Palavras chave: Mineração; Conflitos Socioambientais; Mediação.



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Transcrição:

Entre a negociação e a resistência: ambiguidades e limites da participação no licenciamento ambiental do complexo minerário Minas-Rio 1 Marcos Cristiano Zucarelli (GESTA/UFMG) Ana Flávia Moreira Santos (GESTA/UFMG) Resumo O Projeto Minas-Rio, do grupo britânico Anglo American, prevê a abertura de uma mina para exploração de minério de ferro nos municípios de Conceição do Mato Dentro-MG e Alvorada de Minas-MG, além da implantação de um mineroduto de 525 km de extensão que trespassará 33 municípios, sendo 26 mineiros e 7 fluminenses, integrado a um porto marítimo em implantação no litoral norte do Estado do Rio de Janeiro. Contudo, apesar de ser um projeto integrado, o empreendimento passa por um processo de licenciamento em três esferas. O mineroduto é avaliado pelo IBAMA. O Porto do Açu é licenciado pelo órgão INEA/RJ. Já o licenciamento da mina, passa pela SEMAD/MG. Os efeitos da fragmentação do licenciamento reverberam em inúmeras denúncias de descumprimento da legislação ambiental e violação de direitos. Premidos pela adoção imediatista e desproporcional de medidas mitigadoras, as quais operam efetivamente como medidas corretivas e em caráter de urgência, as famílias atingidas são levadas a uma resistência crescente que se articula a iniciativas diversas do Ministério Público e da Defensoria Pública. Tais iniciativas apontam dois caminhos: a judicialização dos conflitos ou sua resolução negociada, tratamentos institucionais que tem se mostrado insuficientes no sentido de fazer valer os questionamentos e reivindicações levantados pelos atingidos ainda na época da análise da viabilidade socioambiental do empreendimento. Palavras chave: Mineração; Conflitos Socioambientais; Mediação. 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 1

Introdução Um dos maiores empreendimentos minerários em fase de implantação no Brasil, o Projeto Minas-Rio Mineração e Logística Ltda., do grupo britânico Anglo American, prevê a abertura de uma mina para exploração de minério de ferro e a construção de uma planta de beneficiamento e enriquecimento desse minério, nos municípios de Conceição do Mato Dentro e Alvorada de Minas, em Minas Gerais, além da implantação de três estruturas associadas: (1) um mineroduto de 525 km de extensão que trespassará 33 municípios, sendo 26 mineiros e 7 fluminenses, integrado a um porto marítimo em implantação no litoral norte do Estado do Rio de Janeiro; (2) uma linha de transmissão de energia da Companhia Energética do Estado de Minas Gerais CEMIG, em Itabira; (3) e uma adutora de água com captação no Rio do Peixe, no município de Dom Joaquim- MG, para fornecimento de água ao processo industrial, inclusive para o mineroduto. Apesar de ser um projeto integrado, o empreendimento passa por um processo de licenciamento em três esferas. O mineroduto é avaliado pelo órgão federal - IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). O Porto do Açu, localizado em São João da Barra-RJ, destino do minério transportado pelo mineroduto, é licenciado pelo órgão ambiental do Rio de Janeiro - INEA (Instituto Estadual do Ambiente). Já os licenciamentos da linha de transmissão, da captação de água e da mina de minério de ferro a ser explorado, são avaliados pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (SEMAD). Os efeitos da fragmentação do licenciamento reverberam em inúmeras denúncias de descumprimento da legislação ambiental e violação de direitos. Premidos pela adoção imediatista e desproporcional de medidas mitigadoras, as quais operam efetivamente como medidas corretivas e em caráter de urgência, as famílias atingidas são levadas a uma resistência crescente que se articula a iniciativas diversas junto ao Ministério Público e à Defensoria Pública. Tais iniciativas apontam dois caminhos: a judicialização dos conflitos ou sua resolução negociada, tratamentos institucionais que tem se mostrado, não obstante, insuficientes no sentido de fazer valer os questionamentos e reivindicações levantados pelos atingidos ainda na época da análise da viabilidade socioambiental do empreendimento. 2

Os licenciamentos e suas flexibilizações 2 A análise do caso de fragmentação do licenciamento ambiental do complexo minerário Minas-Rio é interessante do ponto de vista de uma antropologia do Estado. É preciso entender que a referida fragmentação faz parte de um exercício de controle de um Estado que não é monolítico, e que por isso mesmo nos leva ao desafio de tentar desvelar os fluxos e as redes de poder que o constituem. Não abordaremos os meandros destas imbricadas relações político-econômicas, mas pretendemos iniciar uma reflexão de como, neste caso, o aparato político e regulador de um Estado burocrático, permeado por efeitos de ordem e transcendência (DAS & POOLE, 2008), administra projetos desenvolvimentistas e conflitos socioambientais. De início, faz-se necessário passarmos pelo histórico de licenciamento deste empreendimento. Contudo, é preciso chamar atenção para um fato, no mínimo, curioso. O mineroduto obteve as licenças prévias e de instalação antes mesmo das primeiras licenças ambientais concedidas, tanto ao porto quanto à mina de exploração do minério de ferro. Enquanto a Licença Prévia (LP) foi emitida para a obra do mineroduto em agosto de 2007 e a Licença de Instalação (LI) em março de 2008, a LP da mina foi concedida em dezembro de 2008, ou seja, depois do início da construção do mineroduto. Já a discussão sobre a possibilidade do projeto Porto do Açu operar como terminal portuário privativo, só foi autorizada pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), em junho de 2007, apenas dois meses antes da LI para o mineroduto. O início das obras propriamente da construção do porto ocorre a partir da concessão da LI, em dezembro de 2008. A fragmentação do licenciamento foi questionada por Ação Civil Pública interposta pela Procuradoria da República de Minas Gerais, em agosto de 2009. O fato de se iniciar o licenciamento pelo mineroduto, obra que sozinha não teria qualquer sentido, transformava as outras duas em imprescindíveis e aumentava ainda mais a pressão pela concessão das licenças às demais infraestruturas do complexo. No entanto, o pedido de suspensão do licenciamento em caráter liminar foi negado pela Justiça Federal. O pedido de Licença Prévia da mina foi formalizado no órgão ambiental mineiro em setembro de 2007 (SIAM, 2013). Antes mesmo, ainda no decorrer de 2006, o projeto já se prefigurava como irreversível, determinando decisões políticas e medidas 2 Agradecemos ao trabalho de pesquisa realizado por Clarissa Prates, Luciana Ferreira e Humberto F. Filpe, pesquisadores do GESTA/UFMG e Pólos/UFMG, durante a execução do projeto Cidade Alteridade (FD/UFMG), que nos subsidiou com uma série de dados analisados neste paper. 3

administrativas também na esfera municipal. Em resistência à forma autocrática com que se negociavam condições políticas locais para a efetivação do projeto em atendimento aos imperativos e urgências da então propositora, a MMX, um grupo de moradores organizou um fórum de discussão que se manteve ativo nos primeiros anos do licenciamento, conhecido como Fórum de Desenvolvimento Sustentável de Conceição do Mato Dentro (Fórum CMD). Concomitantemente, a empresa articulara, através do Executivo Municipal, seu próprio fórum da sociedade civil (BECKER & PEREIRA, 2011). Os antagonistas locais consubstanciaram suas posições em documentos e manifestações na audiência pública ocorrida em 05 de março de 2008, momento anterior à concessão da licença prévia. A questão fundamental a arguição do juízo de viabilidade socioambiental do empreendimento, situado no interior da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço e no curso da Estrada Real foi levantada pelo Fórum CMD e corroborada, posteriormente, pelo Parecer Único emitido pelo Sistema Estadual de Meio Ambiente - SISEMA (2008a, p. 244). Não obstante, a conclusão pela inviabilidade socioambiental do empreendimento não foi levada a efeito. Outros graves questionamentos ao empreendimento, ao processo de licenciamento e aos estudos de impacto ambiental foram levantados pelo Fórum CMD e Comissão Pastoral da Terra - CPT, entre os quais destacamos, para além dos problemas ambientais: a desconsideração, no cômputo dos impactos sobre a economia das famílias e comunidades afetadas, da produção voltada para o mercado (queijo, aguardente, farinha, doces, banana, milho, feijão etc); a falta de informações sobre o impacto da perda/diminuição da água para a viabilidade econômica dos sítios rurais; desconhecimento, pelo SISEMA, das modalidades de ressarcimento adotadas nos processos de negociação de compra e venda de áreas demandadas pelo projeto minerário, realizados pelo empreendedor antes mesmo do pedido de licenciamento; caráter genérico da proposta de reestruturação das atividades econômicas afetadas pelo empreendimento; ausência/incompletude dos estudos relacionados ao afluxo populacional nos municípios da chamada Área de Influência Direta, entre outros (SISEMA, 2008b). Mais importante que listar todas as questões levantadas, é observar que o Fórum e a CPT cobraram expressamente que o SISEMA se mostrasse consequente com a avaliação de seus próprios técnicos, que haviam apontado inúmeras falhas e a insuficiência dos estudos de impacto ambiental. 4

A licença prévia foi concedida ao Projeto Minas-Rio com centenas de condicionantes e, consequentemente, com a postergação, para a fase seguinte do licenciamento, de estudos e informações cruciais à própria formação do juízo de viabilidade ambiental do empreendimento (SISEMA, 2008b), como por exemplo, o universo de famílias atingidas. 3 Através de uma série de denúncias dos moradores e de alguns ambientalistas, o Ministério Público Estadual ingressou com um pedido de liminar para suspender a LP. A liminar foi concedida, porém, no dia seguinte, a Secretária Estadual de Meio Ambiente ingressou com pedido de suspensão desta e obteve ganho da causa (GESTA, 2014). Os efeitos da atuação da então MMX e, posteriormente, da Anglo American sobre a população atingida, assim como os efeitos do avanço do próprio processo de licenciamento, foram discutidos em relatório parcial do Projeto Cidade e Alteridade. 4 Por ora, observa-se que a concessão da licença prévia, nos termos em que ela ocorreu, desencadeou danos irreversíveis, consubstanciando um quadro de múltiplos e complexos fatores cuja combinação ou concorrência não foi deslindada até o momento. Para se ter uma pequena ideia das consequências da fragmentação e dos impactos provenientes deste licenciamento, foram detectadas em vistoria feita pela analista pericial em antropologia do Ministério Público Federal, em novembro de 2009, duas comunidades que se encontravam no limiar da zona de interseção entre os licenciamentos das obras do mineroduto e da mina de minério de ferro. Estas estavam desamparadas tanto pelo IBAMA, quanto pelo SISEMA. A peça técnica relata o comprometimento das condições de produção e reprodução dessas famílias em seus locais de moradia devido aos impactos da obra, tais como: proibição de acessos costumeiramente utilizados, ruídos, suspensão de material particulado e alterações na qualidade e volume dos recursos hídricos (MPF, 2009). 3 No mês de dezembro de 2008, apesar dos questionamentos e falhas apontadas e da recomendação contrária do Ministério Público Federal (MPF), que sustentava que o Estudo de Impacto Ambiental apresentado pelo empreendedor era frágil e lacunoso, o Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais aprovou a Licença Prévia (LP) para a área da mina e da planta de beneficiamento (GESTA, 2014). 4 GUSTIN, Miracy (Coord.). Impactos da Mineração na Região de Conceição do Mato Dentro. Relatório parcial do Projeto Internacional de Pesquisa Cidade e Alteridade. Núcleo temático mineração na região de Conceição do Mato Dentro. Pesquisadores do Núcleo: Profa. Ana Flávia Santos e Humberto F. Filpi. Colaboradores do GESTA: Profa. Andréa Zhouri, Clarissa Prates, Luciana Ferreira, Poliane Janine Ribeiro, 2013. 5

Mesmo com todos os problemas denunciados pelos atingidos e apontados pelas vistorias técnicas, a continuidade do licenciamento se daria por uma nova fragmentação, desdobrando a licença de instalação em duas fases distintas, LI Fase 1 e LI Fase 2. 5 Dessa forma, as condicionantes estabelecidas no processo de concessão da LP que foram cumpridas pelo empreendedor foram vinculadas à LI 1, ao passo que as condicionantes não cumpridas foram atreladas à LI 2. Assim a LI 1 foi julgada pelo COPAM e concedida, permitindo que a empresa iniciasse a instalação do empreendimento, mesmo sem ter cumprido todas as condicionantes da LP (GESTA, 2014). A aprovação da primeira Licença de Instalação ocorreria exatamente um ano após a concessão da Licença Prévia, em dezembro de 2009. A segunda, em dezembro de 2010. Nenhuma dessas etapas assistiu ao cumprimento do conjunto das condicionantes estabelecidas ainda na LP; ao contrário, novos prazos e novas condicionantes foram agregados ao processo, e os anos de 2009 e 2010 se caracterizaram pela agudização do quadro socioambiental em Conceição do Mato Dentro, devido à indefinição da situação dos atingidos e ao aprofundamento dos impactos provocados pelo início das obras de instalação da mina e pelo avanço das obras do mineroduto. É nesse contexto que a Secretaria Estadual de Meio Ambiente - SEMAD resolve intervir, chamando os diversos órgãos, instâncias de fiscalização e sociedade civil a um esforço de atuação, destinado a solucionar os problemas do caso Conceição. Várias medidas decorreram desse movimento, como a exigência, transformada em condicionante do licenciamento (LI Fase 1), de considerar o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado no caso da Usina Hidrelétrica de Irapé como parâmetro mínimo para o reassentamento das famílias atingidas. A apresentação de um cadastro de atingidos foi igualmente incluída no licenciamento. O modelo de Irapé também inspirou, por seu turno, o convite a uma maior presença da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado de Minas Gerais (FETAEMG) em Conceição do Mato Dentro, do que resultaria a formação, no ano de 2010, de uma Comissão de Atingidos. 5 Segundo Becker & Pereira (2011, p. 245-246), a distribuição das atividades entre as duas fases seguia a seguinte organização: A) Fase 1 - Mina: resgate de flora (ficando para a fase 2 a supressão da vegetação e decapeamento do solo); pilha de estéril, Centro de Referência Cultural e Ambiental, Estação de bombas do Rio do Peixe: abertura de acessos; terraplenagem, aterros, cortes e fundações (obras com balanço de massa estimado em 6 milhões de metros cúbicos de terra); edificação do canteiro de obras, unidades operacionais, almoxarifados e alojamentos; aterro sanitário; dique de contenção de finos. B) Fase 2 Edificação da unidade de beneficiamento, construção da barragem de rejeitos e da adutora para condução da água captada no Rio do Peixe. 6

Em março de 2010, o IBAMA e a Superintendência Regional de Regularização Ambiental (SUPRAM Jequitinhonha) foram instados a fazer uma vistoria conjunta das obras. O problema das famílias que se encontravam no limiar das áreas de licenciamento do IBAMA e do SISEMA se agravara e conforme relatado pelos moradores durante a vistoria: [...] as famílias vem sendo paulatinamente inviabilizadas em seus locais de moradia, há meses, sem que nenhuma medida, por parte de qualquer órgão fiscalizador, seja do Estado, seja da União, tenha sido efetivada, para impedir que tal situação se perpetuasse; no atual momento, já desesperadas com sua situação, essas famílias começam a manifestar urgência em abandonarem seus lugares, negociando seus patrimônios sem a tranquilidade necessária para assegurarem que suas condições de vida sejam recriadas em outro lugar (MPF, 2010, p.15). Portanto, conforme consta na Ação Civil Pública n o. 2009.38.00.021033-0, o IBAMA desconsiderou, no curso do licenciamento, a existência de comunidades tradicionais situadas na área afetada pela implantação das estruturas que compõem o ponto de partida do mineroduto (MPF, 2009, fls. 25-29). O SISEMA, neste mesmo contexto, atribuiu única e exclusivamente a responsabilidade ao IBAMA, para que o órgão intercedesse junto ao empreendedor e cobrasse medidas mitigadoras para sanar os impactos identificados. Ao longo desse ano, diversas famílias, acompanhadas pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais e Defensoria Pública, firmariam acordos com a empreendedora, lhes sendo, em tese, assegurados os parâmetros estabelecidos comparativamente ao TAC de Irapé. A empresa Anglo American classificara, em 2011, suas ações como modelar apontando o conjunto de suas realizações nesse período: Estamos atuando com total respeito às pessoas e à realidade local. Ouvindo, conversando e fazendo tudo de forma harmônica, preparando a região para conviver com a mineração. [ ] Um dos seus diferenciais - inspirado na bem-sucedida experiência da Usina de Irapé, da Cemig - é o Programa de Negociação Fundiária, especialmente criado pela Anglo American para cuidar de todas as atividades ligadas à aquisição de terras e reassentamento de famílias. Os primeiros acordos começaram a ser fechados em agosto do ano passado e envolvem cerca de 80 proprietários de terrenos nas comunidades de Ferrugem/Sapo, Água Santa e Mumbuca, em Conceição do Mato Dentro e Alvorada de Minas (ECOLÓGICO, 2011). 7

A distância entre o discurso da empreendedora e a realidade vivenciada pelos atingidos ficaria registrada nos resultados da vistoria conjunta IBAMA/SEMAD realizada em 2010, bem como em diversos documentos protocolados na SUPRAM Jequitinhonha ao longo de 2010 e 2011. Conforme demonstram Becker & Pereira (2011, p. 246-248), enquanto os impactos se agravavam, atingindo um contingente populacional cada vez mais amplo, a empreendedora acionava dispositivos burocráticos e técnicos para evitar o reconhecimento dos danos e dos atingidos, em sua totalidade. A inoperância das medidas protetivas que, por mediação das diversas instâncias do Estado, foram sequencialmente incorporadas ao Licenciamento, sugere que sua principal eficácia consistiu na produção de efeitos de verdade (FOUCAULT, 1999, p. 29), em momentos críticos para o avanço do próprio processo. O avanço das obras da área de partida do mineroduto, não obstante incidir em área sobreposta, em larga medida, à de instalação da mina, faria implodir as condições e a qualidade de vida das comunidades no entorno das instalações. Com o início da instalação da infraestrutura para exploração da mina, ampliaram-se os impactos socioambientais decorrentes do empreendimento, e, assim, elucidou-se a multiplicidade e extensão desses impactos que definitivamente não haviam sido prognosticados. Isto porque o estudo de impacto ambiental adotara uma definição extremamente restritiva para o reconhecimento do universo sociocultural afetado, limitando-o à área necessária à instalação das principais estruturas do empreendimento, por isso a empresa chegou a um número de 80 proprietários, como citado anteriormente. Neste sentido, foi determinado, em reunião no mês de junho de 2010, no órgão ambiental mineiro responsável pelo licenciamento da mina de Conceição do Mato Dentro, que a empresa mineradora custeasse um novo laudo a ser realizado por empresa independente, indicada pela Comissão de Atingidos, para uma melhor caracterização da ADA e AID do complexo minerário. O novo estudo, um diagnóstico socioeconômico realizado pela empresa Diversus Consultores Associados LTDA, foi finalizado em agosto de 2011 e constatou, além de uma diversidade de impactos, um universo de mais de quatrocentos domicílios distribuídos por vinte e duas comunidades, e não duas, como apresentado inicialmente pelo EIA/RIMA. [ ] problemas de comunicação e transparência nas ações do empreendedor; processos de negociações diferentes ou insuficientes para os atingidos por não levar em consideração as decisões da SUPRAM Jequitinhonha no que diz respeito ao TAC de Irapé; ausência de acompanhamento psicossocial para as 8

famílias atingidas; desconsideração das formas tradicionais de posse da terra e de produção como hortas, quintais, pomares e fabricação de quitandas; não cumprimento dos prazos acordados nas negociações e/ou desinformação geral sobre os encaminhamentos a esse respeito; problemas com interdição dos acessos; incômodos decorrentes da detonação de explosivos, transtorno decorrentes da diminuição e contaminação das águas; não consideração dos diferentes usos dos córregos e rios para o lazer, a dessedentação de animais e outros costumes domésticos (DIVERSUS, 2011, p. 302). Os efeitos da flexibilização e as novas formas de regulação A lógica econômica do cálculo custo-benefício de qualquer obra, segue seu sentido hegemônico também no campo ambiental. A definição obedece ao critério do menor custo, predisposto a delimitar um mínimo, inclusive, do contingente a ser atingido (FASE/ETTERN, 2011, p. 149). Vainer (2008) define que nos estudos de impacto ambiental, há um modelo hegemônico, que ele designa territorialpatrimonialista, que toma como perspectiva de definição do atingido a aquisição do domínio, ou seja, da propriedade da área necessária ao empreendimento. No caso do projeto Minas-Rio, esse é o critério que se encontra expresso tanto na definição de Área Diretamente Afetada (ADA), como naquela a ser ocupada pelas futuras instalações do empreendimento. 6 Essa estratégia se reveste de um sentido político: o da desconstituição de sujeitos de direito. As disputas pela definição do termo já eram perceptíveis quando da discussão da Licença Prévia ocasião em que, como vimos, o Fórum CMD questionou justamente sua indefinição e elas se aprofundariam a partir das etapas de discussão e posterior concessão das licenças (1 e 2) de instalação. Três seriam os motivos, para além da fundamental existência de uma instância crítica como o Fórum: primeiro, à necessidade formal de uma delimitação do contingente atingido veio se somar um princípio de questionamento ao modelo territorial-patrimonialista, implícito à adoção do TAC de Irapé como paradigma, posto ter sido essa uma importante questão preliminar ao termo de ajustamento (SANTOS, 2011, p. 412-413); segundo, a tomada de consciência, por parte da população atingida, da verdadeira escala de magnitude dos impactos do empreendimento, com o avanço das obras na área de partida do mineroduto e o início das obras da mina; terceiro, os próprios mecanismos acionados pela Anglo American, que, ao 6 Diversus, 2011, p. 10; p. 221. 9

provocarem a fragmentação do universo social atingido, expuseram, em contrapartida, a própria dimensão de conjunto. Uma das condicionantes aprovadas na concessão da LI Fase 1 determinava a realização de um cadastro de famílias atingidas. O levantamento encaminhado pela empresa, em janeiro de 2010, trazia cerca de 45 famílias, distribuídas nas futuras áreas da barragem e da mina uma demonstração clara da restrição operada pelo modelo territorial-patrimonialista. Os atingidos questionaram os critérios utilizados, demandando que, para além da dimensão estritamente espacial, as relações socioculturais e ambientais fossem consideradas na delimitação do universo populacional. Nos embates travados entre a LI Fase 1 e 2, a aparente flexibilização do critério espacial cederia, entretanto, diante de um novo recorte restritivo, implícito à categoria de atingido emergencial. Sob a justificativa de atender emergencialmente às famílias que haviam ficado reféns das obras do mineroduto, o licenciamento passava a operar uma nova engrenagem de fragmentação, desta vez, do conjunto dos atingidos (BECKER & PEREIRA, 2011; DIVERSUS, 2011). Outro processo de fragmentação entre os atingidos foi a criação recente da categoria de emergenciais para os moradores das comunidades de Mumbuca e Ferrugem, que considerados em situação emergencial tiveram seu processo de pré-negociação estabelecido no Fórum de Conceição de Mato Dentro, enquanto famílias de Buriti [...], Taporôco e Gondó, também diretamente afetadas pela implantação e possível expansão da mina, inclusive tendo parte das famílias realocadas, tiveram processos diferentes de negociação, sendo que algumas delas, como em Taporôco, ainda não foram procuradas, acarretando na separação de seus parentes residentes nas comunidades vizinhas de Mumbuca e Ferrugem. A própria categoria de emergenciais implica em uma classificação que é construída não raras vezes por externos à comunidade, que muitas das vezes não consideram e respeitam suas sugestões. [...] Nesse caso, a emergência parece ter sempre estado a favor do empreendimento. [...] Até mesmo entre as famílias consideradas emergenciais foi criada uma nova subdivisão quando da reunião da SUPRAM de Diamantina de dezembro de 2010 que aprovou a Licença de Instalação Fase 2 e determinou o reassentamento de quatro famílias em um prazo inferior aos demais. Dentre estas quatro famílias, uma era de Passa Sete e nem fazia parte das famílias de Ferrugem e Mumbuca/Água Santa, anteriormente indicadas como emergenciais (DIVERSUS, 2011, p. 171-172). 10

No ano de 2012, houve uma forte atuação do Ministério Público do Estado de Minas Gerais em Conceição do Mato Dentro. A Audiência Pública, coordenada pelo órgão no dia 17 de abril de 2012, contou com a presença de representantes do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais. Nesta Audiência, os atingidos questionaram os reassentamentos e os contratos de venda de terras feito junto à empresa, denunciando os impactos provenientes da contaminação das nascentes de água, envenenamento da criação, fragmentação e perda de coesão de comunidades e famílias, invasão de terras e retirada sem autorização de equipamentos como porteiras e cercas, usados para delimitar as propriedades (ESTADO DE MINAS, 2012). Um mês após a Audiência, três recomendações legais, emitidas de forma conjunta por essas instituições, exigiam da empreendedora Anglo American medidas destinadas a fazer cessar violações de direitos da população atingida e minorar os problemas ambientais relatados. Diante da ampliação dos impactos provenientes do desenvolvimento das obras e das inúmeras denúncias e investidas junto aos Ministérios Públicos Estadual e Federal, ações civis públicas questionando a legalidade do licenciamento ambiental do empreendimento, ou de obras a ele vinculadas, os atingidos obtiveram, ao longo do ano de 2012, vitórias parciais. Em março, as obras de instalação do empreendimento foram paralisadas por força de liminar, por colocarem em risco o patrimônio histórico, incluindo sítios arqueológicos detentores de vestígios de comunidades quilombolas. Uma segunda ação civil pública, interposta em abril, questionou o descumprimento da condicionante prévia que exigia a anuência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente dos Recursos Naturais - IBAMA para a supressão da Mata Atlântica, na implantação da linha de transmissão de energia que dará suporte à extração e transporte do minério. O deferimento da liminar paralisou as obras por cerca de oito meses. Em junho, uma ação do Ministério Público Federal, em atuação conjunta com o Ministério Público Estadual, obteve na Justiça Federal liminar para a proteção do patrimônio espeleológico nacional na área de implantação do Mineroduto Minas-Rio, em Conceição do Mato Dentro. Tais ações alteraram o cronograma do empreendimento, obrigando a empresa a prestar esclarecimentos, diante da mídia nacional e internacional, acerca dos prejuízos causados com o significativo atraso e aumento do custo do projeto Minas-Rio. Um dos principais desdobramentos da Audiência Pública realizada em abril de 2012, foi a constituição da Rede de Acompanhamento Socioambiental (REASA). A proposição da formação de uma rede com representantes da sociedade civil e órgãos governamentais foi externada em uma reunião pública realizada no mês de maio, deste 11

mesmo ano, na comunidade de Jassém, zona rural de Alvorada de Minas. A proposta da Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Social (CIMOS), órgão auxiliar da atividade funcional do Ministério Público Estadual, previa a composição de um coletivo para o acompanhamento dos desdobramentos do processo de licenciamento e instalação do projeto Minas-Rio, constituído pelos Secretários de Meio Ambiente dos três municípios envolvidos; por representantes de cada uma das comunidades atingidas; dos Conselhos Municipais de Meio Ambiente e de Desenvolvimento Rural Sustentável (CODEMA e CMDRS); da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMAD), grupos de pesquisa, além do próprio Ministério Público Estadual, Federal e Defensoria Pública. Esta rede deveria se reunir mensalmente em comunidades afetadas pelo empreendimento para tratar dos impactos socioambientais. Haveria ainda um espaço virtual para troca de informações, disponibilização de documentos relacionados ao caso, publicação da pauta e local das reuniões. O público presente à primeira reunião sugeriu a participação da EMATER e de representantes da própria mineradora Anglo American (GESTA, 2014). Institucionalmente, a REASA é definida como uma rede: [...] criada a partir da necessidade de se acompanhar responsabilidades e impactos socioambientais de empreendimento minerário em Conceição do Mato Dentro e região. Essa estratégia de atuação ministerial proativa e resolutiva para além de evitar a judicialização e contribuir para a pacificação social, pretende-se seja utilizada como paradigma em outras regiões com o intuito de minorar e prevenir violações a Direitos Fundamentais, decorrentes de grandes empreendimentos (CIMOS, 2012). Antes de qualquer reflexão acerca do significado de uma tal proposição no contexto do licenciamento do projeto Minas-Rio, passaremos a uma breve descrição da dinâmica das reuniões da REASA e do processo de seu funcionamento ao longo de 2012. A primeira reunião da REASA ocorreu em São José do Arruda, município de Alvorada de Minas 17/06/2012) e, a partir de então, deu-se uma sistemática de reuniões mensais, cada uma acontecendo em uma comunidade diferente, até o ano de 2014. Desde as primeiras reuniões as pessoas relatavam os problemas com a falta de reconhecimento, enquanto atingidos pelas obras de infraestrutura do empreendimento, a incompatibilidade destas com a manutenção dos modos de vida das famílias afetadas, a poluição e diminuição no volume dos córregos, as más condições das estradas, trânsito, ruídos e poeira (PEREIRA; BECKER & WILDHAGEN, 2013). 12

A participação da empresa nessas reuniões não contribuía com esclarecimentos suficientes e, assim, não facilitava a resolução dos problemas relatados durante toda a trajetória da REASA. Dessa maneira, os discursos do empreendedor passaram a ser banalizados e chegou-se a cogitar a real necessidade da mineradora se pronunciar naquele espaço. 7 No ano de 2013 se intensificam as denúncias de violações dos direitos humanos e, concomitantemente, a organização do movimento de luta e de resistência. Foi promovido, pelo Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA/UFMG) e o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), um intercâmbio entre atingidos pelo complexo do Porto de Açu e os atingidos pela mina. O primeiro encontro ocorreu em Maio, em Conceição do Mato Dentro, e o segundo, em Agosto de 2013, em São João da Barra (RJ). Além de conhecerem de perto os problemas que cada grupo enfrenta em seu dia a dia, puderam trocar experiências de lutas e estratégias de resistência aos empreendimentos. No mês de Maio e Julho de 2013 a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) promoveu duas audiências públicas, em que novas denúncias foram feitas, inclusive de impactos negativos na cidade de Conceição do Mato Dentro, tais como sobrecarga aos equipamentos e serviços públicos municipais e a especulação imobiliária exorbitante (GESTA, 2014). A despeito de todos os problemas e questionamentos colocados ao longo do processo de licenciamento, inclusive relativo à indefinição do universo dos atingidos pelo projeto de mineração, em setembro de 2013, pela primeira vez, o Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais (COPAM) pautou o estudo realizado pela consultoria Diversus ainda em 2011. Todavia, estava em pauta também outro estudo contratado pela Anglo American, datado de junho de 2013, que representava uma manifestação da empresa sobre o estudo da Diversus, mas que qualificava os impactos apontados enquanto impactos supostos. Apesar de pautados, inclusive em outras reuniões ordinárias, os estudos mencionados nem chegaram a ser avaliados pelos conselheiros do COPAM. Pelo entendimento do órgão ambiental mineiro, a principal demanda, a de realização de um cadastro com todas as famílias atingidas, ainda não havia sido realizada. Nesse sentido, deliberou-se que a Diversus retornaria a campo para efetuar o cadastramento das famílias. 7 Para maiores detalhes sobre a dinâmica das reuniões da REASA e uma análise sociológica desses encontros, ver Gustin, Miracy (2013) e Pereira; Becker & Wildhagen (2013). 13

Se pudéssemos atribuir um quarto momento na trajetória das reuniões efetivadas, chamaríamos a atenção para a reunião em que se estabeleceu o rompimento com a dinâmica da REASA. Em 20 de abril de 2014, os atingidos de várias comunidades se reuniram, apenas entre eles, na comunidade do Gondó, para propor o nascimento do movimento REAJA, em contraposição à proposta inicial do Ministério Público Estadual. Nesse encontro foram debatidos a atuação da empresa de consultoria Diversus na realização da pesquisa de cadastramento das famílias consideradas atingidas. Também foi debatido qual o sentido de continuar se reunindo com a empresa e MPE, se consequentemente nenhuma solução foi apresentada. Ao final foi elaborado um documento com mais uma série de denúncias, recorrentes, além de questionamentos sobre demandas das comunidades, dirigidos, principalmente, ao MPE. O esforço da mobilização de rompimento culminou com a entrega do documento ao promotor de justiça da comarca de Conceição do Mato Dentro, ao Prefeito Municipal e à presidência da Câmara de Vereadores de Conceição do Mato Dentro, através de uma manifestação pública pelas ruas da cidade no dia 08 de maio de 2014, marcando a reação dos atingidos frente ao processo de mediação adotado ao longo do licenciamento. Algumas reflexões finais Olhar um processo em perspectiva, recuperando trajetórias e contextos, é um movimento capaz de produzir inteligibilidade. Retraçar o trajeto do licenciamento do projeto Minas-Rio nos coloca diante de duas constatações. A primeira, refere-se a um padrão recorrente no processo de licenciamento, de flexibilização na concessão das licenças sem o cumprimento de condicionantes impostas em etapas anteriores, o que ressalta, de forma expressiva, o imperativo da ordem do cálculo e do poder econômico. O altíssimo grau das falhas e insuficiências técnicas observadas, associado à gravidade e complexidade crescentes dos impactos socioambientais, contrasta com a impermeabilidade do processo de licenciamento a intervenções capazes de promover mudanças efetivas. Reafirma-se a lógica da adequação ambiental neste caso, de modo tal, que as melhores intenções se tornam o seu próprio simulacro (Zhouri, Laschefski & Paiva, 2005). De fato, os pacotes de medidas editados a cada etapa do licenciamento, em negociações realizadas no âmbito do processo, ou fora dele, têm demonstrado possuir eficácia mínima, salvo quando revertem para um cálculo custo-benefício que interessa à empreendedora a exemplo da categoria atingido emergencial. A eficácia dessas 14

medidas sobre a realidade parece consistir, desse modo, no próprio efeito que pode ter a sua codificação/formalização em um processo burocrático legal. Em outras palavras, trata-se da construção de uma legitimidade a partir do uso da palavra autorizada o exercício de um poder simbólico, como modo de trazer à existência aquilo mesmo que se enuncia (BOURDIEU, 2002). O reverso é também verdadeiro: os antagonistas, alvo do exercício da violência real e simbólica, pouco conseguem acessar dos mecanismos capazes de codificar, no mundo do direito, a violência sofrida no mundo dos fatos. A segunda constatação é a da força e persistência desses que, corajosamente, se movem em sentido contrário: protagonistas, se bem observarmos, das reais, embora mínimas, possíveis mudanças de percurso. É a constatação mais espantosa, porém menos perceptível, devido, talvez, à memória do cansaço em que vamos reencontrar, tempos depois, os mesmos personagens. Percebe-se, na audiência pública de abril de 2012, justamente, a importância da legitimidade, do reconhecimento público. A Rede de Acompanhamento Socioambiental REASA se inscreve em um modelo de governança e de resolução negociada de conflitos, que pretende instituir o diálogo em alternativa à via da judicialização. Entretanto, é a dimensão da arena pública e não a da instância de negociação, que parece consistir, para os atingidos, o seu elemento de força. O que vai se constituindo, pela prática de outros ritos e outro tempo, que não os da empresa, é um espaço de afirmação legítima, consubstanciada no compartilhamento da condição de atingidos. Espaço, portanto, mais da ordem da explicitação do conflito, em que se objetivam denúncias, direitos, sujeitos. Fazer valer na realidade do licenciamento o quanto explicitado nesse espaço exatamente, os atingidos, é o desafio que se coloca. 15

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