A REVISTA CEARÁ MÉDICO: Objeto de estudo e pesquisa para a compreensão da História da Saúde e da Doença no Ceará no início do século XX Ana Karine Martins Garcia* Essa pesquisa de pós-doutorado vem sendo organizada e projetada a partir do desejo de entender as trajetórias dos médicos cearenses que fizeram parte do Centro Médico Cearense, fundado em 1913, e também daqueles que atuaram em Fortaleza no começo do século XX a partir do estudo e análise da Revista Ceará Médico. Quando iniciou-se essa pesquisa no doutorado em 2007 acreditava-se que a ausência de fontes seria um dos motivos para existência de poucas pesquisas 1 e publicações acadêmicas na área da saúde e da doença no Ceará. No entanto, as pesquisas apontaram o contrário e encontrou-se uma diversidade de fontes pouco preservadas e cuja existência era desconhecida. Tal fato instigou ao desenvolvimento da minha tese de doutorado e dessa recente pesquisa no pós-doutorado em História, através do Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal do Ceará. Foram diversos os caminhos apontados para a trajetória desses personagens, ligados ao campo da saúde, que tiveram sua ascensão no Brasil, sobretudo, no começo do século XX, e que lutaram por um espaço físico e imaginário junto à população citadina. Na atualidade, o médico desempenha seu papel cercado de fatores que acompanham essa profissão, desde os fins do século XIX, e que coloca em xeque o seu desempenho e a sua credibilidade. Apesar das circunstâncias e contextos serem diferentes no século XXI, se percebeu a existência de questões que ainda perduram e fazem parte da definição do papel do médico na sociedade brasileira. Dentre essas, estão a experiência, prestígio, arsenal tecnológico, especializações, confiança e formação profissional. * Pós-doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará- UFC 1 Esta realidade fazia parte dos primeiros momentos da minha pesquisa em 2006. Atualmente, isso foi alterado e já se observa que esse campo de investigação no Ceará foi ampliado e que existem vários pesquisadores em busca de analisar a História da medicina acadêmica e da saúde pública no Ceará.
No final do século XIX e início do XX, Fortaleza passou por significativas transformações na organização da saúde pública. Observou-se que, apesar da intensa divulgação dos novos conceitos médicos de tratamento desenvolvidos na Europa, houve a permanência de alguns preceitos da ciência que vinham sendo usados ao longo do século XVIII e XIX. Da mesma forma, os da medicina popular e da Igreja Católica que também influenciavam no modo de ver e tratar as doenças. Deve-se mencionar que os estudos da microbiologia, desenvolvidos por Louis Pasteur a partir da segunda metade do século XIX, possibilitaram o aparecimento de novas formas de tratamentos para as doenças e, sobretudo, um aprofundamento dos estudos científicos sobre o contágio e a transmissão das moléstias, uma vez que o desconhecimento dos modos de contaminação levava a explicações relacionadas ao castigo divino e à crença das alterações climáticas. Fortaleza, no começo do século XX, não possuía uma significativa organização em sua saúde pública; o que havia era um setor responsável pelos cuidados da higiene cujas ações limitavam-se aos períodos de epidemias enfrentadas pela cidade. Nesse momento grande parte dos médicos atuava em consultórios particulares, prestavam serviços gratuitos à Santa Casa de Misericórdia e alguns chegavam a assumir o cargo de inspetores de higiene pública, como foi o caso do médico e membro do Centro Médico Cearense Carlos Ribeiro. Distinguindo-se poucos dias depois da minha chegada ao Estado com o convite de S. Exc.ª o Snr. C.el Presidente para assumir a direcção da repartição de hygiene publica...cheguei mesmo a ter a pretensiosa velleidade de me imaginar um homem útil, dedicando todos os meus esforços a nobre causa, e de antever ao fim um simulacro de cidade hygienica ou hygienizada no meu estado natal. (Relatório da Inspetoria de Higiene Pública do Estado do Ceará, 1915, p. 6) Percebe-se no relato de Carlos Ribeiro que assumir um cargo público ligado à saúde era de alguma forma tornam-se mais útil e participativo para a manutenção e melhoramento da higiene na cidade, contudo, serão esses somente os interesses dos médicos em assumir tais cargos? No decorrer desse trabalho pode-se notar que um dos principais motivadores vai ser a busca por espaços para legitimar o discurso da medicina acadêmica e assim adequar a cidade aos conceitos e práticas médicas, tornando sua atuação mais visível diante da população. A busca por um espaço de atuação e de confiança em seu trabalho e os novos conhecimentos da medicina acadêmica possivelmente forçaram a classe médica de Fortaleza a organizar-se e assim agir coletivamente com a finalidade de obter seus propósitos. Não se 2
pode deixar de mencionar as disputas com outros profissionais que também desempenhavam funções no tratamento das doenças como os curandeiros. Fortaleza crescera: os seus confins estenderam-se pelas areias frouxas dos subúrbios; os meios de locomoção eram, porém, poucos e difíceis. Para atender á clientela, disseminada em área tão vasta, o médico passou a fazer a cavalo as suas visitas domiciliares. A primeira despesa de quem se iniciava na clinica não era, como agora, a montagem custosa do consultório, enfeitado de vistosas vitrinas e de complicados aparelhos elétricos. Era a aquisição de um cavalo bem ajaezado e luzido. (GIRÃO,1945, p.471) Aproveitando as descrições acima do médico Pedro Sampaio, observou-se preciosos exemplos do cotidiano desses médicos, que passavam por momentos de transição e adaptação, uma vez que os costumes oriundos do século XIX e a nova convivência e atuação médica na urbe entravam em choque com as teorias e práticas da medicina acadêmica desenvolvidas no século XX. Entre os pontos de mudanças notou-se o espaço de atuação desses profissionais, já que em sua maioria realizavam seus atendimentos em domicílios e poucos eram os que atuavam em outros locais de trabalho. 2 Assim, é interessante refletir que as mudanças foram processuais e o deslocamento do atendimento aos doentes de suas casas para locais próprios para tais funções somente foi possível com o aumento do número de médicos e da valorização da importância das ações na área da saúde pelo governo e pelos habitantes de Fortaleza. Desse modo, surgiu em 1913 o Centro Médico Cearense, que tinha entre suas metas unir os médicos, os farmacêuticos e os odontólogos com o objetivo de desenvolver suas pesquisas sobre as doenças que assolavam o Ceará, divulgar seus projetos e buscar aproximarse mais da população local para construir uma confiança quanto as práticas e atuações na área da saúde. A cidade já exigia que seus esculápios se reunissem, para debater os casos mais interessantes, discutir as novas terapêuticas, estreitar os laços de amizade, como também prepararem para a defesa contra os detratores da classe e os gravames fiscais que começavam a incidir pesadamente sobre os profissionais da Medicina nas grandes cidades. (LEAL, 1979,p. 137) 2 Em meados do século XIX o psiquiatra francês Jean Martin Charcot promoveu mudanças no atendimento aos doentes ao promover a ideia de que os pacientes não poderiam ser atendidos em seus domicílios, mas em clínicas ou hospitais designados para essas funções. Essa ideia foi bastante divulgada no Brasil e notou-se que no começo do século XX começa aparecer mais locais para tratamentos das doenças e os atendimentos domiciliares têm uma diminuição. 3
De acordo com a descrição do médico Barros Leal, os profissionais da área da saúde em Fortaleza ansiavam por transformações nos métodos de tratamento das enfermidades e também por uma oportunidade de melhoramento de seu espaço de trabalho. E em meio a todas essas efervescências e transformações vivenciadas na cidade foi que o médico Manuel Duarte Pimentel retoma seus planos, agora com outros objetivos. Reunindo-se no dia 20 de fevereiro de 1913 na residência do Dr. Manoel Teófilo Gaspar de Oliveira na rua General Sampaio nº 78 com os médicos Aurélio Lavor, Eduardo da Rocha Salgado, Ignácio Dias, Virgílio de Aguiar, Eliezer Studart da Fonseca, Amâncio Filomeno, José Frota, Manoel Teófilo Gaspar de Oliveira, e os farmacêuticos Joaquim Holanda, Perdigão Nogueira, Raul Teófilo e Alberto Eloy da Costa fundaram a Associação Médica e Farmacêutica. 3 Não se observou entre os anos de 1913 a 1935 a presença de mulheres nessa associação. Na segunda sessão dessa associação, no dia 25 de fevereiro de 1913, houve a preocupação de definir o estatuto de funcionamento da associação, o que ocasionou mudanças que fizeram com que essa entidade tomasse rumos diferentes dos objetivos iniciais. Dentre essas modificações destacou-se: a inclusão da classe de odontólogos nessa associação, a alteração do nome para Centro Médico Cearense, aproximação com as práticas das pesquisas científicas e o melhoramento das condições e locais de trabalho para a classe médica. Essas foram algumas das sugestões do médico Aurélio Lavor, cujo desejo era que o Centro Médico Cearense possibilitasse a esses profissionais uma maior visibilidade nos espaços da cidade. Dentre as propostas principais do Centro Médico, estava a criação de uma revista profissional voltada a apresentar os trabalhos realizados no campo da saúde no Ceará e as pesquisas científicas que eram desenvolvidas no Brasil e em outros países. Assim, para o Dr. Lavor, a Revista Norte Médico, como foi intitulada inicialmente, era o órgão de nossa defeza e a affirmação segura de que existimos e pensamos (Revista Norte Médico, 15 de abril de 1913, pp.2-4) Assim, no dia 15 de abril de 1913 é publicado o primeiro número da revista, que ficou conhecida inicialmente como Norte Médico e teve publicação bimestral. Foram seus primeiros redatores os médicos Aurélio Lavor, César Cals e Virgílio de Aguiar. Apesar de não 3 Para uma melhor compreensão ver o artigo História da sua fundação da revista Norte Médico, 15 de abril de 1913, pp.2-4. Durante as pesquisas realizadas somente encontrei um exemplar da primeira revista no setor de microfilmagem da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Infelizmente, no Ceará, nas instituições públicas de pesquisas não existe mais exemplares dos primeiros anos dessa coleção. 4
haver na equipe responsável pela revista nenhum farmacêutico e odontólogo, pode-se notar que esses profissionais também participaram das publicações, no entanto, é oportuno afirmar que não foram tão ativos quanto a classe médica. Todos os artigos publicados eram aprovados durante as reuniões dos membros do Centro. Esses textos eram trazidos por cada sócio ou retirados das palestras que ali eram realizadas. Após a aprovação eram entregues aos redatores que, junto com o material escrito enviado de outros estados, organizavam a revista para ser lançada. Em março de 1917, o nome da revista Norte Médico sofreu alteração para Ceará Médico por sugestão do médico Carlos Ribeiro, que acreditava que essa mudança não alterava a essência e os seus objetivos. A mudança ou modificação do nome não accarreta a menor alteração na vida e no modo de ser do nosso jornalsinho. É simplesmente um dever que se nos impunha a menos que nos quizessemos pretenciosamente arvorar em representantes de quem para tanto, não nos delegou poderes. O norte é muito vasto e já possue muito illustres collegas que tão bem, ou melhor do que nos representam na imprensa medica. (Revista Ceará Médico, 1917, p.15) O Dr. Ribeiro observou que a alteração do nome ocasionava uma modificação importante na revista, pois se tirava a obrigação de publicar artigos e dar noticias que abrangeriam não somente o Ceará mais os demais estados do norte brasileiro. Desse modo, essa mudança possibilitou que as notícias e textos divulgados ficassem mais restritos e voltados às necessidades do Ceará e não mais do Norte como um todo. Além da participação dos membros do Centro nas publicações da revista, também era permitida a outros profissionais, ligados à área da saúde, tanto do Ceará como de outros estados, a publicação de seus artigos. Outro ponto bastante relevante era saber a quem esse periódico estava destinado. No princípio das pesquisas acreditou-se que a população tinha acesso a essa revista devido aos tipos de propagandas encontradas. No entanto, ao observar os anúncios de propaganda de medicamentos publicados na revista, notou-se que existiu uma determinada associação do conhecimento científico e do popular. Evidentemente, a intenção do texto era atingir os médicos e profissionais da saúde e, por conseguinte, o público em geral. Srs. Médicos Auxiliae a combater a tuberculose preconisando largamente a vaccinação preventiva com as vaccinas de Friedmann. Especificas, efficazzes, idolores, absolutamente sem nenhum perigo. 5
Aprovados pelo Departamento Nacional de Saúde Pública. SO PODEM SER VENDIDOS SOB RECEITA MÉDICA, NA QUAL DEVE SER INDICADA A CONCENTRAÇÃO DESEJADA. (Revista Ceará Médico, outubro de 1928, p. 26) Entre os anúncios publicados existiram aqueles dedicados a mostrar alguns dos consultórios médicos existentes em Fortaleza e aqueles de caráter informativo que foram frequentemente publicados nas páginas da Ceará Médico, principalmente, de remédios trazidos de outros países. Na propaganda publicada na revista de 1928 observaram-se dois pontos importantes: primeiro que a divulgação da vacina de Friedman tinha como público alvo os médicos, e que o medicamento proposto para o tratamento da tuberculose deveria ser indicado e prescrito por esses profissionais; segundo que essa vacina tinha a aprovação do Departamento Nacional de Saúde, e isso possivelmente dava mais credibilidade para o uso desse medicamento no tratamento da tuberculose. O estudo e pesquisa dessa fonte é de fundamental importância para os pesquisadores, historiadores e demais interessados nessa área, já que permite um direcionamento sobre a atuação dos médicos, dos outros profissionais da saúde, do funcionamento da Associação Médica Ceará e das doenças epidêmicas e endêmicas que atingiram o Ceará no começo do século XX no Ceará. Faz parte do interesse dessa pesquisa entender estas duas fases e os objetivos das publicações dessa revista, como também buscar perceber como a saúde e a doença foram analisadas pelos médicos e demais profissionais da saúde no Ceará. Nos artigos publicados, sobretudo, na primeira fase dessa revista, observa-se que a preocupação dos associados centrava-se na busca por profilaxias para deter o avanço das doenças mais frequentes que predominavam no Estado do Ceará. A revista também proporcionava a esses profissionais uma aproximação maior com os debates da ciência médica nacional e internacional. Observa-se nos artigos e propagandas publicadas na revista Ceará Médico que os médicos, constituindo a maioria dos associados, eram os que mais publicavam nesse periódico, sobretudo, na primeira fase. De uma forma geral, a pesquisa através de periódicos médicos no Brasil vem frequentemente tomando mais espaço nos debates acadêmicos na área da História e da Medicina. Esta medida possibilita encontrar novos caminhos e documentos para analisar com mais detalhes as doenças e a saúde nas cidades brasileiras, e também de observar as representações e as relações de poder construídas no cotidiano da população. 6
Essa revista teve duas importantes fases; a primeira foi entre os anos de 1913 a 1918 e teve um caráter mais cientifico e restrito as atividades do Centro Médico Cearense e a segunda fase, após uma parada nas publicações, foi entre os anos de 1928 até 1963 e teve uma relação mais direta com a população através da publicação de campanhas de saúde e assuntos relacionados aos problemas de saúde pública de Fortaleza e demais cidades do Estado do Ceará. Com relação as questões de saúde percebe-se através da análise desse periódico que na primeira fase os artigos em sua maioria tratava das principais doenças e das formas empregadas de tratamentos no Brasil e em outros países. E na segunda fase, percebe-se que além dos anúncios e textos relacionados às questões de doença também se observou um espaço para apresentar os trabalhos dos médicos em Fortaleza como também suas atuações na saúde pública do Estado do Ceará. Deve-se destacar que na primeira fase as publicações da revista tinham a participação em alguns momentos dos farmacêuticos e odontólogos e na segunda fase com a saída desses dois grupos de profissionais do Centro Médico Cearense nota-se a presença exclusiva dos médicos nesse periódico. O estudo e pesquisa nessa fonte é parte imprescindível para os estudos da História da Medicina e a Saúde Pública no Ceará, pois possibilita a ampliação dos estudos de uma área da História do Ceará ainda pouco explorada pelos historiadores e pesquisadores em geral e também permite observar como a trajetória médica influenciou no cotidiano das cidades cearenses e na construção das várias práticas de saúde na busca dos tratamentos e prevenções de doenças no início do século XX. Fonte REVISTA NORTE MÉDICO/ CEARÁ MÉDICO (1913 a 1919) e (1928 a 1935 Referências BARBOSA, José Policarpo de Araujo. História da Saúde Pública do Ceará: da colônia a Vargas. Fortaleza-CE; Edições UFC, 1994. GIRÃO, Raimundo, MARTINS FILHO, Antônio (Orgs). SAMPAIO, Pedro. A medicina no Ceará. Fortaleza-CE; Editora Fortaleza, 1945. 7
LEAL, Vinicius Barros. História da Medicina no Ceará. Fortaleza-CE; SECULT, 1979. 8