AS GUERRAS DA ÁGUA E DO GÁS NA BOLÍVIA



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Transcrição:

AS GUERRAS DA ÁGUA E DO GÁS NA BOLÍVIA Ariel Finguerut Aluno do curso de Ciências Sociais da Unesp/Araraquara, bolsista de Iniciação Científica do CNPq e pesquisador do OREAL e-mail: arielfing@wildmail.com Resumo: Com um longo histórico de instabilidades políticas e sociais, a Bolívia vivenciou nos anos recentes diversos conflitos. Dentre eles, este artigo discute a guerra da água e a guerra do gás, duas grandes manifestações que mobilizaram o país e afetaram a ordem política. A Bolívia, um dos países mais pobres da América Latina, vem sofrendo em sua história as conseqüências das políticas hegemônicas dos EUA servindo muitas vezes como modelo de operações militares e laboratório de políticas econômicas liberais. No final dos anos 1980, com a re-emergência de movimentos socias indígenas e camponeses, surgem novas possibilidades de mudanças para setores da população historicamente excluídos. Palavras- Chave: Bolívia, Guerra da Água e do Gás, Movimentos Indígenas. * * * É preciso que o povo identifique os seus problemas e saiba que a política não é um jogo das elites Celso Furtado A Bolívia é um país entre os Andes e a bacia Amazônica, com mais de oito milhões de habitantes (a maioria deles de origem indígena). Fala-se espanhol, mas muitos também falam quíchua ou Aymara (50% da população é bilíngüe). Seus principais produtos de exportação vêm do setor da mineração, especialmente prata, cobre e estanho ao qual se incorporaram, mais recentemente, o petróleo e o gás. É considerado um dos países mais pobres da América latina e o Caribe (creio que é o segundo depois de Haiti, seria bom verificar e colocar) e sua história política é marcada pela instabilidade. Um dos eventos mais importantes foi a revolução de 1952, feita por trabalhadores indígenas e camponeses, e que teve como resultado a estatização das minas e a reforma agrária. Esta revolução colocou no poder o Movimento Nacionalista Revolucionário, representado pela figura de Victor Paz Estenssoro. Além dos problemas vinculados à dependência da exportação de produtos primários, à pobreza e à marginalização de boa parte da sua população, dois grandes temas acompanham a história da Bolívia após a independência da Espanha em 1825: 1) perdas territoriais: o país já perdeu 40% do seu território para o Peru, Chile, Brasil (o nosso Acre) e Paraguai. Em cerca de 100 anos, a Bolívia perdeu também todas as suas saídas para o mar. 2) Descontinuidade institucional: o país já conheceu mais de 190 golpes de Estado.

Nas últimas cinco décadas, a Bolívia teve uma média de um presidente por ano, alguns deles, como o general Hugo Banzer Suárez, que chegou ao poder através de um golpe nos anos 1970, voltou ao governo em 1990 através de eleições. Em outros casos, como Sánches de Lozada, apesar de ter chegado ao governo como presidente eleito, no seu segundo mandato teve que renunciar em meio a fortes pressões populares contra sua política econômica. Tanto Banzer como Sanches de Lozada enfrentaram fortes movimentações cujo eixo foi a política em relação aos recursos naturais: a guerra da água e a guerra do gás. Guerra da Água Em Cochabamba estamos longe do fim da História. (anônimo em manifestação popular Cochabamba Março de 2003 ) Em setembro de 1999, há uma mudança no consórcio que controla a água de Cochabamba. Esta cidade, de 500.000 habitantes tinha, e ainda tem, um dos piores serviços de água da Bolívia. Com apenas 50% da população com acesso ao sistema público de água, o abastecimento é irregular, a racionamento é uma prática diária e a vontade política para resolver tal sistema até então se mostrou ausente. i Cria se então um novo consórcio, formado pelo governo da Bolívia e uma multinacional (EUA, Itália e Espanha) ii, em que o primeiro ficaria com 25% das ações e as empresas estrangeiras com o restante. iii Formou se assim a Águas Del Tunari, com contratos, poderes e preços desconhecidos tanto por parte da população quanto do governo. A primeira medida deste novo consórcio foi aumentar os preços do serviço; o gasto médio de uma família (5 pessoas) por mês era de US$35. Com os novos preços, esta mesma família passou a gastar uma média de 60$ por mês. As tarifas foram indexadas ao dólar e os ajustes foram justificados como estando previstos no contrato. Ou seja, o aumento era para garantir o retorno. Como parte desta política, o consórcio não aceitava qualquer tipo de concorrência, chegando ao ponto de cobrar pela coleta da água da chuva. Tendo a praça de Cochabamba como símbolo do centro do poder, a população, de maioria camponesa, começa a manifestar os primeiros sinais de desagrado( 03\2000). A mobilização popular exige de imediato rever um contrato, que depois se descobriu que iria até 2029, cujo registro como empresa vinha das Ilhas Cayman, e se restringia aos moradores de Cochabamba. Num segundo momento, o movimento cresceu, e os camponeses se voltaram contra a Secretaria do Trabalho, incluindo o governo nacional nos questionamentos e ampliando a agenda de discussões para temas como as condições de trabalho dos servidores públicos, os planos para erradicar o cultivo da coca, a miséria, a fome e o desemprego. Na segunda manifestação em abril de 2000, na mesma praça, em que participam mais de 20mil pessoas, cria-se um clima favorável ao confronto: o governo envia o exército, o comércio fecha as portas, muitas pessoas deixam de ri ao trabalho, a polícia barra a participação de manifestantes vindos do norte conhecidos como Cocaleiros (Chapare, principal região cocaleira da Bolívia) e ocupa a praça. A partir desse momento, os manifestantes passam a se organizar por bairros, fazendo consultas à população sobre quem deveria decidir sobre a água, formando uma Coordenadoria. A população por sua vez passa a estocar alimentos. No lado das forças da ordem, o exército cria o Grupo especial de Segurança, cuja função é a repressão de movimentos sociais.

As manifestações, que começaram timidamente, após quadro dias atingiam praticamente a totalidade de Cochabamba. Numa tentativa de ocupar a praça, muitos líderes são presos, o que pela primeira vez faz o governo nacional pensar num estado de exceção. Neste contexto, o prefeito de Cochabamba renúncia. O presidente Banzer decreta estado de sítio. Em La Paz, concomitantemente ao que estava ocorrendo em Cochabamba, políciais se recusam a sair dos quartéis, protestando por melhores condições de trabalho e por melhores salários. Nas prisões, rebeliões de presos criticam a lentidão da justiça. Um manifestante é morto em Cochabamba e a sociedade civil passa a se organizar para resistir ao estado de sítio. Da luta pelo preço da água, passa-se à exigência da saída do consórcio Águas Del Tunari. Os conflitos se agravam com os cocaleiros passando a fazer bloqueios nas estradas. O governo se vê acuado e começa a ceder, primeiro em relação à lei das Águas que havia permitido a formação do consórcio e, em seguida, em relação ao plano de erradicação da coca. Acaba o estado de sítio e o consórcio é desfeito. O fato de que vários movimentos sociais tenham agido ao mesmo tempo contra o governo é um aspecto a ser destacado. Mais do que luta pela água, houve uma reação à miséria, à exclusão e à política econômica do governo. Uma particularidade destas manifestações é que não houve fragmentação. Em outras oportunidades, camponeses do Altiplano manifestavam-se por reforma agrária, estudantes em La Paz por educação, e assim por diante. A partir da guerra da água, o que se vê é a união dos movimentos socias e uma articulação de propostas que muitas vezes põe em xeque a capacidade de negociação do governo. O que nos mostra também uma crise no sistema partidário boliviano, com camponeses, policiais, estudantes e demais setores da população civil passando por cima das instituições. Dentro deste movimento, devemos destacar a atuação da COB (Central Operária Boliviana) que, ao longo dos anos 80 e 90, passou por um sistemático processo de desmonte e enfraquecimento, mas que ganhou força novamente. As técnicas de protesto também mudaram, podemos notar uma maior preocupação com a mídia, e nas táticas, acombinação da pressão com a negociação. A atual gestão da água em Cochabamba se dá através de conselhos de bairro. Por outro lado, aumentou fortemente a estrutura de poços artesianos que, mesmo sendo particulares, ganham uso público. Entre os movimentos inspirados pelos resultados da Guerra da água destaca-se o levante de setembro de 2000, gerado por uma proposta do FMI de aumentar a arrecadação do Estado. Que foi traduzido pelo governo como aumento do imposto retirado na fonte, bem como aumento na gasolina. Mais uma vez os camponeses participam das manifestações e fazem barreiras nas estradas. Em 48h, quatro pessoas morrem, o que força o governo a negociar. O número de mortos, sobe rapidamente, incluíndo quatro militares e seis civis. Sánches de Lozada, então presidente, entra em rede nacional pedindo paz! Guerra do Gás (2003) 74 pessoas tiveram que morrer para mostrar para as elites que o gás é nosso direito (em manifestação popular) A administração do presidente Gonzalo Sánches de Lozada caminhava a passos longos para um enfrentamento e desgaste diante dos movimentos socias. O primeiro a declarar guerra ao Gringo iv como Lozada era conhecido entre os manifestantes, foi a

CSUTCB (Conferência Sindical Única de Trabalhadores do Campo da Bolívia), através do bloqueio de estradas. Num segundo momento, quando surge a proposta de exportar gás para o México e para os EUA, via um porto do Chile, o levante tornou-se mais efetivo, contando com a participação da COB, que promove greves em La Paz. O presidente Lozada, por sua vez contando com o forte apoio dos EUA e das elites bolivianas, responde às já fortes exigências de renúncia: não renuncio por que minha mulher quer continuar sendo a primeira dama dos bolivianos (em rede nacional, em tom de brincadeira). A miséria generalizada por toda Bolívia, o achatamento salarial atrelado ao aumento dos impostos e a sensação de humilhação diante da perda de um bem nacional, ainda por cima através do Chile, país frente ao qual perdeu sua saída ao mar na Guerra do Pacífico desencadeiam um forte movimento que se espalha por todo o território nacional. Na mesma velocidade sobe o número de mortos e feridos, que chegam a 60 e 200 respectivamente. A exportação do gás seria um negócio nos moldes do que foi o da água em Cochabamba. Formou-se um consórcio, a Pacific LNG, composto pela British Oil, British Petroleum e pela Repsol/YPF. O acerto com o governo boliviano ocorreu em termos proporcionais, ou seja, na escala 1/24, a cada US$24,00 ganhos (livres de impostos), o governo receberia US$1,00. Pelo contrato o consórcio iria faturar algo na órbita de 27 bilhões de dólares. Através do acordo com o governo Chileno, o gás seria exportado para a América do Norte (EUA e México). Com o alastramento dos conflitos, a elite boliviana passa a se armar e a montar grupos de proteção para evitar saques em lojas, proteger fábricas, casas e bairros residenciais de classe média alta. A violência continua crescendo e após um mês de protestos, com o governo sendo incapaz de superar a situação bem como apresentar soluções para a crise econômica e social, a situação de Lozada torna-se critica. O Comitê Pró-Santa Cruz, o vice Carlos Mesa e os principais partidos de sustentação do parlamento, rompem com ele e o isolam no poder. Na cidade El alto, de 800mil habitantes (70% de indígenas), a cerca de 100KM de La Paz, a população decide também decretar sua guerra ao Gringo. Cinqüenta e quatro pessoas morrem em protestos, que envolveram não só a questão do gás como a inserção internacional da Bolívia, a democracia, a abertura econômica dos anos 90 e suas conseqüências, as heranças dos governos elitistas e ditatoriais da história bolíviana bem como as condições de vida da maioria da população. Além de Sanches de Lozada, as manifestações se voltaram também contra os EUA, que tinham no Gringo seu maior aliado. De acordo com dados mostrados pelo jornalista Fernando Canzian: Os EUA estão por trás dos dois principais motivos da crise boliviana: a erradicação de plantações de coca, financiada por Washington e a exportação do gás para os EUA ( CANZIAN, Folha S. Paulo, 22\08\04) Se analisarmos alguns discursos das lideranças dos movimentos camponesesindígenas, principalmente de Felipe Quispe e Evo Morales, encontraremos a preocupação com a presença dos Estados Unidos. Em 2002, quando foi candidato a presidente, Morales apoiou-se num discurso contra o neoliberalismo e os Estados Unidos, tendo um amplo apoio popular e eleitoral, que o colocou em segundo lugar nas eleições. Quispe, uma das figuras centrais na queda de Lozada, discursando ao lado de Carlos Mesa, chegou a declarar que já haviam mandado um de volta a Washington, outros poderiam seguir o mesmo caminho, sendo calorosamente aplaudido por milhares de pessoas. Após 14 meses no poder, Sanches de Lozada deixa o governo, pede asilo ao governo dos EUA, chama aqueles que o forçaram a sair de narcosindicalistas e de

terroristas. Carlos Mesa, o vice, assume com discursos ambíguos, ora declarando que irá convencer a população da necessidade de exportar o gás boliviano, ora se dizendo a favor de um plebiscito. Para uma platéia diz que fica até 2007, para outra, que marcará eleições antes desta data. Depois de tantas guerras e crises, num país que exporta menos do que 25 anos atrás v, a população boliviana não mais parece temer a radicalização política nem a repressão governamental. No caso da água e do gás, encontrou formas de lutar pela soberania e os interesses nacionais. i Chegou se a gastar 70mi de dólares na construção de um túnel que iria trazer água, atravessando as cordilheiras; na prática não saiu de um interesse eleitoral. ii A principal acionista do consórcio era a norte americana Bechtel, que hoje é parceira do governo dos EUA no Iraque. iii Em 1997, no Paraná, administração Jaime Lerner, chegou se a privatizar a Sanepar (responsável pela Água do estado), formando um consórcio de empresas privadas brasileiras e estrangeiras, estipulando no contrato uma taxa de retorno de 50% (para o petróleo só para termos um parâmetro a taxa é de 25%) e a venda foi feita por um valor um terço inferior ao valor patrimonial. Na gestão seguinte de Roberto Requião, a privatização foi desfeita. Em São Paulo também houve mudança no quadro acionário da Sabesp. Antes, o governo controlava dois terços das ações, agora o controle é de 51%. iv Alem da fama, Lozada fala um espanhol com sotaque americano.na Bolívia os brancos são cerca de 15% da população, no poder eles são algo superior a 90%. v O Brasil é um dos grandes parceiros comerciais da Bolívia, importando 11 milhões de metros cúbicos por dia de gás.