1. RESUMO 2. INTRODUÇÃO

Documentos relacionados
MEMÓRIA ORAL E NARRATIVA NA CONSTRUÇÃO DOS NOMES DAS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBOS DO TOCANTINS: MALHADINHA E REDENÇÃO

1. IDENTIFICAÇÃO PERÍODO: I CRÉDITO: 04 NOME DA DISCIPLINA: ANTROPOLOGIA NOME DO CURSO: DIREITO, ECONOMIA E PEDAGOGIA 2. EMENTA 3.

CARGA HORÁRIA SEMANAL: 04 CARGA HORÁRIA SEMESTRAL: 60 NOME DA DISCIPLINA: ANTROPOLOGIA NOME DO CURSO: PEDAGOGIA/DIREITO/ECONOMIA/FILOSOFIA

A Reinvenção da Realidade 2015 Eduardo Galvani

REFERENCIAL CURRICULAR DO PARANÁ: PRINCÍPIOS, DIREITOS E ORIENTAÇÕES. ENSINO RELIGIOSO 1.º ao 9.º Ensino Fundamental

A abrangência da antropologia Mércio Gomes

FICHA DE DISCIPLINA. Antropologia DISCIPLINA: UNIDADE ACADÊMICA: INCIS CH TOTAL TEÓRIC A: CH TOTA L: CH TOTAL PRÁTIC A:

sábado, 11 de maio de 13 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

1. IDENTIFICAÇÃO CARGA HORÁRIA SEMESTRAL: 45 PERÍODO: 1º

1. IDENTIFICAÇÃO 2. EMENTA 3. OBJETIVOS CARGA HORÁRIA SEMESTRAL: 45 PERÍODO: I

Tecendo contos O contar histórias na sala de aula

CARGA HORÁRIA SEMANAL: 04 HS CRÉDITO: 04

Plano de Ensino. EMENTA (parte permanente) PROGRAMA (parte variável) Humanidade e não-humanidade no perspectivismo ameríndio

CARGA HORÁRIA SEMESTRAL: 45 NOME DO CURSO: DIREITO/ECONOMIA/DIREITO

Proposta de Redação: A questão do índio no Brasil contemporâneo

Acesso à informação: Participação e inclusão no espaço digital

A PERCEPÇÃO DE FUTUROS PROFESSORES ACERCA DA LIBRAS NA EDUCAÇÃO DE SURDOS 1

FACULDADE SETE DE SETEMBRO FASETE

Os elementos apresentados por Darcy Ribeiro, em seu texto, evidenciam: Escolha uma: a. O território nacional.

FORMAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS, GENERO, CLASSE, RAÇA E ETNIA

PROFESSORES NEGROS E NEGRAS DA REDE MUNICIPAL DE CRICIÚMA: NARRATIVA E IDENTIDADE

História e Cultura Indígenas na Escola: Subsídios Sócio-Antropológicos para Professores da Educação Básica

TESE DE DOUTORADO MEMÓRIAS DE ANGOLA E VIVÊNCIAS NO BRASIL: EDUCAÇÃO E DIVERSIDADES ÉTNICA E RACIAL

DACEX CTCOM Disciplina: Análise do Discurso. Profa. Dr. Carolina Mandaji

COLEGIADO DE ANTROPOLOGIA

Um Olhar sobre a Cultura dos Povos Indígenas do Brasil: o cotidiano das crianças E.E. Dr Luis Arrôbas Martins

CARGA HORÁRIA SEMANAL: 04 CRÉDITO: 04 CARGA HORÁRIA SEMESTRAL: 60 NOME DA DISCIPLINA: HISTÓRIA E CULTURA INDÍGENA BRASILEIRA NOME DO CURSO: PEDAGOGIA

Plano de ensino: CONTEÚDO, METODOLOGIA E PRÁTICA DE ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA CONTEÚDO, METODOLOGIA E PRÁTICA DE ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

DISCIPLINAS OPTATIVAS

Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo FESPSP PROGRAMA DE DISCIPLINA

CIVILIZAÇÃO DOS PROFESSORES

Amauri de Oliveira Jesus Universidade do Estado da Bahia

GLOSSÁRIO DE EDUCAÇÃO INTERCULTURAL:

E t n o e c o l o g i a

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Centro de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em História

As capacidades lingüísticas da alfabetização

BIBLIOGRAFIA Sessão 1 - Notas introdutórias: cultura, diversidade, Brasil. A. Leis, diversidade cultural e escola Sessão 2 - Leis e diretrizes

Cultura e política: debates contemporâneos sobre Ementa conceito de cultura, etnocentrismo, identidade e Requ DOCENTE(S) VALIDADE

OSMANYR BERNARDO FARIAS POLÍTICAS DE INSERÇÃO INDÍGENA NA UNIVERSIDADE: O SIGNIFICADO DA FORMAÇÃO SUPERIOR PARA OS ÍNDIOS TERENA

PRÁTICAS DE ENSINO III - Metodologias

AULA 7: ORALIDADE E LETRAMENTO

Prefácio. Karina Falcone 1 Mônica Nóbrega 2

SOCIOLOGIA 1ª SÉRIE 11-SOCIOLOGIA

O EU CRIANÇA INDÍGENA A PARTIR DA FALA DE ACADÊMICOS INDÍGENAS. Flávio Rafael Ventura Candia (UCDB) Bolsista PIBIC/CNPQ. Adir Casaro Nascimento (UCDB)

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO PORTUGUÊS NO BRASIL E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

Componentes Curriculares Comuns dos Cursos de Licenciatura em Pedagogia do IFC

Contribuições do pensamento de Bakhtin para a alfabetização

Interseccionalidade nas Ciências Sociais

Resenhado por Katiele Naiara Hirsch Universidade de Santa Cruz do Sul

Prof. Ms. Julie Dorrico

ENTREVISTAS DE HISTÓRIA DE VIDA INSTRUMENTO DE AVALIAÇÃO NO CAMPO SOCIAL REGINA C. FIORATI

Círculos de Leitura e Escrita Criativa

(sociedades indígenas e sua diversidade)

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São Paulo: Centauro, 2013.

FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS NO ESTADO DE SÃO PAULO: REFLEXÕES SOBRE A CRIAÇÃO DOS DOIS PRIMEIROS CURSOS. Karina Aparecida da Silva 1

DISCIPLINA: PORTUGUÊS

OS TIPOS DE TRABALHOS CIENTÍFICOS

CASA DO PATRIMÔNIO DO MUNICÍPIO DA LAPA: OFICINA COM A TERCEIRA IDADE

Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos

DIDÁTICA DAS CIÊNCIAS HUMANAS II PC h

DIVERSIDADE CULTURAL NA EDUCAÇÃO BÁSICA: A PERSPECTIVA DOS PROFESSORES NA REGIÃO DO SEMIÁRIDO

Papel: contribuir para a compreensão da natureza e funcionamento da tradição humana.

VIVENDO EM SOCIEDADE CAPÍTULO 4 VOLUME 2

LÍNGUAS INDÍGENAS tradição, universais e diversidade

COLÉGIO MANUEL BERNARDES INFORMAÇÃO PROVA DE EQUIVALÊNCIA À FREQUÊNCIA

A ORALIDADE E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Resenha do livro A liturgia escolar na Idade Moderna

Letras Língua Portuguesa

Estudos das Relações Organização da Disciplina Étnico-raciais para o Ensino Aula 3 de História e Cultura Afro-brasileira e Africana e Indígena

IRACEMA, José de Alencar Iracema, José De Alencar

INTRODUÇÃO AO ENSINO DA HISTÓRIA E DA GEOGRAFIA. A Geografia Levada a Sério

BLOCH, Marc. A história, os homens e o tempo. In: Apologia da História ou O ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2001, pp

As Leis 10639/03 e 11645/08: O Ensino de História e Cultura dos Povos Indígenas e dos Afrodescendentes no Brasil UNIDADE 1

NOTÍCIAS. Ocorreram os seguintes eventos no primeiro semestre de 2012:

UNIDADE 1 - Do Mito à Filosofia

PLANO DE ENSINO. Antropologia e educação. Cultura da infância e da família. Construção dos modos de viver humanos. Formas alternativas de culturas.

Dados internacionais de catalogação Biblioteca Curt Nimuendajú

Didática Aplicada ao Ensino de Ciências e Biologia

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO (UFSM) Disciplina: Seminário de Tese II Professora: Dra. Marilda Oliveira de Oliveira. Vazio

Alécio Vidor 1. Doutor em Filosofia - Universidade São Tomás de Aquino, Roma.

Introdução. universidade Federal do Pará.

COMO A LINGUAGEM PODE CONTRIBUIR NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM DE MATEMÁTICA EM TODOS OS NÍVEIS DE ENSINO?

TÍTULO: A IMPORTÂNCIA DO ENSINO E APRENDIZAGEM DA LINGUAGEM DE ARTES VISUAIS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

O Lugar da Filosofia no Currículo Escolar

Sociedade e indivíduo. Cultura e socialização: cultura.

Este trabalho destina-se a apresentar o contexto, os. fundamentos e os métodos de uma nova proposta de

Escolas de Educação Básica, na Modalidade Educação Especial Parecer 07/14

AGRUPAMENTO de ESCOLAS de SANTIAGO do CACÉM PLANIFICAÇÃO ANUAL

"Uni duni tê": jogos e vivências com a Matemática. Paulo Meireles Barguil

PERÍODO 83.1 / 87.2 PROGRAMA EMENTA:

Documento de Apoio às Metas Curriculares de História

Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo FESPSP PROGRAMA DE DISCIPLINA

Código de conduta. Aristóteles Ética a Nicómaco

Disciplina: Antropologia da Saúde - Enfermagem Código: HS 184 EMENTA

DEPTO. CIÊNCIAS SOCIAIS

1º AULÃO ENEM Sociologia 1) SAS. 2 ENEM

MATRIZ DE REFERÊNCIA DE HISTÓRIA - ENSINO FUNDAMENTAL

A Noção de Lingüística Aplicada como Ciência Horizontal com Interseções. O que hoje se entende por Lingüística Aplicada (LA) ainda é algo sem limites

1ª Série. 2MUT041 CANTO CORAL I Montagem e Apresentação de Repertório coral de estilos e gêneros variados.

A tradição é um conjunto de costumes e crenças que remonta tempos antigos, praticados por nossos antepassados transmitidos

Transcrição:

1. RESUMO O presente artigo estuda a importância que tantos povos de tradição oral têm dado a registros escritos e busca desprender-se da noção imediata de que este interesse parte de uma necessidade de sua preservação cultural. Dada a abertura e a afeição por outras perspectivas e assimilações sobre a adesão de povos ágrafos à palavra escrita, busca-se explorar as porosidades que a escrita e a oralidade têm com a memória social. 2. INTRODUÇÃO As relações entre sociedade e escrita passaram a ser sistematicamente estudadas em meados do século XVII, quando o confronto de europeus com o que eles percebiam como povos sem escrita gerou formas de pensar essa diferença como deficiência (Gnerre, 1987 apud Testa, 2008, p.300). O processo civilizador, definido por Norbert Elias (1994) como uma mudança na conduta e nos sentimentos humanos rumo a uma direção muito específica a da lógica etnocêntrica de restrição e transposição do comportamento das pessoas sob uma perspectiva europeia, acontecia por meio de práticas de violências tanto físicas quanto simbólicas. No que diz respeito ao olhar destinado a povos de tradição oral, estabelecia-se uma espécie de linha imaginária, evolutiva e progressiva na qual situavam diversas sociedades segundo a utilização ou não da escrita alfabética (Gnerre, 1987 apud Testa, 2008, p.300). A disseminação mundial do ato de escrever providenciou a elaboração de crenças que, embora infundadas, foram bastante difundidas e contribuíram largamente para a marginalização da oralidade. Dentre elas, a convicção de que a palavra transposta no papel teria um valor de verdade e confiança incontestáveis. Outra crença comum instalada nesse processo é a de supostas clareza e precisão apostadas no escrito. Convencionou-se, então, que a oralidade, com suas pausas, improvisos e hesitações, seria o lugar do impreciso, e, por isso mesmo, o lugar preferido dos equívocos (Cavalcanti et al, 2005, p.9).

Em contato com a sociedade colonizadora e dominante, os povos indígenas no Brasil, tradicionalmente ágrafos, rapidamente perceberam a necessidade de também dominarem a escrita para poder minimizar a situação de desvantagem em que foram historicamente colocados (Cavalcanti et al, 2005, p.8). Se as populações indígenas encontram-se hoje onde a predação e a espoliação permitiram que ficassem (Cunha, 2012, p.125), a relevância de ler e escrever nasce a partir do fato de que a escrita pode constituir um instrumento de defesa potencialmente importante no pós-contato [com os não indígenas]. (Cavalcanti et al, 2005, p.9). 3. OBJETIVOS Observar como os registros escritos vêm ganhando espaço e relevância entre os povos indígenas, que constroem, tradicionalmente, memória oral. 4. METODOLOGIA Para cumprir os objetivos dados, esta pesquisa fundamenta-se primordialmente na ampla revisão e pesquisa bibliográfica, recorrendo a estudos interdisciplinares de áreas como a Antropologia, Comunicação e Psicologia Social. Também foram feitas diversas conversas com antropólogos que serviram como suporte para pensar o tema e indicaram caminhos a serem percorridos na consulta bibliográfica. 5. DESENVOLVIMENTO Se ao estudar o surgimento da escrita na história, associamos a ele, quase que instantaneamente, a necessidade de enraizamento. Essa atribuição imediata está contagiada, em boa parte, por uma construção ocidental da utilidade de produzir lembranças. Vincular a escrita unilateralmente à memória ou imaginar que a reminiscência só opera por meio de palavras escritas é encargo da obviedade e das associações automáticas e mecânicas do senso comum.

Não se deve, no entanto, desprezar ou negar a conveniência da memória, que possui uma função decisiva na existência, já que ela permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no curso atual das representações (Bósi, 2003, p.36). Olhando a rememoração sob o prisma de Benjamin (apud Bósi, 2003), ela é uma retomada salvadora do passado e este, a rigor, uma alteridade absoluta, que só se torna cognoscível mediante a voz do narrador (Bósi, 2003, p.61). Diante disso, narrativa e memória entrecruzam-se à medida em que a primeira fia o tecido da lembrança da vida. Se a sociedade vem enfrentando a decadência da narrativa, prevista por Walter Benjamin em 1936, porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis e porque o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos próximos (Benjamin, 1994, p.202), convém verificar se a perda do dom de narrar é sofrida por todas as classes sociais; mas não foi a classe dominada que fragmentou o mundo e a experiência; foi a outra classe que daí extraiu sua energia, sua força e o conjunto de seus bens (Bósi, 2003, p.25). Verificamos, a partir do que foi explorado acima, que a relação entre escrita e memória não é linear. Não parece surpreendente dizer que a aquisição da palavra escrita não implica em qualquer garantia de que o conteúdo transposto no papel será lembrado. E se o suporte não atinge instantaneamente a reminiscência, a forma narrativa se aproxima desta função por natureza, uma vez que ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver (Benjamin, 1994, p.204). Walter Benjamin ainda nos ajuda a complexificar a relação entre memória e escrita quando diz que entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos (Benjamin, 1994, p. 198). A relação entre narrativa e oralidade, por sua vez, pode ser vista como a de que ambas se desenvolveram no tempo, falam no tempo e do tempo, recuperando na própria voz o fluxo circular que a memória abre do presente para o passado e deste para o presente (Bósi, 2003, p.45).

Sendo assim, os pressupostos de que os registros escritos de conhecimentos indígenas são apenas caminhos de preservação e valorização culturais merecem ser colocados em suspensão, de forma que possamos vê-los e revê-los partindo de outros lugares ou perspectivas (Testa, 2008, p.293). O discurso de Davi Kopenawa, do povo Yanomami, é mais um sinal que aponta para a direção de que a necessidade da escrita entre os povos indígenas não surge diminutamente da carência de fazer lembrar: Os brancos se dizem inteligentes. Não o somos menos. Nossos pensamentos se expandem em todas as direções e nossas palavras são antigas e muitas. Elas vêm de nossos antepassados. Porém, não precisamos, como os brancos, de peles de imagens para impedi-las de fugir da nossa mente. Não temos de desenhá-las, como eles fazem com as suas. Nem por isso elas irão desaparecer, pois ficam gravadas dentro de nós. Por isso nossa memória é longa e forte. (Kopenawa et al, 2015, p.75) Em depoimento dado em 2006, Verá Mirim, da etnia Guarani Mbya, conta: Xeramoi [nosso pajé] sempre fala para nós que as palavras dos livros duram pouco. (...) O papel rasga, queima ou se molha na água e derrete, já a palavra que é falada dentro de cada um não morre (Testa, 2008, p.293). E, se a esta palavra é atribuído um caráter imortal, é porque a reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração (Benjamin, 1994, p.211). Assumindo o papel de intermediária cultural entre gerações, a memória deixa de ter um caráter de restauração e passa a ser a memória geradora do futuro (Bósi, 2003, p.66). 6. RESULTADOS Se para os não indígenas, quando se fala em formas de fazer lembrar, a escrita é algo que automaticamente vem à tona, para os povos indígenas a memória é algo que não depende deste rastro, do residual, da marca deixada no papel. A função geracional da narrativa se encarrega de manter acesa a chama da memória. A necessidade da escrita entre povos tradicionalmente ágrafos, como resultado do processo de contato com os não indígenas e suas instituições, surgiu, portanto, por várias situações que convergem principalmente no f ortalecimento da identidade étnica do povo, dado que:

A língua é o instrumento mais forte de identificação e luta das comunidades indígenas, pois por fazer parte do indivíduo (nós somos o que falamos) e identificar sua origem (fazemos parte da comunidade que fala nossa língua), ela torna a pessoa um agente que leva a comunidade consigo, representando o coletivo do qual faz parte. (Pacheco, 2006, p. 825) E a necessidade de enraizamento não é vista, aqui, como nenhuma forma de amarra, mas como um vínculo natural com o passado do qual se extrai forças para a formação e a renovação da identidade (Bósi, 2003), identidade esta que é simplesmente a percepção de uma continuidade, de um processo, de um fluxo: em suma, uma memória (Cunha, 2012, p.120). 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS Num contexto em que os direitos à igualdade dos povos indígenas foram entendidos como deveres e a essência política desta igualdade foi dissolvida em nome da homogeneidade cultural, o direito passou a significar um dever de assimilação envolto em equivalências perversas: integração e desenvolvimento passaram a sinônimos de assimilação cultural, discriminação e racismo a reconhecimento das diferenças (Cunha, 2012, p.129). O interesse pela escrita torna-se, a partir daí, mais uma ferramenta para resistir: a alfabetização quer assimilar o índio; o índio quer assimilar a alfabetização, mas para não ser assimilado. (Meliá apud Cavalcanti et al, 2005, p.11). 8. FONTES CONSULTADAS BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221. BÓSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

CAVALCANTI, Marilda do Couto; MAHER, Terezinha de Jesus M. O índio, a leitura e a escrita - O que está em jogo? Cefiel/IEL/Unicamp, 2005. CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2012. CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas. São Paulo: Ubu Editora, 2017. ELIAS, Norbert. O processo civilizador - volume 1: Uma história dos costumes. Tradução Ruy Jungman; revisão e apresentação, Renato Janine Ribeiro 2ª edição Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. PACHECO, Frantomé B. Palavra escrita e produção de textos em Ikpeng (Karíb): uma reflexão sobre a origem e o estatuto da escrita em uma sociedade de tradição oral. In: Estudos linguísticos XXXV, p. 818-827, 2006. Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo. Disponível em: < http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/artigo%3apacheco-2006/pacheco_2006 _palavra.pdf >. KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de Castro 1ª edição São Paulo: Companhia das Letras, 2015. TESTA, Adriana Queiroz. Entre o canto e a caneta: oralidade, escrita e conhecimento entre os Guarani Mbya. Universidade de São Paulo, Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 34, n.2, p. 291-307, maio/agosto 2008. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s1517-9702200800020000 >.