabalho feminino, pesca artesanal, relações de gênero, método etnográfico na pesquisa em psicologia Michael Ferreira Machado 1

O presente artigo tem por objetivo discutir algumas pequenas questões relacionadas à temática de gênero atreladas ou especificamente associadas ao campo pesqueiro artesanal. É sabido por quem faz pesquisas em comunidades de pescadores que atividade pesqueira é intrinsecamente associada aos homens, cabendo às mulheres o auxílio aos seus companheiros. Esse estado de coisas é legitimado por homens e mulheres sob o argumento do sempre foi assim. No entanto quando algumas mulheres subvertem essa ordem à discussão no campo teórico e no mundo vivido ganha contornos que escapam para além dessas fronteiras. A categoria pesca artesanal comporta muitos tipos e se diferencia de lugar para lugar. A construção de sua identidade, de seu Habitus e de seu Ethos responde objetivamente a uma série de fatores. Como clima, espécie procurada, se a pesca se realiza durante o dia ou à noite, se o pescador possui aparatos técnicos apropriados ou não, se a pesca se dá no rio ou no mar, além de todos os elementos mais diretamente ligados às relações de produção (propriedade dos meios de produção, relações de trabalho, etc.). Todas essas variáveis concorrem para diferenciação social pelo trabalho na pesca, que sob a semântica da categoria pesca artesanal, encerra uma gama de atividades praticadas nos mares, rios, lagos e mangues. Percebe-se nitidamente que as atividades pesqueiras estão passando por um processo de negatividade atualmente. A poluição, a exploração desordenada dos recursos pesqueiros e a falta de financiamento da produção, concorrem para a diminuição da produção pesqueira e para a negatividade com que tem se encarado toda cadeia produtiva da pesca do tipo artesanal no âmbito da comunidade de Ipioca, no litoral de Alagoas. A instabilidade da atividade em si, dado o caráter da imprevisibilidade que a pesca artesanal impõe, aparece como a variável mais nociva à reprodução social dos pescadores dessa comunidade. A busca por estabilidade tem sido a tônica. Esta busca pela estabilidade é o que denomina-se de cristalização do impulso da subsistência (Duarte, 1978, p. 54) que permeia todo ser humano e fica muito mais visível a partir do momento em que se lida com uma instabilidade e todos os problemas decorrentes da falta de certeza quanto ao dia de amanhã. Por causa desse quadro, as atividades exteriores à pesca têm sido procuradas e até preferidas. A pescaria que até então cooptava um número considerável da força de trabalho, tem sido encarada como uma atividade inferior em relação a trabalho assalariado de outras profissões. A dificuldade de sobrevivência decorrente da falta de perspectiva tem deixado a pesca artesanal de lado como o principal meio de sobrevivência, apresentando-se como uma estratégia a mais na árdua tarefa de garantir o sustento de muitas unidades familiares. A negatividade em relação às atividades pesqueiras reflete um abandono histórico desse setor, principalmente a pesca artesanal, por parte do Estado Brasileiro. Esse quadro fica ainda mais visível e paradoxal quando percebemos que a pesca artesanal responde por mais de três Michael Ferreira Machado 2

quartos da produção nacional e em alguns estados chega a representar noventa por cento da produção total de pescado. Diegues (1983) no final da década de 60 se refere à pesca como um setor esquecido da divisão social da produção. Em meados de 2008 a pesca continua um setor produtivo esquecido. O quadro parece que não mudou. Esse grau de esquecimento pode explicar, num certo sentido, a invisibilidade com que pescaria, pescadores e questões pertinentes à categoria não são percebidas. No que Leitão (1997) chama de invisibilidade destes, enquanto, profissionais e cidadãos. É a partir desse contexto inicial que partimos para tentar entender de que forma os problemas relacionados à dificuldade de reprodução social desses pescadores artesanais e toda negatividade com que a pescaria enquanto atividade produtiva tem sido encarada, refletem nas relações de gênero dentro dessas comunidades. A partir das entrevistas realizadas e na busca feita na literatura acadêmica pode-se observar que existe uma divisão sexual no setor pesqueiro, além de que existem atribuições ocupacionais distintas entre homens e mulheres. De acordo com Kergoat (2002) a divisão sexual do trabalho relega à esfera produtiva as atividades realizadas pelos homens, enquanto que, à esfera da reprodução, as realizadas pelas mulheres. Havendo um forte investimento social na primeira esfera. A pesca é uma atividade eminentemente masculina. Essa afirmação é um consenso na literatura acadêmica que trata da temática pesqueira. As variáveis, força e resistência se apresentam no discurso como características masculinas e legitimam ideologicamente os homens enquanto agentes capazes. Sobre esse fato Motta Maués escreveu ao estudar a pesca Paraense: A pesca é uma atividade essencialmente masculina, dela não podendo participar, em hipótese nenhuma, as mulheres (Motta-Maués 1993, p.82-83). Ainda sobre o tema, Diegues estudando a pesca no litoral Paulista também percebeu isso ao escrever que A pesca era uma atividade eminentemente masculina, ainda que em alguns lugares a mulher participasse na puxada da rede (Diegues 1983, p. 181). Homens e mulheres têm papéis bem delimitados na divisão sexual do trabalho dentro de uma comunidade pesqueira. Aos homens fica reservado o dever de garantir o sustento da casa indo ao mar, enquanto as mulheres ficam com a educação dos filhos e cuidando da casa em terra. Ainda tecendo considerações acerca do trabalho das mulheres nessas comunidades, vale salientar que as mulheres realizam os seus afazeres domésticos, antes de saírem para a roça ou para a pesca. Há casos em que as filhas mais velhas assumem as tarefas domésticas ou as mulheres pedem para que uma vizinha cuide do almoço. Em outras palavras, as mulheres tendem a conciliar as atividades domésticas com as pesqueiras. Michael Ferreira Machado 3

A identidade de pescador é uma identidade masculina. Ora, a percepção de uma identidade do grupo passa pela construção de uma identidade masculina. A percepção do masculino enquanto universo total e a percepção de uma invisibilização do feminino ou, seu status de auxiliar do universo masculino é um exemplo sui generis. Essa divisão, bipolar, bem simplória, parte de uma visão de mundo que opõe mar/terra e homem/mulher que tem sido usada, e até, tradicionalmente aceita na literatura sociológica e antropológica, apesar de algumas críticas de Alencar (1991) e Woortmann (1992), essa visão concorre para a não percepção das mulheres enquanto agentes produtoras e para o mito da invisibilidade feminina dentro do universo pesqueiro. Uma explicação bipolar ressalta essa divisão nítida e marcada onde é reificada a pretensa invisibilidade da mulher na pesca. As mulheres, de modo variado nas comunidades pesqueiras, realizam atividades que envolvem a captura de peixes (a pesca com a linha de mão e pequenas redes, coleta de mariscos, a pesca de polvo), o beneficiamento do pescado (a salga do peixe, a evisceração), a manutenção e reparo dos instrumentos de pesca (redes, velas de canoa) e a comercialização de peixes. De modo geral, quando as atividades das mulheres estão relacionadas ao ambiente aquático, elas são realizadas, em geral, nas áreas cuja proximidade se refere à terra ( rios, mangues, arrecifes, praia), enquanto que, as atividades realizadas por homens ocorrem em alto mar. Outra observação feita na comunidade pesquisada foi que a mulher é educada para a cuidar de tudo que estiver relacionada a casa filhos, marido, limpeza da casa, alimentação do grupo familiar e o roçado, enquanto que o homem é educado para trabalhar fora do domínio doméstico, no espaço público. É, portanto, no mar que os homens realizam o saber característico de seu gênero e exercitam a coragem ao enfrentar os perigos do mar. Podemos recorrer a uma alternativa crítica a essa visão bi-polarizada. É a da análise feita a partir de uma perspectiva que dê ênfase na interação entre homens e mulheres, na variedade das atividades, na cooperação entre homens e mulheres e no ponto de vista das mulheres, a bipolaridade se decompõe e se relativiza (Woortmann 1992, p.42). Mesmo com a adoção de uma perspectiva mais crítica e menos polarizada, alguns espaços bem delimitados não deixam de serem vistos e percebidos como tipicamente masculinos. Às mulheres ficam reservados os espaços da coleta de mariscos, moluscos, algas, camarão e coisas que se pode pegar na beira de praias, lagos e rios, ou seja, o extrativismo em geral. Até porque esses são considerados não-peixes na definição de Mariza Peirano (1975). Ora, se são não-peixes, então, o que as mulheres fazem pode ser chamado de uma nãopesca, no máximo uma complementação do trabalho masculino ou reforço alimentar para a família. Michael Ferreira Machado 4

A exposição até aqui tenta apresentar um quadro geral e resumido sobre a situação da pesca artesanal e seus problemas, principalmente, na comunidade estudada e o caráter predominantemente masculino dessa atividade. Todos esses problemas que afetam a economia pesqueira refletem no universo simbólico de forma significativa como observou Maldonado (1994), por exemplo, a constituição de um mestre, sua tripulação, e a superstição em torno dessas figuras, os dias em que não se pode pescar e, se os elementos femininos, considerando as proibições e prescrições que regularmente os colocam como elementos que em contato com barco, botes, canoas e apetrechos de pesca, dão azar ou não. Toda essa cosmologia está estruturada simbolicamente por uma série de ritos e mitos que legitimam no plano ideológico essas atitudes assentadas em um universo masculino. A despeito de todas as dificuldades encontradas para a reprodução social do pescador, uma variável nova e bastante singular surge na análise das atividades pesqueiras na comunidade de Ipioca. O elemento feminino em um universo simbólico marcado pela predominância do homem e da masculinidade. Em que sentido percebe-se a emergência do elemento feminino? No sentido de se perceber em alguns espaços a presença de mulheres onde até então seria inaceitável como, por exemplo, numa tripulação de oito pessoas dentro de uma canoa que pesca de arrasto na praia ou em um mergulho de compressor na captura de lagosta. Todos esses espaços são espaços masculinos por excelência qualquer que seja a perspectiva adotada, por mais que se tenha uma perspectiva ampliada de pesca e, se consideramos que as atividades de coleta e extrativismo animal como uma atividade pesqueira dentro desta noção ampliada da pesca artesanal. Mas, como capturar teoricamente estes novos fenômenos? Ao chegar a este ponto temos a necessidade de fazer uma pequena discussão sobre gênero no tocante a explicitar os papeis regulamentados historicamente por homens e por mulheres e, como estes papéis vêm se tornando multiperfomaticos no sentido das práticas cotidianas de pescadores e pescadoras. E como essa prática feminina ganha contornos poéticos dentro da dureza das várias jornadas de trabalho que algumas mulheres são obrigadas a fazer. Essas modificações vêm re-definindo papéis sociais, tornando a mulher uma agente produtora importante para o sustento da casa, chegando à pesca, área até então exclusiva dos homens. Passando da dependência à complementaridade, tocando inevitavelmente em zonas de conflito com os homens questionando e re-definindo a masculinidade de seus companheiros e desigualdades de gênero. A ascensão do feminino na pesca é o aspecto maior de toda essa mudança. A pergunta que surge é: como toda essa mudança gera um contra discurso que primeiro nega as proibições anteriores e, segundo, legitima o feminino enquanto agente capaz? A resposta das pessoas envolvidas não diretamente nesse plano parece um tanto simplória e aponta para uma mudança estrutural ou global mais amplo que os seus universos. Michael Ferreira Machado 5

As respostas são do tipo: as coisas estão mudando ou antigamente que se via essas coisas ou ainda mais hoje as coisas estão mais avançadas. Alguns discursos masculinos a respeito da força como variável masculina e que legitimaria o homem enquanto agente produtor uno e naturalmente inclinado pra pesca se desfaz a um olhar mais atento. Na comunidade pesquisada uma mulher faz a captura da lagosta de compressor, atividade tão perigosa que opera uma seleção natural entre aqueles que tem coragem de praticá-la ou não. Sendo ela muito respeitada por isso. Outro exemplo é a pescadora que participa da pesca no bote, ora ao puxando a rede, ora remando com mais seis homens, visivelmente tem mais força física que a maioria dos outros homens envolvidos no processo inteiro. A pergunta que fica é: isso são praticas comuns nessa comunidade ou refletem situações de necessidade por parte de quem as pratica? A visualização da desigualdade da mulher e do seu papel subalterno aparecem na hora da partilha do peixe. O seu quinhão equivale ao de uma criança que deu uma ajudinha. Esse fenômeno sugere que, se no nível simbólico as distâncias ou a separação entre o masculino e feminino estão menores, mas, quando a análise parte para o nível econômico, as distâncias são as mesmas. A separação ainda é grande e opera de forma violenta na hora da partilha. Igualando mulheres a crianças em termos de capacidade produtiva. Por mais que uma mulher realize o mesmo trabalho sob as mesmas condições que os homens, na hora da partilha, seu estatuto é diferente e inferior. Woortmann (1992) ilustra bem ao dizer que: A classificação do espaço, opondo o mar à terra, é central para a identidade do grupo como um todo, e corresponde à oposição homem/mulher. Ela não é uma oposição simétrica, mas hierárquica, pois implica relacionar a parte com o todo. Mais que uma oposição lógica, é uma oposição ideológica (...). A atividade do homem-pescador é completa porque ele é a comunidade total, pois a identidade masculina constitui a identidade do grupo (...) (p.58). Enquanto que a identidade feminina é sempre vista com um reflexo ou apêndice da masculina. Ao falar de uma hierarquia percebe-se bem a relação entre masculino e feminino dentro do universo pesqueiro como um todo e a superioridade de um em relação ao outro. O universo masculino dentro das atividades pesqueiras relega ao silêncio o ponto de vista feminino, mesmo quando as atividades das mulheres são cruciais para a reprodução social do grupo como um todo (Woortmann 1992, p. 42). Ao falar dessas duas pescadoras que participam do universo masculino na mesma comunidade, podemos pensar imediatamente que se trata de um fenômeno específico, bem localizado, e talvez isolado. Trato de duas pescadoras especificamente, mas não faltam exemplos Michael Ferreira Machado 6

de mulheres que estão na lida da pesca fazendo o mesmo trabalho que os homens que, mesmo assim, continuam sendo discriminadas e porque não dizer assediadas. Existe uma pescadora em Recife que embarca em barcos que pescam lagostas e para se defender de algum assedio ela vive com a faca na cintura literalmente. Sem falar que as suas necessidades fisiológicas tem de ser feitas com uma maior dificuldade em relação aos homens, por razoes naturais. Alguns exemplos mostram a dificuldade com que mulheres se relacionam com o universo pesqueiro, que é historicamente masculino. Trata-se de atitudes que de certa forma se chocam, dês-constroem ou que pelo menos questionam estruturas sociais assentadas em crenças e símbolos há muito tempo dados, baseados na ideologia do masculino enquanto único agente legitimamente capaz de participar desta atividade produtiva. E que algumas mulheres vem subvertendo uma lógica tão machista quanto a lógica pesqueira com muita dificuldade, suor e poesia. Michael Ferreira Machado 7

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